Vivi uma infância extraordinariamente feliz. Talvez por ter sido uma filha muito desejada, nasci com a enorme sorte de ter tido uns pais muito dedicados, presentes e permanentemente preocupados com a minha felicidade. Recordo-me que, no final de cada dia de trabalho, o meu pai acedia sempre aos meus pedidos para me ensinar a escrever ou, em alternativa, para dançar comigo Rock ‘n Roll ou Twist (sim, cresci com os sons da era “peace and love”!). Então, depois de pôr a tocar aquelas músicas que ainda hoje sei de cor, o meu pai convidava-me a colocar os meus pés sobre os dele e embalava-me ritmadamente pela sala que, na altura, me parecia tão gigante quanto a minha imaginação.

Já a minha mãe, que abandonara a sua carreira profissional para assumir plenamente a maternidade, nunca negava um pedido para brincar com as borrachas aromáticas que eu colecionava ou para me ensinar a fazer contas de somar, enquanto ficávamos na janela a contar os (poucos) carros que passavam na minha rua.

Foi uma infância extraordinária, de facto. No entanto, houve uma coisa que sempre me faltou. Um irmão.

Na minha rua viviam várias crianças, e era rotina diária juntarmo-nos habitualmente no parque ou em casa uns dos outros, onde inventávamos histórias misteriosas que nos entretinham até ao final do dia. À hora do jantar, eu regressava a casa de roupas sujas e rebentadas, com um sorriso enorme nos lábios, pronta a contar aos meus pais as aventuras de mais um dia. Mas depois, quando o silêncio noturno se instalava, eu sentia a falta daquele outro “ser do mesmo sangue” que, não existindo, podia ali estar ao meu lado, a dividir comigo um quarto e confidências. Nunca o tive.

Tantos anos depois, sinto que ofereci aos meus filhos a magia que eu não tive a sorte de sentir. Quatro irmãos de idades muito próximas significam ocupação garantida e permanente. Mesmo que eu tenha trabalho para despachar ou lides domésticas para assegurar, eles encontram sempre forma de ocupar o tempo livre. E, então, enquanto eu me concentro no computador ou na loiça acumulada na cozinha, interrompo invariavelmente a minha atenção com as gargalhadas deles que ecoam dos quartos, da sala ou até mesmo da rua, onde habitualmente também brincam com outros meninos da nossa zona. Na verdade, e por mais amigos que tenham, eles bastam-se uns aos outros para terem dias preenchidos de diversão.

Claro que também se zangam, se batem, se chateiam por causa dos brinquedos, das rotinas e do espaço que parece eternamente violado quando lhes apetece alguma privacidade. Claro que, nestes momentos, também reclamam que preferiam ser filhos únicos, que queriam um quarto só para eles, que gostavam de poder esticar-se num sofá que normalmente tem de ser dividido por quatro.

Mas depois, quando vão, dois a dois, para os seus quartos, tudo esmorece. Elas fecham a porta e partilham intimidades adolescentes no meio de risinhos histéricos e gargalhadas abafadas nas almofadas. E eles, ainda pequenos e imaturos, insistem para dormir sempre juntos e ocupam os minutos antes do sono escondendo-se debaixo dos lençóis e confessando um “amo-te muito, mano” que todas as noites me enche ainda mais o coração.

Talvez por ter sido filha única e por ter tão presente a sensação de uma ligeira ‘solidão’ que a minha singularidade me fazia sentir, sou daquelas mães que incentiva algumas brincadeiras que não me são muito proveitosas. Mas que, qual complexo de identidade mal resolvido, me fazem sentir novamente uma criança pequena, com mais quatro com quem partilhar algumas das brincadeiras que eu, em criança, não me podia sequer atrever a ter dentro de casa. Como os ‘balões de água’, aquele atentado ao bom senso, a uma casa literalmente seca e a crianças impecavelmente vestidas. Afinal, aliar o jogo das escondidas a balões cheios de água atirados à cabeça de quem se descobre atrás de uma árvore ou de uma porta entreaberta não abona a favor de uma mãe que insiste em ter a casa e os filhos em ordem. A cada litro de água que rebenta nas roupas, nos cabelos ou nos pés, as gargalhadas enchem a nossa rua e as nossas vidas. E eu fixo-me naqueles sorrisos tão abertos e naquela felicidade plena que, infelizmente, a passagem do tempo insiste em ir atenuando com o avançar da idade. Olho para eles, encharcados da cabeça aos pés, e vejo que aquela alegria apenas existe porque eles se têm uns aos outros.

Somos novos nesta rua, para onde nos mudámos há menos de seis meses. Com uma vizinhança bastante calma e simpática, há pouco tempo fui abordada pela senhora que mora mesmo ao meu lado e que me referiu o quanto gosta de ouvir os meus filhos, no final de cada dia. Explicou-me que já tem filhos adultos e que tem matado a saudade da infância dos seus através dos sons que todos os dias são projetados da minha casa. Apressei-me a pedir desculpa pelo exagero sonoro que reconheço que os meus filhos produzem – e que tanto contrasta com a calma e o silêncio que existiam na minha casa de infância – mas ela imediatamente me corrigiu:

- Não é ruído, é felicidade pura!

E é isto, realmente. Não vou deixar aos meus filhos um testamento repleto de bens, imóveis e contas bancárias recheadas. Mas vou deixar-lhes o maior legado de todos: o privilégio de uma infância feliz e de uma vida eternamente vivida a quatro.

Alda Benamor