Esta foi a primeira vez que Diogo Morgado trabalhou com António-Pedro Vasconcelos. 'Parque Mayer’ é um filme inspirado no início do Estado Novo, mostrando o papel importante do teatro de revista no tempo em que se vivia em ditadura. Na altura, lutava-se pela liberdade e pouco se sabia além da informação que conseguia passar pelos pingos da chuva.

Para o ator português, foi uma mais-valia e um desejo realizado o seu caminho ter-se cruzado com o do realizador.

Fã assumido do trabalho de António, Diogo adorou esta experiência e partilhou-a com o Notícias ao Minuto.

Apaixonado pelo faz e sempre muito simpático, o artista falou abertamente sobre o seu trabalho e carreira que construiu ao longo das duas últimas décadas. Além disso, não deixou de partilhar também as dificuldades que se vivem em Portugal em relação à sétima arte.

‘Parque Mayer’ é o nome do filme do mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos, do qual é protagonista. Uma longa-metragem estreou no dia 6 de dezembro… O que distingue este filme de outros?

Várias coisas. Fala do Parque Mayer. Eu, por exemplo, se não tivesse tido o privilégio de ter estado dois anos da minha vida a trabalhar neste teatro, a fazer revista à portuguesa, não saberia muitas das coisas que hoje sei e da importância que a revista teve para Portugal numa altura específica, em que vivíamos numa ditadura. As pessoas não faziam a mínima ideia do que se estava a passar no país porque basicamente o governo privava-as de informação. Governava pelo medo. Era muitas vezes através da revista à portuguesa, nomeadamente aqui no Parque Mayer, que as pessoas, por entre os textos que passavam pela censura, iam sendo informadas daquilo que acontecia no país. Além de uma grande e boa história, é um filme que é serviço público.

É a primeira vez que trabalha com o António-Pedro Vasconcelos.

Há muitos anos que eu queria trabalhar com ele. Sou fã do António desde os filmes mais antigos. É um dos poucos cineastas portugueses que conhece o seu público e que se preocupa a contar uma boa história. E não tem medo nem pudor de ter de agradar a uma classe. Se ele acha que a história faz sentido, ele preocupa-se em fazer chegar essa história às pessoas da forma que ele acha que as pessoas a vão compreender. Nesse sentido, é um cineasta ao serviço das pessoas, do público e de um público que conhece. Quando surgiu a oportunidade de trabalhar com ele, obviamente a expectativa era muita porque eu era fã do trabalho dele mas não o conhecia pessoalmente. Nunca sabemos se é a mesma coisa. Traduziu-se numa experiência mil vezes melhor. Não só é um homem incrivelmente culto no ponto de vista da vida, cinema, como é um gentleman, incrivelmente generoso. É um bem-disposto, fora do normal. Alguém que tenho como modelo. Quando for grande quero ser assim.

Como é que o descreve enquanto realizador, sendo que também já teve a experiência de estar no papel dele?

Para mim a realização não é mais do que um convidar às pessoas, sejam elas atores ou técnicos, a darem o melhor de si para uma história que faça sentido a eles também. E o que o António faz é isso. Não é um cineasta ditador, tem uma ideia muito clara do que quer para a história. Convida os atores a participar, convida o guarda-roupa a participar, cria uma plataforma criativa onde toda a gente se sente bem e participativa. É tudo o que se pode querer num cineasta.

O que é difícil é quando as cenas são injustificadas para a história. Neste caso as cenas são completamente necessárias à história. São cruciais. Não faria sentido não as fazer

Com este trabalho realizou algumas cenas mais íntimas ao lado de Francisco Froes... Como é a sua personagem?

Era uma figura que havia muito na altura. É um tipo 'bon vivant'. Neste caso, ainda para mais, é um artista de variedades, super conhecido, muito adorado pelas pessoas, nomeadamente pelas mulheres. O modelo dele é o Clark Gable, portanto, aquele cabelo para trás, o bigode… Cantor de fado entre outras canções. Faz parte de um imaginário. Na altura existia o galã romantizado, sempre com a voz colocada, muito bem vestido, a afagar o bigode… Peguei nesse género e servi aqui o Eduardo que nesta história vem parar ao Parque Mayer. É a primeira revista dele. Já é conhecido no país, mas nunca fez revista. Justamente na mesma revista em que uma sopeira (isto é o nome que damos no filme, não sou eu a chamar sopeira a ninguém) vem do Interior com o sonho grande de ser atriz do Parque Mayer. Eles juntam-se na mesma ocasião. Uma terceira figura é o Francisco Froes que faz aqui um autor de revista, que tinha na altura uma ginástica incrível de inteligentemente passar coisas que tinha de falar às pessoas pela censura. Passando pela censura, ainda se conseguia dizer muita coisa. Isso é bonito.

