O que traz de novo esta obra “Violência Doméstica e Crimes Sexuais”?

Fundamentalmente esta obra procura resolver uma lacuna existente no nosso país neste tipo de publicações: o facto de existirem apenas pequenas brochuras muito genéricas acerca das medidas que podem ser utilizadas em determinada situações de violência e vitimização que alguém possa estar a passar, ou o facto de por vezes encontrar-se alguns muito bons manuais institucionais, mas apenas dedicados a um único tema. Mais ainda, a maioria das vezes, no caso da violência doméstica, há muito o pendor de confundir-se violência doméstica com a violência de género (ou seja, a vítima identificada é maioritariamente a mulher), e quem trabalha no campo, sabe que é vítima de violência doméstica qualquer pessoa que esteja a ser alvo de comportamentos previstos nos artigos 152 e 152A do Código Penal da República Portuguesa, respetivamente, Violência Doméstica e Maus Tratos.
E finalizando, este manual é o único, tanto quanto podemos conhecer, que apresenta, em Portugal, uma preocupação não apenas em compreender os fenómenos de violência doméstica e de crimes sexuais (já muito estudados), mas que se centra mais na apresentação de sugestões práticas, baseadas em estudos e casos reais, portugueses e de outros países, seguindo as normas internacionais da Boa Intervenção em situações de Crise e necessidade de apoio à vítima.

Como está estruturada...tem testemunhos?

Para manter a confidencialidade das vítimas, a estratégia seguida foi utilizar, quando adequado, os testemunhos das vítimas e a nossa experiência como clínicos e interventores sociais na explanação das medidas possíveis a tomar. É sempre muito perigoso, neste tipo de casos, transcrever o testemunho de uma vítima, mesmo que se procure transformar o discurso para que seja não identificável. A questão é que como cada relação é muito própria e idiossincrática, pode ocorrer que o mínimo identificador passe despercebido ao leitor comum, mas não passe ao agressor. Daí utilizar a estratégia do discurso ou testemunho indireto. Assim mantém-se o anonimato das vítimas e expõe-se de forma muito concreta a realidade horrível pela qual passam, incentivando outras vítimas e conhecidos a agir de forma proactiva para quebrar o ciclo de violência.

Os números de violência doméstica em Portugal ainda são gritantes. Como se pode mudar esta situação, na sua opinião?

Não apenas os números são gritantes como as sinalizações e queixas aumentaram em mais de 1000 % na última década. Este aumento dos números deve-se, muito provavelmente à maior facilidade e informação que as vítimas, familiares, amigos e profissionais têm em estar conscientes que a denúncia deve ser feita. Muito provavelmente então, não está a aumentar-se a Violência, mas sim este fenómeno está a tornar-se mais visível pelo aumento de denúncias.
Para além disso é importante que o cidadão comum tenha a perceção que os crimes de violência doméstica, de maus tratos, e muitos crimes sexuais são considerados Crimes Públicos, e assim são considerados de denúncia obrigatória (para qualquer funcionário público que, fruto da sua ação junto à vítima, tenha conhecimento desta situação, mesmo que não conheça o alegado agressor – Art.º 242 do Código de Processo Penal, sob pena de incorrerem num crime de omissão, sendo punidos criminalmente) e para um cidadão que apenas tenha conhecimento mas que não seja no âmbito de um contacto previsto no artigo anterior, mantém, pelo menos, a obrigação moral de denúncia.

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Ora bem, e como poderíamos mudar esta situação?

Sinceramente julgo que tem que haver a conjugação de duas estratégias: aumento considerável de informação e de sensibilização / educação para a não-violência, conjugado com a aplicação efectiva das leis que já estão tipificadas como crimes.
Se as nossas crianças forem educadas num ambiente favorável à partilha de sentimentos, à democracia responsável, à aceitação de regras e a serem contrariadas de forma construtiva quando tal tiver que ser, sem contudo se recorrer à violência, a probabilidade de permitirmos o seu desenvolvimento sem que mais tarde venham recorrer à violência é maior. Vejamos que, como Portugueses, conseguimos contrariar hábitos antigos como a utilização de cinto de segurança no automóvel e redução de consumo de tabaco na presença de pessoas não fumadoras. No início qualquer uma das duas medidas causou muita resistência, todavia, hoje, podemos verificar uma redução considerável nesses comportamentos, encontrando-se mesmo uma espécie de consciência coletiva que compreende que tais comportamentos e o seu controlo devem ser mediados no sentido não apenas da segurança e proteção do próprio mas da comunidade como um todo. E estamos a mudar!
Em suma, julgo que a questão, difícil é certo, centra-se na educação para a cidadania e quando tal não for suficiente, a devida penalização.

Um dos temas que aborda é o planeamento da fuga. Infelizmente essa é uma das alternativas, certo?

