"Vamos celebrar o que é normal" e assim nasceu 'Catarina, uma incrível história banal', o mais recente livro de Catarina Raminhos.

Depois de mais de uma década ao lado de uma das referências do humor português, a escritora mostra-se tal como é numa autobiografia que a dá a conhecer como mais do que a mulher da vida de António Raminhos.

A infância, a história de amor, a experiência com o aborto e as suas Marias são alguns dos temas que aborda no livro e que serviram de ponto de partida para uma conversa em que dominou a transparência.

O facto de se descurar um bocadinho a normalidade torna as pessoas ansiosas e até frustradas por não conseguirem fazer algo de outro mundo

Porque é que a sua história é "incrivelmente banal"?

Quando pensei em escrever o livro não foi por achar a minha história incrível, mas sim por achá-la banal. Achei que havia uma série de episódios com que muita gente se identificaria. Desde sempre que se fala muito sobre temas muito fraturantes e, por exemplo, o pós-parto, o aborto, a relação com o corpo, às vezes não são tão falados e as pessoas ao passarem por essas lutas sentem-se sozinhas. Acontece a muita gente e as pessoas saberem isso torna o tema um pouco mais leve.

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Catarina Raminhos com o livro 'Catarina, uma incrível história banal'© Instagram

O livro nasceu da necessidade que mostrar que é uma mulher normal com os problemas comuns de uma família?

Sim, é quase aquele hashtag das mulheres reais. É mostrar que somos uma família como outra qualquer e nem acho que fale como um elemento da família, o livro é a minha visão muito pessoal. Quando as pessoas lerem, vão perceber que sou uma pessoa normal com os dramas que muita gente já teve, que já passei por episódios difíceis e ultrapassei. A mensagem é que se eu consegui, qualquer pessoa consegue.

A questão é que eu acho que a normalidade é muito desvalorizada. Hoje em dia as pessoas falam muito dos talentos, de coisas extraordinárias. No confinamento as pessoas falavam muito de aproveitarem o tempo e dedicarem-se a uma arte qualquer, e é perfeitamente normal que alguém tenha consigo fazer nada. Em vez de se valorizar sempre os talentos, vamos também celebrar o que é normal. O facto de se descurar um bocadinho a normalidade torna as pessoas ansiosas e até frustradas por não conseguirem fazer algo de outro mundo. No primeiro confinamento, inventei imensas coisas giras para fazer com as miúdas, mas foi aos poucos. Ninguém tem energia e motivação para estar sempre a inventar coisas.

O primeiro confinamento coincidiu com uma mudança de casa.

Foi uma coisa jeitosa. Começámos a fazer a mudança, não contratámos nenhuma empresa porque não se podia, começámos a arrumar coisas em caixas, só os dois, com as miúdas em casa. Foi um período difícil. Na altura estava a escrever outro livro, foi difícil conciliar tudo, mas tínhamos de fazer a mudança.

Dedicou este livro à sua família. Cresceu numa família numerosa, em que é que isso contribuiu para a mulher que é hoje?

Tudo o que sou hoje tem muito que ver com o que me aconteceu na infância. Isto é um lugar comum, mas consigo perceber o impacto que isso teve. Cresci numa casa cheia de gente e não é que eu tivesse o sonho de ter muitos filhos, mas fez-me perceber o meu lugar: Eu sou uma pessoa no meio destas todas e isto tem de funcionar como uma comunidade, toda a gente tem de ajudar. Eu e as minhas irmãs desde pequeninas que ajudávamos os meus pais.

Crescer com respeito pelos outros porque partilhávamos o mesmo espaço e a casa dos meus pais era mesmo muito pequena. Isso moldou muito a minha forma de ser, fez-me perceber o que é que os meus pais fizeram bem ou não enquanto educadores e o que eu quis alterar quando fui mãe.

Além dos livros que assino, também faço ghostwriting (escrita-fantasma), escrevo livros para outras pessoas. Vivo basicamente disto e das redes sociais

Como era em criança?