Já interpretou várias personagens, mas é difícil fazer este tipo de cenas?

Não. O que é difícil é quando as cenas são injustificadas para a história. Neste caso as cenas são completamente necessárias à história. São cruciais. Não faria sentido não as fazer. É uma cena como qualquer outra que é importante para uma história.

Acho que a liberdade do artista termina quando em vez de comunicar, de tocar, estraga e magoa

Como referiu há pouco, o filme é uma homenagem ao teatro de revista e também a todos os que no Parque Mayer lutaram pela Liberdade. Onde é que acaba a liberdade do artista?

Por exemplo, uma discussão que várias vezes se tem hoje em dia acerca do humor, da comédia, em que o humorista defende que a comédia não tem limites, que a pessoa deverá poder rir-se e brincar com o que quiser. Eu não concordo. Acho que a liberdade do artista termina quando em vez de comunicar, de tocar, estraga e magoa. Quando não é construtivo, quando não levanta questões, quando é puramente sádico e quando cria no máximo dos máximos uma gargalhada tabu, o artista começa a sair fora do seu campo de liberdade. Tirando isso, tudo deve ser válido. Desde a sexualidade ao abstrato, ao silêncio, ao estúpido, ao básico, à coisa mais parva, ao infantil… Tudo isso é o reino das artes, da criação.

Nós passamos uma vida em que podemos nascer e morrer. Cada vez que uma pessoa espirra a outra diz 'santinho' e nós não sabemos porque é que se diz 'santinho'. Tomamos as coisas como adquiridas? Porque é assim que fomos criados na sociedade e não questionamos. Muitas vezes, ao artista basta questionar. Dizer assim: ‘Porque é que se diz santinho?’. O artista é isso, é questionar, muitas vezes, ou então viajar na coisa. Tudo o que seja questionar e viajar faz parte do trabalho do artista.

Além de estar nos cinemas, também está presente na novela ‘A Teia’, da TVI… Como é que está a correr?

Nós não lhe chamamos novela pelo simples facto de que não é um formato de novela. A única coisa que se compara talvez seja o facto de ser diário. Desde a duração, são muito menos episódios e a temática estrutura é completamente diferente. Não tem aquela história do romance como espinha dorsal. Foge muito ao formato daquilo que nos fomos habituando enquanto novela. Essencialmente assenta na intriga, no quem é que fez o quê e as pistas vão-se sobrepondo.

Está a correr muito bem. São coisas deste género que são possíveis em Portugal enquanto não temos estrutura financeira para suportar séries, tal e qual como se faz lá fora. Apesar de estarmos a caminhar para lá, enquanto não temos isso, isto é o híbrido. Economicamente é possível e ao mesmo tempo um bocadinho fora da caixa daquilo que é sempre o formato do costume das novelas. As audiências estão a falar por si e eu estou muito motivado, principalmente com a minha personagem.

Esta é a segunda produção desde que ‘voltou’ para a estação de Queluz de Baixo…

Eu não voltei para a TVI. Estou a trabalhar para a TVI, não tenho um vínculo específico com a TVI. Eles, de facto, desafiam-me. Estive durante muitos anos na SIC e a única razão que me levou a sair foi sentir que já não estava a ser desafiado naquilo que eu queria crescer como artista, ator e como pessoa. Senti que poucos eram os desafios que estavam a aparecer. Nesse sentido, a TVI surgiu com um desafio e eu aceitei. E ‘A Teia’ é exatamente isso, um desafio diferente.

Se calhar a comédia não é do agrado do Estado ou das pessoas que mandam, não sei

No ano passado estreou-se na realização de longas-metragens com o filme 'Malapata'. Quando é que surgiu a ideia de realizar este filme?