Casos há, infelizmente, em que nada mais resta à vítima que não seja a fuga. Não podemos esquecer que o agressor, em qualquer um dos tipos de crimes abordados no livro, não é “apenas mau”, como em termos de senso comum muitas vezes se diz. Ocorre que, por vezes, o agressor tem uma ligação patológica de posse com a vítima. Ou seja, para si, no caso da violência doméstica (do homem para a mulher), o agressor vê a mulher não apenas como sua esposa, mas como simplesmente “sua”. Ou seja, ele detém a posse da mulher, e por isso, determina, julga, e faz, o que pensa ter direito, porque, na sua mente, a mulher é sua pertença. Em casos mais graves, apenas com tratamento psiquiátrico e psicoterapêutico especializado se conseguiria ter a esperança de quebrar esta ideia doentia. Sabemos contudo que a maioria dos agressores não procura ajuda, particularmente porque não considera ter qualquer problema (e temos que juntar a isto os processos culturais e educativos que, infelizmente, em alguns contextos, marido que é marido, tem que o demonstrar pelo evidência da força e da agressão).
Nesses casos, cada dia que a vítima atrasa a sua fuga, é mais um dia em que a sua segurança, vida própria e dos seus filhos e outros familiares está em forte perigo!

Fuga para onde? Muitas vezes não há para onde ir...

Neste livro procuramos desconstruir essa ideia. Na verdade, HÁ SEMPRE PARA ONDE FUGIR! Vejamos: é verdade que não existe uma rede de acolhimento suficiente para poder acolher todas as vítimas que, em caso de fuga, necessitem de um acolhimento seguro para si e para os seus. Todavia, na minha opinião, mais do que preocupar-nos com a expressão “Não há para onde ir…”, a vítima deve ser incentivada e preparada para encher-se de coragem e tomar uma decisão primária: “Tenho que fugir… e colocar-me a mim e aos meus (no caso de levar os filhos) em segurança…”
Se for planificada a fuga, atempadamente, a vítima pode recorrer às casas abrigo de mulher vítimas de violência doméstica, pode ser alojada numa pensão, a expensas do estado (procurando para isso os serviços de assistência social), ou pode recorrer a ajuda de amigos ou mesmo desconhecidos.
Sabemos que muitos amigos têm receio de acolher uma vítima. Há o medo das represálias, o medo de colocar a própria família em risco para poder ajudar outra.
Todavia, os leitores ficariam surpreendidos se tivessem conhecimento de o quanto os amigos e outros familiares são importantes no acolhimento de vítimas em situação de fuga.
Para além disso, de forma informal, existe em Portugal uma rede, muito informal, de famílias que permitem o acolhimento de vítimas que estão em trânsito ou necessitam de estar albergadas por poucos dias, até que medidas policiais e de segurança sema tomadas. Pela minha experiência, as instituições que melhor estão preparadas para providenciar tal apoio, são a APAV, as Santas Casas de Misericórdia, os Gabinetes de Apoio à Vítima, e tantas outras instituições Governamentais e não-governamentais.
Não posso deixar contudo de concluir esta resposta referindo que a primeira grande vitória de uma vítima é quando decide libertar-se e deixar de ser posse do agressor. A partir daí, deve procurar as ajudas necessárias que estejam ao alcance de outros e de si própria.
De qualquer forma, por mais difícil que sejam as condições que venham encontrar nessa fase de crise e de difícil transição, serão menos más que continuar a sujeitar-se à situação de vítima. Ninguém é obrigado a sofrer para sempre!

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Até que ponto a lei protege as vítimas?

A lei protege as vítimas em dois grandes níveis. Numa primeira abordagem, através das várias alterações que estes crimes vão sofrendo no que toca à sua classificação e tipificação no Código Penal. Para se ter uma ideia, o crime de Violência Doméstica, apenas foi tipificado como Crime Público, na reforma Penal de 2007 (com a subsequente tipificação de obrigatoriedade de denúncia já explicitada). Até lá, uma mulher vítima de violência doméstica tinha que fazer queixa e constituir-se assistente (contratar advogado ou pedir apoio do estado) acarretando com o peso da iniciativa de “dar a cara” e identificar o agressor, tendo depois que fazer-se prova em tribunal que a sua denúncia não era vazia de sentido ou mesmo mal-intencionada.
Por exemplo, se uma mulher que fosse efetivamente vítima de violência doméstica, antes de 2007, fizesse uma denúncia do agressor, e se por acaso o processo chegasse a termos em tribunal, e ainda por cima não se fizesse prova que o marido ou companheiro de facto a agredia, então, ainda se arriscava a ser processada por denúncia caluniosa, pelo próprio agressor, podendo ser condenada, a vítima!
Hoje, qualquer pessoa, vítima ou outrem, apenas tem que sinalizar o caso a entidade competente (Ministério Público, Forças Policiais, APAV, etc.,), e esta dará conhecimento ao órgão máximo que regula a investigação criminal que procede à investigação. Se no final da fase de inquérito houver motivos para acusação, será então o Ministério Público a proceder à acusação e respetiva constituição de arguido, livrando-se assim a vítima de ter que arcar com o ónus de recair sobre si a exposição e risco perante o agressor).

