Nasci numa família católica que sempre me fez acreditar que, lá em cima, há alguém que zela por nós. Por isso, quando eu era criança, rezava todos os dias para que a minha mãe não morresse cedo. Para que os seus gravíssimos problemas de saúde não a impedissem de me ver crescer, terminar o curso, arranjar emprego, casar, ter filhos. No fundo, entregava nas mãos de ‘alguém’ a saúde e a vida da minha mãe, dada a minha total impotência para controlar este doloroso tema da minha vida.
Curiosamente, sempre rezei também por mais uma coisa: que, se um dia eu viesse a ter filhos, eu tivesse saúde suficiente para os poupar ao sofrimento constante de não saberem se no dia seguinte eu ainda estaria ao lado deles.
Os anos foram passando, a minha mãe foi, felizmente, assistindo a todos os degraus da minha vida e, finalmente, eu engravidei. Nessa altura, eu já não rezava diariamente ao Deus que a minha família idolatrava, tendo percebido que a devoção a outras entidades podia assumir o registo e a forma que melhor me serviam e mais me tranquilizam. E, então, passei a pedir, ao meu jeito, para que a gravidez corresse bem e para que a bebé nascesse saudável. Tal e qual como fazem todas as mães, acredito, sejam católicas, judaicas ou ateias.
Quando me tornei efetivamente mãe, percebi que o meu maior medo já não era se eu tinha saúde para estar sempre lá, mas antes se a minha filha estaria sempre bem e saudável. Se nunca me iria ser arrancada pelos tristes destinos da vida, que parecem levar precocemente quem ainda não teve tempo suficiente para gozar as alegrias e sofrer as dores que da nossa existência parece fazer parte. Quando me vi, mais tarde, com quatro filhos a meu cargo, cheguei a pensar se eu teria braços suficientes para lhes evitar os perigos mais previsíveis.
Não tenho. Não temos.
Há dois anos, recebi um telefonema da escola da minha filha mais nova. Tinha sofrido uma queda violenta, tendo batido com a cabeça no poste de uma baliza. Estava a vomitar e com o raciocínio desordenado. Lembro-me de ter corrido para a escola, com o coração acelerado e as lágrimas a inundarem-me a roupa. Encontrei-a confusa e prostrada. Foi no hospital, meia hora mais tarde, que lhe confirmaram um traumatismo craniano com um derrame cerebral.
- Eu vou morrer, mamã?
Nunca irei esquecer esta pergunta. A médica a segurar-me a mão, eu a controlar as lágrimas difíceis de evitar, e a resposta trémula e duvidosa que saía da minha boca: “claro que não, amor. Vais ficar boa depressa!”.
Nesse dia, chorei como nunca tinha chorado antes. Nem quando a minha mãe teve o aneurisma, ou o enfarte ou o AVC. Chorei uma dor que nunca imaginei sequer que pudesse existir, achando eu, até à data, que já tinha sofrido os pesares mais profundos. Nesse dia, percebi que, mesmo tendo mais três filhos, eu nunca iria conseguir viver sem um deles.
Já tinha passado estoicamente por todas as mazelas da infância dos meus filhos. As varicelas, os pulsos e dedos partidos, uma operação a uma hérnia. E sempre as relativizei, talvez por saber que se tratavam de maleitas ditas normais. Mas nunca me achei preparada para ouvir um profissional de saúde dizer-me, a respeito de um deles, que tudo podia acontecer. A médica a dizer-me que tínhamos de deixar o tempo passar, que havia vários procedimentos possíveis, que eu tinha de manter a força e a crença de que tudo ia correr bem. E as lágrimas a caírem-me em catadupa, eu a controlar os soluços que toldavam a nitidez das tantas perguntas que me assolavam, eu a pensar por que é aquilo estava a acontecer connosco, eu a imaginar o pior dos cenários e a saber que nunca teria força para o superar.
- Se eu morrer, a bisavó vai estar à minha espera?
Há perguntas a que nenhuma mãe devia ter de responder. Que nenhuma mãe devia ter de ouvir.
A minha filha, monitorizada e deitada naquela cama fria e isolada, de olhar fixos em mim, como que a ler a agonia que era visível nos meus olhos pesados, na minha pele baça, no meu coração que, de repente, parecia estampado fora do meu corpo. Pequeno, amassado, destruído.
Nesse dia, voltei a rezar. Num egoísmo desmedido, voltei a pedir ao Deus que outrora conheci. Não pela minha mãe, não por mim, mas por uma das quatro pessoas mais importantes da minha vida. Por uma das pessoas sem a qual eu nunca conseguiria, de facto, viver. Ou sobreviver.
Dois anos depois, estamos todos juntos, felizes e saudáveis. Do hospital, ficou apenas a lembrança de um episódio triste nas nossas vidas. Daqueles dias, ficará para sempre a certeza de que nenhuma mãe estará alguma vez preparada para ficar sem um filho.
E não há mensagem que acalme esta dor. Que se trata de uma vontade de Deus, que a vida segue, que o tempo tudo cura. Porque não deve curar nunca. Nem esmorecer, acredito. Os afazeres podem manter-se, o sol pode continuar a nascer todos os dias, as pessoas na rua podem permanecer felizes e agitadas, mas o coração de uma mãe em luto não floresce nunca mais.
Esta semana soubemos de mais uma mãe cujo coração ficou de luto. Mais uma, apenas mais uma no meio de tantas. São as praxes ridículas, os sequestros esquizofrénicos, as piscinas e os mares que brincam com as vidas alheias, os automóveis que escorregam em ruas e passadeiras camufladas. São as balizas de futebol e as partidas da vida que, todos os dias, acabam com a vida de inocentes e roubam a sobrevivência de quem os ama.
Não há palavras para quem o vive. Não há mensagens, frases feitas ou crenças idílicas que aliviem, nem que seja por um momento, aquela dor aguda que, felizmente, me parece impossível de sequer imaginar. Há apenas uma regra: a de amar, respeitar e aproveitar intensamente quem temos ao nosso lado. Todos os dias, todos os segundos desta maravilhosa, mas imprevista, vida.
Alda Benamor
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