«Por vezes o capuchinho vermelho perde-se no bosque e não há beijo que resgate a Bela Adormecida. Para muitas crianças a sua história pode não terminar bem e não viverem felizes para sempre», refere Nuno Lobo Antunes, neuropediatra.
A pensar nelas escreveu o livro
«Mal-entendidos» (Verso de Kapa) que é, segundo o autor, um legado para todas as crianças com um desenvolvimento atípico, mas também para quem delas cuida, nomeadamente pais, professores, psicólogos ou médicos, que querem que todas as histórias tenham um final feliz e não deixam o espelho mágico dizer a nenhuma criança que há alguém mais belo do que ela.
À conversa com o médico e escritor ficámos a conhecer um pouco mais sobre estes meninos, os seus pais, as perturbações do desenvolvimento e o que este especialista faz para que todas as histórias acabem bem.
No início do seu livro conta que «é difícil para qualquer médico anunciar a uma família que o seu filho tem deficiência mental». Prepara os pais para receber o diagnóstico?
É difícil preparar, nem sei se isso é possível. O que me parece fundamental é que haja tempo para conversar sobre o significado do diagnóstico e as suas consequências. Se os pais tiverem uma reação mais emocional devem poder tê-la num ambiente de privacidade, que lhes dê tranquilidade e confiança.
A seguir à notícia, o médico tem de ter disponibilidade para voltar a conversar sobre tudo o que não ficou esclarecido, e é muito porque, na maior parte das vezes, uma vez feito o diagnóstico a mente fecha-se e já não ouve mais nada.
O diagnóstico de atraso mental pode surgir apenas vários anos após o nascimento. Como é possível que o problema passe despercebido?
A possibilidade de haver um problema destes gera tanta ansiedade nas pessoas que elas quase cegam, no sentido de não verem as dificuldades. Outras vezes, só quando a fasquia sobe, como a entrada na escola, é que os pais se apercebem das dificuldades, que até então não eram aparentes ou que eram interpretadas como resultantes de imaturidade.
A que sinais os pais devem estar atentos?
Todos nós temos ideia de como é o desenvolvimento típico de uma criança. A que idade começa a andar, a falar, que tipo de relações sociais desenvolve... Como em qualquer outro aspeto da saúde, quando se começa a suspeitar de que algo pode não estar bem, a criança deve ser vista.
Uma vez que a perturbação de hiperatividade e défice de atenção não tem um marcador biológico como é feito o diagnóstico?
O meu diagnóstico depende inteiramente do relato dos comportamentos da criança feito pelos pais e pelos professores. São eles que terão de me dizer como é o quotidiano da criança, tanto em casa como na escola, qual a sua capacidade de concentração e o seu grau de atividade.
A quem devem os pais recorrer se notam que algo não está bem com a criança?
A primeira pessoa a procurar deverá ser o pediatra que deverá depois orientar para a especialidade ou especialista que entenda ser mais adequado. A minha experiência diz-me, contudo, que a maior parte das vezes os pais vêm ter comigo por sua própria iniciativa ou orientados por psicólogos ou professores.
As dificuldades escolares são comuns a todas as perturbações do desenvolvimento. Quando é que se justifica recorrer ao ensino especial?
Seguramente nos défices cognitivos. Em alguns casos específicos de aprendizagem é útil a intervenção de uma psicóloga educacional ou de uma técnica de educação especial e reabilitação para ajudar nas dificuldades específicas de aprendizagem.
Já em relação ao défice de atenção ou outro tipo de perturbações comportamentais não me parece que seja necessário a intervenção de um professor de ensino especial.
Estas crianças devem ser acompanhadas por um especialista ao longo da vida?
A necessidade é muito variável. Cerca de dois terços das crianças com défice de atenção com hiperatividade deixam de preencher os critérios quando chegam à idade adulta.
Em relação à dislexia há uma percentagem que também ultrapassa essa dificuldade. Agora há alterações comportamentais, como por exemplo a síndrome de Asperger, em que o adulto beneficiaria desse acompanhamento.
Em que idade passa os casos para outro colega não pediátrico?
Sou neurologista de crianças, mas fiz muita neurologia de adultos também. Se entendo que continuo a poder acompanhar e tenho competência para tal não imponho qualquer limite de idade.
Alguns pais decidem ter um segundo filho para que olhe pelo primeiro quando eles partirem. O que pensa desta resolução?
Na minha opinião, os casais devem ter mais filhos pela vontade de aumentar a família.
Não me parece que devam ter mais uma criança à espera que em adulta ela tome conta do irmão mais velho, pois nem sempre isso acontece e, do meu ponto de vista, nem é exigível que uma pessoa nasça com a obrigatoriedade dessa missão.
A propósito da doença bipolar diz que, por vezes, os pais não reconhecem os seus próprios sentimentos quando o amor se mistura com a zanga. Como podem gerir as emoções?
É muito importante que os pais procurem instruir-se sobre a natureza do problema, que percebam que as suas reações às dificuldades do seu filho são normais e que tenham tempo para si próprios. Pessoas absolutamente exaustas emocionalmente, em sofrimento contínuo, dificilmente serão capazes de cuidar dos seus filhos como deve ser.
É comum surgirem conflitos entre o casal?
As estatísticas internacionais provam que o risco de divórcio em casais com filhos com problemas, por exemplo como o autismo, comportamentos de oposição e desafio ou doença bipolar, é muito maior do que nos casais que têm filhos sem esse tipo de dificuldades. Isto não quer dizer que não haja quem consiga até criar daí alguma força, mas é, sem dúvida, um obstáculo à já difícil tarefa de viver em comum.
As dificuldades destas crianças não poderão ser fruto da personalidade?
Não acho que as crianças nasçam más, preguiçosas ou com vontade de embirrar. Em geral, essas crianças têm um problema, cuja origem não é muito aparente, porque não está na cara. Sem ajuda, muitas delas cairão num círculo vicioso de insucesso, mas com uma intervenção adequada é, muitas vezes, possível tornar esse círculo vicioso num círculo virtuoso.
Como devem os pais reagir?
É importante que percebam que uma criança antes de ser uma criança problemática é uma criança que tem um problema. Perante essa dificuldade, a atitude sensata e inteligente é tentar compreender a sua natureza e buscar uma resposta.
Afirma que as pessoas com síndrome de Asperger (um tipo de autismo) são excessivamente honestas e que é possível, dado o uso crescente do computador, que venham a ter cargos influentes. Como seria o mundo se elas governassem?
Um enorme quartel habitado por soldados pacifistas.
Bilhete de identidade
Licenciado em Medicina, pela Faculdade de Medicina de Lisboa, foi assistente hospitalar de pediatria e coordenador da Unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Exerceu as funções de consultor de neurologia pediátrica para o Departamento de Neurologia e Pediatria do Memorial Hospital for Cancer and Allied Diseases e para o Presbyterian Hospital em Nova Iorque.
Foi ainda professor auxiliar de neurologia e pediatria na Cornell University Joan & Sanford I. Weill Medical College (EUA). Atualmente é diretor médico e coordenador das áreas de neurodesenvolvimento e neurologia do CADIn, Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (www.cadin.net), consultor de neuropediatria do Serviço de Pediatria do Hospital Fernando da Fonseca e consultor de neurologia pediátrica do IPO, em Lisboa. Tem dois livros publicados, «Sinto Muito» e «Mal-entendidos», ambos editados pela editora Verso de Kapa.
Texto: Vanda Oliveira
Foto: João/Pinedrifts
Comentários