E qual o segundo nível?

Numa segunda linha, a lei de prevenção, proteção e procura salientar prevê as vertentes de prevenção, proteção e assistência às vítimas, através de instituições e mecanismos vários (Lei n.º 112/2009). Grande parte das preocupações passaram a centrar-se no tratamento judiciário das questões penais, consagrando regras especiais para o procedimento penal.
Das principais alterações relevantes advenientes da alteração de 2007 no âmbito judiciário encontramos: a) novo regime da detenção; b) aplicação de medidas de coação urgentes; e c) das declarações para memória futura,

O day after do ato violento é um dos mais complicados. Como deve agir a vítima?

Na opinião mais corrente do povo, a resposta deveria ser, depende! Na minha opinião, NUNCA se deve desculpabilizar um ato de violência. Já a capacidade de perdoar é algo mais sublime que alguns de nós, humanos, desenvolvemos mais do que outros. Mas perdoar quem nos continua a agredir, é muitas vezes assinarmos a nossa própria sentença de morte, pois pode ocorrer que um dia, talvez um dia, já não se possa pedir ou aceitar o perdão, dada a gravidade das agressões.
Assim, perante uma agressão, a vítima, na minha opinião, deve agir imediatamente, nos termos do que aqui tem vindo a ser abordado.

1. E as crianças no meio de uma situação de violência doméstica ...como podem agir?

Muito pouco está ao alcance de uma criança. Por isso o legislador considera a maior parte dos crimes contra a criança um crime contra a sua autodeterminação, e por isso também os tipifica como crimes públicos. Nas crianças mais velhas pode-se treinar a capacidade de pedir ajuda, de se colocarem em segurança numa situação de conflito, de partilhar os problemas com alguém de confiança, entre dezenas de estratégias abordadas no livro. Obviamente o papel dos adultos na identificação das crianças que possam estar em risco é algo aprofundado no livro, onde são apresentados inúmeros exemplos de deteção de maus tratos e outras agressões e a forma como o adulto deve lidar com a situação, bem como treinar a criança a lidar com elas.

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A crise tem afetado estes números de violência...?

Os dados são contraditórios. Não há ainda estudos epidemiológicos que permitam estabelecer uma relação de causalidade entre a denominada crise social e económico financeira e o aumento da violência doméstica.
Até termos esses dados, e embora seja tentador “culpar” a crise para muitos males da nossa sociedade, corremos o risco com isso de estarmos a desculpabilizar os agressores e presenteá-los com fatores atenuadores. Acredito sim que esta é uma questão intemporal, e que, embora possam haver pontualmente casos em que a crise eleve o potencial de agressividade (fazendo fé ao adágio popular “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”), a grande questão é a educação, os valores, os princípios segundo os quais uma família se foi alicerçando. Se conhecemos famílias que, com a crise económico financeira parecem desagregar-se, também conhecemos famílias que quanto mais dificuldades passam mais se unem e entreajudam. Assim, considero que não é por aí.
A educação e os valores estão no princípio de tudo!

O que espera obter sinceramente com este livro?

Pretendo, talvez ingenuamente, que os agressores percebam que hoje, já não é sinal de poder e liderança utilizar de violência. Pelo contrário, é sinal de fraqueza.
Pretendo que todos nós tenhamos a coragem de denunciar e ajudar as pessoas que estão a ser alvo de violência.Pretendo que as pessoas percebem que é dever moral e para muitos, uma obrigação jurídica denunciar e apoiar as vítimas.
Já chega de serem sempre os mesmos a denunciar! Temos que criar uma rede coletiva de informação, formação, apoio, acolhimento e denúncia.
Obviamente, por fim, pretendo que a vítima (e familiares e amigos) perceba que apenas continuará na condição de vítima enquanto deixar que isso aconteça! É à vítima e aos seus mais próximos que cabe quebrar este ciclo de violência.
Alguém, porventura estará à espera que a maioria dos agressores mude o seu comportamento por um mecanismo mágico de introspeção?
Não tenhamos ilusões. Alguns de nós humanos, por doença, feitio, personalidade ou o que quisermos chamar, temos o potencial de fazer muito mal ao nosso semelhante. Se a vítima continuar a conviver com o agressor numa relação fechada e não permitir que entre ajuda nessa relação, estará a cometer um dos maiores erros a que Nietzsche chamou de “Sistema Estanque”: um sistema podre, de horrores, que tende a piorar, e que leva o ser humano à sua própria destruição.
Por fim, desejo que todas as vítimas sejam livres, e ajudem a não perpetuar o processo de agressão!
Todos juntos temos que conseguir! Ou não haja maior quantidade de pessoas sãs do que agressores!