Noémia encontra nos livros o seu convívio. Maria Alice não tem nenhum em casa. Nasceram na década de 40 - Noémia no interior alentejano e Maria Alice numa terra de pescadores a norte. Ambas são a prova de que a vontade de aprender não se desvanece com a idade.

A escola primária de Aver-O-Mar, na Póvoa do Varzim, é hoje um espaço abandonado. Contra a vontade de muitos moradores locais, como Maria Alice da Silva. Sempre que passa junto ao portão, imagina-se novamente na sala de aula: “Agora não há nada. Que pena! Mas eu ia, se houvesse...”, diz.

Maria Alice tinha 60 anos quando assistiu à primeira lição. “Foram os melhores momentos da minha vida”, recorda a viúva, que ainda guarda os cadernos onde desenhou a lápis as primeiras palavras, com uma letra redonda, infantil.

Na freguesia de Aver-O-Mar há 316 analfabetos (4,1%), segundo o Instituto Nacional de Estatística. A realidade da terra repete-se pelo país. Portugal tem quase meio milhão de analfabetos. Com o fim dos cursos de alfabetização, em 2010, as aulas para adultos são agora raras, lamenta Armando Loureiro, presidente da Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos.

David Justino, ex-ministro da Educação e presidente do Conselho Nacional de Educação, defende que ensinar as pessoas a ler e a escrever é, acima de tudo, uma questão de dignidade.

A história de Maria Alice é semelhante à de muitas outras mulheres do seu tempo. A família traçou-lhe um futuro que não passava pela escola: “Aos sete anos comecei a trabalhar no campo, a apanhar pancada do cabo da enxada, e ia para o mar apanhar sargaço. A vida foi muito dura”, recorda.

Havia dias em que acompanhava as vizinhas à escola, mas ficava à porta, a chorar. “Eu ia com elas mas a professora dizia: ‘Tu não podes vir porque não estás matriculada’. E eu sentava-me à porta à espera que acabasse”, diz.

Nasceu em Aver-O-Mar e foi ali que se enamorou, casou e criou seis filhos. Durante esses anos, nunca esqueceu o sonho de infância: “Gostava de saber assinar o meu nome”.

O marido, um pescador da terra a quem não se atrevia a fazer frente, foi o principal obstáculo.

Quando a escola primária começou a ter aulas para adultos, acreditou que poderia aprender. Pediu autorização ao marido mas recebeu um “não” de resposta. Acusou-a de ter perdido o juízo por sonhar com tais andanças.

Num domingo, ao sair da missa, uma vizinha contou-lhe que havia quem, na terra, pudesse inscrevê-la na escola. Às escondidas da família, decidiu mudar o destino. Só na véspera de as aulas começarem contou a novidade em casa.

Esteve dois anos na escola. Depois, o marido “caiu doente”, com Alzheimer, e teve de se dedicar às lides domésticas. Mas passou a ser ela quem tratava de tudo.

“As primeiras letras que escrevi foram quando assinei o meu nome para tirar o Bilhete de Identidade no Registo Civil. Eu tremia por todos os lados, de nervosa”, recorda.

Enviuvou e hoje ajuda as vizinhas, lendo-lhes a correspondência: “Do pouco que sei explico aqui à Tia Fina”, diz apontando para a amiga Josefina Neves, de 85 anos.

A alguns quilómetros da casa térrea de Maria Alice vive Noémia de Castro. Nasceu no mesmo ano mas no Alentejo. Ao contrário de Maria Alice estudou até à 4.ªclasse. Ao contrário de Maria Alice é pouco dada a conversas.

“Sou pessoa de pouco convívio. O meu convívio é com os livros”, diz. Para fazer deles a sua vida teve que contrariar o destino e deixar para trás a terra onde nasceu - Estremoz.

“A vida no Alentejo era bastante difícil, era um meio bastante atrasado. Para estudar o meu irmão não estudava eu”, lembra Noémia.

Aos 10 anos, quando concluiu a 4.ª classe, a família deu por terminado o seu percurso escolar. Mas Noémia sempre sonhou com uma vida diferente da que tinha a sua mãe, costureira, e o seu pai, operário.

Até voltar a pegar nos livros aprendeu costura para ajudar a mãe, casou aos 16 anos e foi de Estremoz para Setúbal. Serviu às mesas, deu aulas de lavores às meninas do Instituto de Odivelas. Foi estudando como pôde, sozinha, com explicações. Casou novamente, com um juiz, e a sua vida mudou, tendo experimentado várias cidades.

Quando chegou à Póvoa do Varzim retomou os estudos e nunca mais parou. Já tinha 54 anos quando concluiu, com sucesso, o 5.º e 6.ºanos do ensino recorrente noturno. Poucos anos depois matriculou-se na Universidade de Coimbra: Aos 58 anos era caloira do curso de História.

Entretanto, o marido foi colocado no Tribunal da Relação do Porto e Noémia pediu transferência para universidade portuense, onde concluiu a licenciatura, fez um mestrado e agora está a terminar a tese de doutoramento.

Confessa que já não tem “muita paciência” para continuar a estudar mas garante que terá sempre os livros por companhia.

Já a Maria Alice restam-lhe os dias sempre iguais: cuidar da casa, do pequeno rafeiro Mantorras e, ao final da tarde, as novelas. Que vê quase contrariada, porque podia estar na escola. As novelas fazem-na sonhar, mas não ensinam a ler nem a escrever.