Costumo dizer que era uma seca, super bem comportada e calminha. Era uma miúda que se preocupava com os outros. Ao mesmo tempo que era muito virada para dentro - adorava estar no meu quarto a escrever, era introvertida -, também tinha uma necessidade grande de comunicar e estar com as pessoas, gostava de participar nas conversas todas. Eu e as minhas irmãs sempre tivemos muito sentido de humor, foi algo que existiu desde sempre na minha família.

Esse gosto pela comunicação acabou por se refletir nas suas escolhas académicas e profissionais. Foi jornalista e depois trabalhou em produtoras televisivas. O que a fascinou na comunicação?

Quando escolhi jornalismo o que me fascinava era a missão, a verdade. Fui perdendo isso, porque há uma série de fatores, como os ordenados, que não são motivadores na profissão. Depois recebi uma proposta para ir trabalhar para uma produtora e já estava um bocadinho cansada do jornalismo, da imprensa escrita, porque trabalhava em dois jornais - era colaboradora do DN e depois do JN - e depois trabalhava num jornal regional para ganhar mais dinheiro. Cansei-me muito disso. Com essa proposta, decidi que estava na altura de mudar e aceitei. Comecei a gostar muito do trabalho em televisão. Trabalhei até à Maria Leonor nascer, depois pensei que seria incompatível ter três crianças e um trabalho que normalmente não tem hora para começar e acabar. Entretanto, tive uma empresa de eventos com uma amiga, mas na verdade era uma distração até assumir isto que é o que eu gosto de fazer que é escrever. Tinha medo de não ser boa, mas lá ganhei coragem e vim para casa escrever. Além dos livros que assino, também faço ghostwriting (escrita-fantasma), escrevo livros para outras pessoas. Vivo basicamente disto e das redes sociais.

Encontrou o equilíbrio familiar e profissional?

Sim, acho que ganhei mais tempo. Ao trabalhar a partir de casa, noto que os dias me rendem mais.

Somos mulheres, temos anos e anos de lutas, sangrentas até, para nos conseguirmos emancipar e agora tenho uma miúda a dizer que não devia usar vestidos compridos?

Não tendo ambicionado uma vida pública, estar ligada ao meio ajudou-a a saber lidar com a visibilidade?

Trabalhei com figuras públicas, mas acho que isso só se consegue perceber quando nos calha a nós. Nas redes sociais, que estão cada vez mais aguerridas, a maneira como lidamos com isso tem muito que ver com a maneira como estamos na vida, não é uma coisa que se possa ensinar a alguém. A pessoa aprende sozinha quando lhe toca a si. Normalmente, quando vejo algum comentário desagradável, prefiro ignorar, não bloqueio a pessoa, simplesmente não respondo. Normalmente há pessoas que vêm responder por mim. Mas às vezes, quando as pessoas são demasiado inconvenientes, acho que temos de responder porque é demasiado parvo fingirmos que não lemos. Raras vezes respondo, mas até é uma coisa que tenho feito mais do que fazia. Naturalmente que à medida que vou tendo mais seguidores, aparecem mais pessoas deste género.

Houve experiências duras como consequência dessa exposição?

Vale muito aquele ditado popular ‘quem não se sente não é filho de boa gente’. A forma como lidamos com as situações tem que ver como nos sentimos naquele dia. Há comentários que num dia que não está a correr bem ganham um peso maior. Sou uma pessoa normalmente tranquila e procuro não ligar, mas às vezes não é possível.

Por exemplo, o episódio nas Maldivas. Estávamos de férias, em fevereiro do ano passado, e publiquei uma foto em que estou com o Raminhos, ele de calções e eu de biquíni. Foi a minha filha que tirou a foto, que está muito bonita porque foi ao fim do dia. Publiquei a foto numa de dizer que as Maldivas devem ser maravilhosas a dois, mas que a cinco também estavam a ser. Era um momento feliz, tínhamos conseguido juntar dinheiro para ir porque era um sonho que tínhamos. Recebi imensos comentários e se calhar 95% eram positivos, mas 20 ou 30 comentários eram a dizer que com o corpo que tenho não devia publicar fotos em biquíni. Houve pessoas que não comentaram o post, mas que me enviaram mensagem privada a dizerem que se eu gostava de usar vestidos, devia usá-los compridos porque as minhas pernas não eram bonitas. Bullying a sério. Tinha levado o computador para vermos séries, mas tive de escrever um texto no meu blogue sobre o tema porque achei demasiado. O que me fez escrever foi o comentário de uma miúda de 21 anos que disse isso de usar os vestidos compridos. Somos mulheres, temos anos e anos de lutas, sangrentas até, para nos conseguirmos emancipar e agora tenho uma miúda a dizer que não devia usar vestidos compridos? Achei que não tinha de perder tempo a responder-lhe só a ela, porque não sou mãe dela, não tenho de a educar, então escrevi um texto para o blogue sobre isso. É um dos poucos textos que passei do blogue para o livro. Não pretendo fazer disto bandeira, não é uma luta minha, mas é uma luta onde estou. Pensei que se tenho alguma visibilidade, tenho de a usar para as minhas causas.