Já tinha feito algumas curtas. Algumas delas, inclusive, graças a Deus, premiadas lá fora. A minha vontade era obviamente depois destas curtas fazer uma longa-metragem. O 'Malapata' foi uma longa sem qualquer tipo de subsídio do Estado, apesar de nós tentarmos. Se calhar a comédia não é do agrado do Estado ou das pessoas que mandam, não sei. Decidimos fazer na mesma. Convidámos uns amigos, as pessoas que puderam ajudar, e investimos o nosso dinheiro para fazer o 'Malapata'. Correu bem! Apesar de não ter estado em muitas salas, as salas que em que esteve tiveram muita afluência e isso deu-nos força para fazer a segunda longa que vai estrear em março, o 'Solum'. Um filme de ficção científica completamente fora da caixa. Arrisco-me a dizer: Nunca antes em Portugal.

O que recorda das gravações de 'Malatapa'?

Essencialmente os amigos juntarem-se para fazer uma coisa em que acreditam. Tanto o Rui Unas como o Marco Horácio, toda a gente foi paga, exceto pequenas participações como o Manuel Marques e o Luís de Matos que fizeram questão de dizer que não queriam receber porque sabiam o esforço que estávamos a fazer. O que me lembro é disso, de um grupo de pessoas a fazer uma coisa em que acredita, que acha que faz sentido e que, de alguma forma, é o primeiro passo para quebrar um bocadinho das convenções daquilo que é o cinema e do ciclo vicioso em que está que é o subsídio do cinema.

Quais as maiores dificuldades que sentiu?

Essencialmente questões de dinheiro. Quanto mais dias de gravações tens, mais dispendioso é o filme. Fazer uma longa-metragem em pouco mais do que 15 dias é uma tarefa muito complicada.

Sente que em Portugal existe pouco apoio na área cinematográfica?

Sinto que existe o apoio suficiente. Sinto que o apoio está é mal gerido. A forma como é atribuído esse dinheiro não é justa, de todo. Mais do que não ser justa, está viciada. Não me quero alongar, mas a distribuição está viciada, está injusta, não é correta. Se houver um milhão e a primeira pessoa que concorrer ficar com um milhão, de repente tens 40 pessoas que ficam a zero. Seria muito mais justo se esse um milhão fosse dividido pelos dez ou cinco primeiros. Logo aqui é o critério de distribuição das coisas que não é justo.

Não precisava que me financiassem o filme todo. Precisava de uma ajuda, seja ela qual for, o mínimo que seja. Mil euros já me tinham ajudado e não aconteceu. Nós pagamos os nossos impostos e as nossas obrigações, quem gere esse dinheiro deve ser eclético, deve dar oportunidade a toda a gente por pouca que seja. As pessoas é que decidem depois se aquilo vale ou não, não é alguém acima de ti que vai decidir o que é que tu gostas.

Não é a prática de ir ao cinema que está em desuso. A prática de ir ao cinema ver um filme português é que está em desuso

Mas sente que o público português tem esta cultura de ir ao cinema?

O público português tem uma cultura de ir ao cinema. Basta ver os números. Se há quase dois milhões de pessoas a ir ver os ‘The Avengers’, não se justifica porque é que o filme mais visto em Portugal tem 600 mil espetadores. Alguma coisa aqui está a falhar. Não é a prática de ir ao cinema que está em desuso. A prática de ir ao cinema ver um filme português é que está em desuso. As pessoas não querem pagar um bilhete sentindo que vão sair insatisfeitas.

Tem de haver cinema de autor e de haver também outros géneros de cinema. A vida é feita disso tudo. Não gostamos só de pratos sofisticados, às vezes gostamos de um bom bife com arroz. E faz falta

Não há o reconhecimento do público português pelo trabalho feito cá?

Acho que não. Passamos por zonas, por ciclos. Volta e meia aparece um filme que nos reacende a chama e depois os três ou quatro seguintes que vêm matam a chama. Isto é um ciclo há anos e anos.

Um filme como o ‘Parque Mayer’, como ‘A Gaiola Dourada’ são filmes que aliam a visão de um cineasta, de um autor, mas ao mesmo tempo procuram agradar a um público e que esse público perceba a história que está a ser contada. Eu não posso estar a ver um filme com um manual de instruções. Para mim não faz sentido. Alguma coisa se perdeu no caminho. A mensagem não pode ser tão encriptada ao ponto de uma pessoa simples, normal que paga o seu bilhete não perceba. Não estou a dizer que tem que ser tudo básico, mas há um caminho a percorrer. Mais do que isso, não estou a dizer que não deve haver cinema de autor. Tem de haver cinema de autor e de haver também outros géneros de cinema. A vida é feita disso tudo. Não gostamos só de pratos sofisticados, às vezes gostamos de um bom bife com arroz. E faz falta.

