A ideia que temos da vida de casal no mundo ocidental, neste início do século XXI, por um lado alicerçada na ideia de amor romântico exclusivo, em contínuo estado de paixão, ao género de Hollywood e por outro lado, alicerçado na ideia de igualdade de papéis de género, sedimentado na afirmação do individualismo feminino, parece querer conter na relação romântica a segurança própria do vínculo, e o desafio próprio do individualismo.
O dilema entre segurança a dois e espaço individual, parece ser resolvido através de um passo de mágica, sob o lema: - o amor verdadeiro resolve tudo! O amor dependendo da sua qualidade de verdadeiro ou falso parece ser capaz de resolver tudo, inclusive as suas próprias contradições.
Nesta linha de pensamento baseada no julgamento moral sobre a qualidade verdadeira do amor, o espaço para a dor e sofrimento fica aniquilado. Se o amor é verdadeiro, então as contradições são fáceis de se resolver e deste modo o sofrimento dissipa-se com facilidade.
É nesta visão de casal, que parece existir muito pouco espaço para um dos membros partilhar com o outro que está deprimido, sem colocar a relação em causa.
A ideia romântica que temos da vida em casal, leva-nos a imaginar se tudo está bem na relação, devemos ser a fonte de segurança que a outra pessoa precisa e simultaneamente devemos ser a paixão e o desafio de eterna conquista, base a partir da qual o outro projeta o futuro. Por outras palavras, a felicidade do outro é o resultado da segurança e paixão que lhe é oferecido na relação.
O caso do Ricardo e Joana. "A dor que tenho dentro de mim, persegue-me desde sempre, só que agora é muito mais intensa"
Conheço em consulta o Ricardo e a Joana, a pedido de uma colega psicóloga que acompanha o Ricardo já há alguns meses em terapia individual. Quando entram na sala, sinto de imediato uma tensão e um desconforto enorme pelo forma como trocam olhares. Eu próprio fico hesitante sobre como iniciar a conversa.
A Joana, quase de imediato, diz: “vimos cá para eu descobrir porque razão, não consigo fazer o Ricardo feliz. Como é possível alguém estar triste com a vida e ao mesmo tempo afirmar que está tudo bem connosco?” A Joana estava visivelmente emocionada. Sentia-se zangada, frustrada, e começava a sentir a sua autoestima a ser beliscada. Por hipótese as qualidades que ontem conseguiam suscitar a paixão e o romance no Ricardo, hoje parecem cada vez mais serem indiferentes.
A Joana estava perante um desafio enorme, compreender de forma empática a depressão do Ricardo. Escutar o Ricardo, o seu sofrimento, a sua falta de certeza pelo sentido da vida, a sua dificuldade de se imaginar feliz no futuro, eram autênticas punhalada ao projeto a dois. A consciência da Joana era invadida constantemente com questão o que fiz para o Ricardo deixar de gostar de mim. A Joana via-se ela própria puxada, para a espirar depressiva, à qual parecia resistir com toda a força de zanga que tem dentro dela.
O Ricardo, após escutar a Joana, arranja timidamente espaço para dizer: “A Joana não me compreende. Eu preciso do apoio dela e não da zanga constante. Já expliquei muitas vezes que a causa da minha tristeza não é a nossa relação. A Joana é a mulher que amo. A dor que tenho dentro de mim, persegue-me desde sempre, só que agora é muito mais intensa.”
O desafio do casal e em particular do elemento do casal que não está deprimido, é compreender que a depressão, é mais do que a emoção de tristeza ou desagrado constante com a vida. Não devemos de ter medo ou estigma de afirmar com naturalidade que a depressão é uma doença mental. O nosso cérebro, como qualquer outro orgão do nosso corpo, pode adoecer.
A depressão é uma, entre várias formas de doença, do nosso cérebro
A depressão como qualquer doença não se escolhe, não se deseja. Neste sentido, a depressão não é sinal de fraqueza por isso não se vence, não se contorna, não se evita, mas sim trata-se.
O aparecimento de uma doença num dos elementos do casal, a meio da vida, é naturalmente uma fonte de stress para a relação e para o projecto a dois. A doença grave, quer seja aguda ou crónica, obriga-nos a repensar a vida, a reordenar prioridades, a organizar uma nova rotina de forma a encaixar tempo para as intervenções terapêuticas e para novos hábitos de vida quando necessários.
A depressão ao ser percepcionada como um simples estado de humor, facilmente alterável com um jantar de amigos ou com um bom momento romântico e não como uma doença séria, parece não ganhar o direito à prioridade que outras doenças gozam.
É irónico pensar que ninguém espera por ir ao médico quando sofre do coração, quando sente um aperto ou uma picada no peito, um batimento cardíaco alterado. Na verdade não criamos tantos rodeios, quando atribuímos o aperto no coração à especialidade de cardiologia.
A saúde mental, infelizmente ainda estar aprisionada a um forte estigma social que vê o doente como o resultado da sua “fraqueza de espirito” e falta de estoicismo que permite colocar os pensamento e a dor mental no devido lugar.
Comento com Joana e como Ricardo que quando somos mais novos temos alguma dificuldade em imaginar o nosso envelhecimento, o nosso adoecer e a forma como o nosso corpo nos prega partidas. O foco que coloco no corpo, permite sair momentaneamente do jogo de culpas e do estigma associado à doença mental. Afinal o Ricardo não escolheu estar deprimido, a doença não se escolhe. A ideia de corpo também nos parece ser interessante na medida que delimita e define o contorno individual. A vida a dois é construída a partir de dois corpos, de duas mentes de dois indivíduos.
Parece-nos que o desafio na vida de casal, quando um dos elementos está deprimido, é criar um espaço suficientemente amplo para conter a individualidade do outro que parece alargar-se. O reconhecimento e o respeito pela vida interior do outro, como dinâmica independente da relação, na qual habitam preocupações, fantasmas, medos, terceiras pessoas, é essencial como forma de devolução da individualidade, dentro do projeto de casal.
Em casais em que o projeto a dois é vivido com um grau maior de fusão, o processo de amplificação da dimensão individual, pode ser sentido como ameaçador. O espaço individual, implica maiores momentos de solidão, reencontro com os próprios pensamentos e possível amplificação de sensação de abandono ou perda.
A depressão do Ricardo enquanto processo individual, remete também a Joana para a sua própria individualidade, na medida que a fusionalidade do projeto a dois, fica diferente. Há um trabalho de luto individual que possivelmente terá de ser feito pela Joana, trabalho esse naturalmente dependente da visão mais ou menos cristalizada que detém do projeto a dois e da representação do Ricardo enquanto homem que ama.
A experiência enquanto terapeutas de casal leva-nos acreditar que é nesta dialética entre aproximação quase fusional dos estados de paixão onde o sofrimento de um se torna o sofrimento do outro e os estados de maior individualidade no qual o espaço mental de cada um, é intimidante só desse elemento do casal, que reside a chave para o sucesso do projeto a dois.
Por outras palavras o segredo talvez esteja na arte como o individualismo vai tecendo as linhas do encontro de forma coser e a descoser o casal.
Quando um dos elementos está deprimido e as linhas do encontro estão demasiado cosidas, então é muito provável que a depressão funcione como uma buraco negro que atrai toda a energia.
Pelo contrário quando o casal, alimenta um forte individualidade, a depressão de um dos elementos do casal, parece não ter o mesmo efeito devastador na relação de casal.
Texto: Pedro Vaz Santos - Terapeuta Familiar e de Casal
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