O romance com António Raminhos começou com uma simples amizade de faculdade. O que é que nele a conquistou?

Primeiro achei-o muito irritante, mas depois começámos a estudar juntos na Bedeteca dos Olivais. Conversávamos imenso, parece uma coisa à filme. Nem sempre tudo é um mar de rosas, mas, de facto, o início foi uma coisa muito serena, foi acontecendo.

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Catarina e António Raminhos© Instagram

Estão juntos há mais de uma década. Sente que o vosso casamento é uma inspiração para outras pessoas?

Acho que sim porque isso nos chega de várias maneiras. As pessoas vêem-nos como uma referência de casal, há uma série de coisas que admiram em nós. É engraçado porque numa publicação ou outra escrevem que quando tiverem um marido querem que seja assim. Tenho sempre respeito pelo que é verdadeiro e genuíno, tento sempre, nos meus textos, mesmo quando falo do Raminhos, dizer que nem sempre tudo corre bem, há momentos mais difíceis. É por isso que há essa identificação.

No livro fala abertamente do aborto que sofreu antes da gravidez da Maria Rita. Diz que o facto de ter engravidado logo a seguir a ajudou a superar esse momento, mas, para o casal, o que muda depois disso?

Esses momentos acabam por ser uma espécie de cimento. Já nos dávamos bem, queríamos ser pais e aconteceu isso. Há uma união maior e é juntos que tentamos superar as questões. Perante situações mais dramáticas, o Raminhos usa muito o humor como arma porque é a maneira dele de se proteger e defender as outras pessoas. Também por isso acabei por não sofrer tanto com a situação. Sempre que sabia de alguém que tinha passado por um aborto, entendia aquilo como um momento de grande vulnerabilidade e ficava com pena. Quando me aconteceu a mim, achei estranho ter lidado tão bem com a situação. Fiquei triste - triste é o mínimo que se pode ficar -, mas achei sempre que mais tarde ia ficar pior, mas não. Claramente que ao ter ficado grávida da Maria Rita, o meu objetivo passou a ser aquele bebé. De início estava cheia de medo, faz parte.

Quando as pessoas dizem ‘três filhos educados da mesma maneira’, eu não concordo com isso. Não as educo da mesma maneira porque elas são pessoas diferentes

Porque é que a gravidez da Maria Leonor foi “uma espécie de filme de terror de classe B”?

A gravidez da Maria Leonor foi muito difícil. Recebemos uma chamada do gabinete de genética do Hospital de Santa Maria, isso nunca pode ser uma coisa boa. Tinha feito a amniocentese e tinha recebido o despiste para as principais trissomias, e estava tudo bem com o bebé. Muita gente não se apercebe disso, mas com a amostra que é tirada para a amniocentese, é feito o estudo do conjunto todo do ADN. Ou seja, enviam esse resultado das principais trissomias passado dois ou três dias e depois analisam o resto do ADN. No caso da Maria Leonor, quase um mês depois de eu ter feito a amniocentese, estava grávida de quase cinco meses, perceberam que havia uma falha no cromossoma 3. Percebeu-se que, à partida, o cromossoma 3 não tinha passado para outro e estava vazia de conteúdo. Foi quando a médica nos disse que só havia 22 crianças no mundo com o mesmo da Leonor. Ficámos sem chão.

A reação do Raminhos foi surpreendente.

