Ao longo de mais de três décadas, a AFID tem apostado seriamente na Arte como ferramenta de inclusão e reabilitação de pessoas com deficiência.

O atelier de pintura foi o primeiro passo de uma estrutura hoje composta por cinco oficinas artísticas - cerâmica, costura, papel, pintura e tecelagem manual - em paralelo com o trabalho nas artes performativas, visível num grupo de dança e outro de percussão.

Esta aposta tem sido reconhecida ao longo dos anos com a premiação de vários dos trabalhos aqui realizados, em concursos nacionais e internacionais, dirigidos ou não a pessoas com deficiência.

Culmina, ainda, com o acolhimento de propostas de artistas externos e com um programa anual intensivo de exposições e eventos realizados em parceria com várias instituições culturais, que permitem dar a conhecer os nossos artistas com dignidade a um público generalizado e revelar à sociedade as surpreendentes personalidades que muitas vezes permanecem escondidas sob o estigma da deficiência.

A pintura pode quebrar barreiras

Poucos adivinham o sentido de humor, as inquietações ou a delicadeza de uma pessoa que não consegue comunicar por palavras ou que não tem as mesmas capacidades de raciocínio que os outros, que tem uma aparência diferente, um corpo deformado que continua a gerar desconforto na maioria das pessoas.

A pintura pode quebrar essa barreira. Para além da contemplação estética, cada desenho, cada quadro, cada obra é um pequeno emissário que revela a verdadeira pessoa por detrás da deficiência. Conhecendo esse pequeno vislumbre, geramos a simpatia por vezes necessária para mais naturalmente lhe estender o convívio e reconhecimento.

É certo que as atividades de expressão plástica são, portanto, uma componente essencial do quotidiano de qualquer Centro de Atividades Ocupacionais, mas há uma vontade de levar esta ferramenta mais longe, e que é expressa na criação de um espaço específico e exclusivo para este propósito.

O atelier de pintura é um espaço. Um espaço de bem-estar, um espaço de convívio, um espaço de aprendizagem, um espaço de diálogo e um espaço de trabalho. Potencialmente pode ser um mundo, embora, concretamente, seja uma sala.

No caso específico do atelier de pintura da Fundação AFID Diferença, é um pequeno pavilhão rodeado pelo grande jardim na sede da instituição. Esta configuração permite várias dinâmicas entre o trabalho que se desenvolve no exterior e no interior.

Permite, acima de tudo, uma sensação de desafogamento, o que é uma das suas grandes mais-valias -estar acolhido no centro de um jardim potencia a tranquilidade necessária para criar, sobretudo para um público mais vulnerável.

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Fotografias de Arquivo do Atelier de Pintura do Centro de Atividades Ocupacionais da Fundação AFID Diferença créditos: AFID Diferença

"Neste espaço físico procuramos reunir as condições, o acompanhamento técnico, os materiais e as ferramentas necessárias para a prática da Pintura com a multiplicidade de técnicas e suportes que mais se adaptam à expressão e às dificuldades de cada um dos mais de 30 artistas que, semanalmente, o frequentam".

"Queremos que neste espaço se aprenda a pintar, mas não necessariamente a "pintar bem". Ou seja, queremos que todos aprendam a pintar da forma como cada um unicamente o faz, e não de acordo com uma fórmula "correta" - isto é um preconceito que continua ainda a existir, surpreendentemente".

A pintura, mesmo num trabalho coletivo, é sempre algo de muito íntimo, um fluxo entre o mundo exterior que se observa e um mundo interior que se expressa.

Nesse fluxo intervêm vários fatores que filtram o resultado - o olho que vê de uma forma diferente, a mão que não obedece sempre ao nosso controlo. Quanto mais natural for este processo, mais espontâneo, genuíno e distinto é o resultado final.

Isto torna o papel dos monitores num jogo de equilíbrio muito delicado, entre ajudar o artista a contornar as suas limitações e criar as imagens que idealiza, sem impor o seu próprio filtro, a sua forma de pintar.

Podemos dizer que a pintura está "bem" apenas quando no olhar do autor se lê a satisfação indizível de ver nascer algo das suas mãos onde se reconhece a si próprio com orgulho.