Há uma frase que tenho quase como lema: Se tu fizeres bem, então vais querer sempre ser a pior coisa do projeto

Uma vez que tem experiências em ambas funções, como é passar de ator para realizador?

É absolutamente natural. Como ator, desde que me lembro, sempre fui um natural curioso por tudo o que envolve a mecânica de contar uma história, seja em cima do palco ou audiovisual. Aprofundei um conhecimento técnico que me permite estar à vontade com a questão técnica, burocrática, desde câmaras a lentes, formatos, edição. As cinco curtas que fiz, todas elas captei, editei, fiz a masterização, mistura de som, luz, tudo. Para mim, contar uma história não é só o ego de estar à frente, muito pelo contrário. É a humildade de perceber que não vale de nada se tudo não estiver a contar a mesma história. Uma luz lá atrás ou um figurante a tirar macacos do nariz pode estragar uma performance digna de óscar. O que é que me adianta ter um ator incrível se tenho um figurante a tirar macacos do nariz lá atrás? Ter a compreensão disto, que é um conjunto, faz-te apreciar tudo.

O que me faz mesmo ser apaixonado por isto é o conjunto desde o era uma vez até à palavra fim. É tudo o que envolve. Eu muitas das vezes altero algumas personagens minhas em função daquilo que acho que faz falta à história. Se um filme tiver pouco de uma coisa, tento moldar aquilo que estou a fazer, a minha personagem, para preencher aquilo que acho que pode estar em falta. Não vejo só o meu lado, vejo tudo. Há uma frase que tenho quase como lema: Se tu fizeres bem, então vais querer sempre ser a pior coisa do projeto.

Fala com uma grande paixão nos olhos… Este gosto vem desde pequeno? Sempre sonhou com o cinema, a representação?

Nunca sonhei com o palco, nunca sonhei em ser ator. Aliás, comecei aos 15 e só aos 20 é que percebi que estava tramado. Aos 15 era um miúdo que jogava à bola, fui apanhado nas coisas e, de repente, quando dei por mim estava a fazer novela. Quando acabei estreei-me no Teatro Maria Matos. Ser conhecido sempre foi uma coisa que me criou um desconforto enorme, muito novo. Hoje em dia já é uma coisa tranquilamente natural, em 97 não era. Havia uma novela por ano e eram pouquíssimas as pessoas conhecidas. Para mim foi um choque tremendo. Mas a verdade é que eu sempre me emocionei quando via um filme. Não foi com a capacidade de fazer que comecei a ficar apaixonado, foi apreciando o poder de uma boa história. O quão impactante pode ser na vida de uma pessoa.

Sinto que lá fora o ator tem muito mais participação criativa. Desde a roupa às cenas em si. Tem muito mais palavra a dizer. Aqui ainda se cultiva muito o poderzinho

O Diogo já teve a oportunidade de representar fora de Portugal… Quais são as principais diferenças que destaca do mundo da representação nos EUA e em Portugal?

Representar não é em si uma grande diferença. A grande diferença está no tempo de preparação de tudo, a pré-produção das coisas. Sinto que lá fora o ator tem muito mais participação criativa. Desde a roupa às cenas em si. Tem muito mais palavra a dizer. Aqui ainda se cultiva muito o poderzinho. Se o diretor disser que e se não sei quê pensar que… Isto vem do Salazar. Por exemplo, com o António isso não existe. Ele é um realizador ao nível internacional, das melhores pessoas com quem trabalhei. E lá fora é assim, é a arte de convidar as pessoas a trazerem o que de melhor fazem. Acho que as grandes diferenças são essas e obviamente as financeiras. Quanto mais dinheiro tens, mais tempo tens. O ‘Parque Mayer’ foi rodado, se calhar, em metade do tempo do que aquilo que o António gostaria. Isso traduz-se em dinheiro.

O que mais faz falta no nosso país no que diz respeito à sétima arte?

Variada. Um mercado eclético e com igual oportunidade, igual apoio do Estado. E deixar que seja o público a escolher.

O que espera viver daqui a dez anos?

Se puder continuar a viver como vivi estes dez já fico muito feliz.