Ele ficou: ‘Caramba, a miúda é mesmo especial’. Eu não consegui ter essa presença de espírito para concordar com ele. Para nós nunca foi uma hipótese interromper a gravidez. Já eram cinco meses e a bebé já fazia parte da família. Mesmo sem conversarmos um com o outro, dissemos à médica: ‘Venha ela como vier, nós vamos cuidar dela’. Até ao fim da gravidez, ela poderia desenvolver uma série de problemas. Não sabíamos como é que ela ia nascer. Havia coisas que pelas ecografias já se tinha percebido que ela não teria. Houve uma série de coisas que ela não tinha e que a médica nos descansou, disse-nos que a bebé não lhe inspirava cuidados nenhuns em particular. Acreditei sempre que a miúda não tinha nada, mas nem verbalizava muito para não desiludir as pessoas.

Hoje em dia, é uma miúda cheia de energia?

Ela nasceu perfeita. Usa óculos porque tem uma coisa que se chama Síndrome de Duane, que não tem nada que ver com o cromossoma e não tem mais nada.

Já houve várias Catarinas, mas esta, de hoje, é a minha preferida de todas. É um caminho que se faz. Não estou no fim do caminho, mas sinto que cheguei a um sítio mais bonito, em que não sou tão dominada pelas minha fragilidades e inseguranças

O que é mais desafiante na educação de três filhas em fases distintas do seu crescimento?

Quando as pessoas dizem ‘três filhos educados da mesma maneira’, eu não concordo com isso. Não as educo da mesma maneira porque elas são pessoas diferentes. Na abordagem que tenho com elas, não uso as mesmas estratégias. A Maria Rita é muito mais introvertida, enquanto as outras só tenho de ouvir porque elas já partilham tudo naturalmente. Quando as pessoas dizem que educaram os filhos da mesma maneira, acho que usar a mesma bitola para as três é um erro muito grande. Não tenho problema em assumir que gosto das três de maneiras diferentes, não é dizer que gosto mais de uma que de outra. Sou mãe das três, mas consigo olhar para elas independentemente de serem minhas filhas, consigo ver as qualidades e os defeitos. Eu e o pai temos de trabalhar com elas para as corrigir.

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Catarina Raminhos com as três filhas: Maria Rita, Maria Inês e Maria Leonor© Instagram

Enquanto pais, a Catarina e o Raminhos assumem ‘papéis’ diferentes em casa?

Logo quando a Maria Rita nasceu decidimos que nenhum ia ser o polícia bom e o outro o polícia mau, até porque eu já sei que seria o polícia mau. Nós temos a mesma perspetiva sobre a educação das miúdas, nunca foi preciso conversarmos muito os dois antes de lhes dizermos alguma coisa, estamos alinhados. Até posso não concordar muito com uma coisa que ele diga e vice-versa, mas nenhum corrige o outro à frente das miúdas. As coisas maiores, por exemplo, elas terem ido para ensino doméstico, estivemos sempre de acordo. De início estava muito tempo sozinha com elas, porque o Raminhos tinha muitos espetáculos, mas sentia que a forma que as educava era dos dois.

Como descreve esta fase da sua vida?

Olhando para trás, é como se já houvesse várias Catarinas. Olho para uma fotografia minha em adolescente e sinto-me quase como mãe daquela miúda. É engraçado ver as coisas em perspetiva. Já houve várias Catarinas, mas esta, de hoje, é a minha preferida de todas. É um caminho que se faz. Não estou no fim do caminho, mas sinto que cheguei a um sítio mais bonito, em que não sou tão dominada pelas minha fragilidades e inseguranças. As miúdas não estão mais autónomas e posso focar-me mais no meu trabalho, que me dá imenso prazer. Estou numa fase muito feliz, mesmo a imagem que me surge ao espelho é mais tranquila. Esta é se calhar a melhor fase da minha vida.

Como imagina o futuro a nível profissional e familiar? Que sonhos tem ainda por realizar?

Vejo o futuro com curiosidade, espero manter esta curiosidade por aprender coisas novas. Já estou a escrever o próximo livro. Acredito sempre que o melhor ainda está por vir.

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