Um quadro acabado é, no entanto, apenas mais um passo de uma infinita experimentação

A obra de um só autor é sempre um universo inacabado, ao qual vão sendo acrescentados pequenos pedaços em cada trabalho. A pintura é, portanto, uma superfície onde nos podemos expandir infinitamente para lá do nosso corpo, onde recebemos o olhar do outro e conduzimos os seus passos.

É um espaço também, mas um espaço exclusivo para a imaginação, onde tudo pode acontecer ou "ser dado a acontecer".

Nesse espaço existe liberdade total, sem a interferência obrigatória do mundo real ou das leis da física, mas seria apenas no sentido poético - no sentido em que o que se mostra num quadro pode continuar na mente de quem o vê. Mas não é assim tão simples.

"Na realidade as tintas secam, misturam-se, são opacas ou translúcidas, espessas ou fluídas, resistem ou degradam-se e interferem no que fazemos acontecer na superfície que está a ser trabalhada. O gesto de quem cria é contido no tamanho das folhas de papel, das telas e dos demais suportes que se disponibilizam. E é por isso que nos interessa falar de espaço, falar do espaço concreto onde se pinta e do espaço imaterial que se pinta. E falar da forma como mutuamente se condicionam".

Os artistas querem sempre continuamente expandir o seu espaço e o atelier procura providenciá-lo. A gestão logística desta missão enfrenta, assim, desafios constantes.

Para que a dignidade do trabalho dos artistas se estenda para além dos momentos em que são feitos e mostrados, é essencial pensar a preservação de cada elemento desse trabalho contínuo. Isso envolve questões práticas como o armazenamento, acondicionamento e registo dos trabalhos produzidos, a sua catalogação e divulgação em suportes digitais, o entendimento dos direitos e deveres que resultam da parceria entre autor e instituição.

AFID Diferença
Fotografias de Arquivo do Atelier de Pintura do Centro de Atividades Ocupacionais da Fundação AFID Diferença créditos: AFID Diferença

Este trabalho de gestão, menos visível, corre muitas vezes o risco de ser negligenciado, mas é basilar. Existirão sempre condicionamentos físicos com que lidar, pelo menos enquanto a pintura se prender com a manipulação de materiais sobre um suporte, que dão origem a um objeto singular que importa preservar.

Uma abordagem alternativa pode passar pelo entendimento da pintura como a criação de imagens e, de que uma imagem é um fenómeno e não um objeto. Isto é, um quadro não pode ser apreciado no escuro, é necessária luz para o iluminar, pois, se apagarmos a luz, o quadro desaparece.

Mais ainda, se ninguém o estiver a ver, o quadro existirá, mas a imagem não - isso torna-o quase tão vulnerável, efémero e imaterial quanto uma projeção de vídeo, uma fotografia num ecrã, um desenho digital ou mesmo uma impressão descartável.

A pintura pode, portanto, expandir-se legitimamente para os suportes digitais e libertar-se parcialmente da necessidade de espaço físico, embora a adaptação destes meios para o contexto artístico no trabalho com pessoas com deficiência careça ainda de uma intermediação mais exigente e cuja prática está aparentemente ainda nos seus primórdios.

Outra abordagem ainda é a valorização da prática da pintura como o momento da sua criação e não como o objeto resultante, diluindo a sua fronteira com uma arte performativa. Isto verifica-se com mais frequência no quotidiano de qualquer instituição de ensino ou sobretudo em workshops e exercícios coletivos em que os propósitos principais são a experimentação, a interação e a observação.

O resultado material destes momentos muitas vezes é descartado e ficam apenas alguns registos fotográficos como testemunho do verdadeiro trabalho - o que ficou gravado na memória de cada participante.

De qualquer modo, esta será sempre uma verdade incontornável e um desafio nem sempre evidente do trabalho desenvolvido na Fundação AFID Diferença: a pintura é espaço... E precisa de espaço! Espaço real e espaço mental. Espaço físico e espaço virtual.

Espaço de gestação e espaço de apreciação. Espaço de exposição e espaço de recolhimento. E em todos esses espaços, espaço de reflexão - ou é de tempo que estamos a falar?

Texto: Nuno Lacerda, monitor do Atelier de Pintura da Fundação AFID Diferença