Saídos da cidade de Burgos, pela AP1, vencida uma boa centena de quilómetros de asfalto desta Espanha de paisagem a roçar o entediante e de contornos ondulantes, espicaçados, aqui e ali, por pequenos bosques de coníferas, há um momento de emoção.
Aqui, das alturas, batidas por um vento frio, que passa a rasteira à calidez do verão, sentimo-nos em suspensão sobre a terra. Vamos iniciar uma marcha louca, no extremo da velocidade máxima, os 120 quilómetros/hora, em direção a uma manta de retalhos tecida em forma de searas, entrecortadas por vinhas e bosques. Tem nome esta imensidão. Vale do Ebro, um ninho de mais de 63 mil hectares de região vinícola que sabe como mel no palato de apreciadores de grandes vinhos. La Rioja, o primeiro território espanhol a receber Denominação de Origem Qualificada, na década de 1920 (embora já houvesse regulação na região desde o século XVI), é um acepipe no que respeita a néctares. Não querendo fazer significar quantidade a qualidade, o conforto dos números dá-nos uma real dimensão de grandeza.
Todos os anos, os mais de mil produtores de vinho deste território, lançam no mercado perto de 300 milhões de litros da bebida de Baco. Mais de 30% destes vinhos vão conhecer outras latitudes, longe da pátria de Cervantes.
Mergulhados no Vale do Ebro, conduzindo em estradas coleantes, havemos de ter como destino uma localidade, abrigo para uma singularidade arquitetónica no mundo dos vinhos. Em si, Elciego, como agora lemos na placa que nos anuncia a entrada no município de mil habitantes, em pouco difere de outros tantos lugares de La Rioja, no País Basco. Aglomerados de dimensão modesta, casas de pedra, pouco afoitas nas alturas, onde apenas chega o pináculo das igrejas.
Em Elciego, contudo, há dois nomes que congeminaram para deixar uma marca. O primeiro, Camilo Hurtado de Amézaga, VI Marqués de Riscal, fundador nos idos de 1850, da adega homónima que nos dá motivo para todo este caminho. O segundo, um dos marcos da arquitetura do século XX e XXI, Frank O. Gehry, o canadiano que no currículo nos apresenta o Museu Guggenheim, em Bilbao. Conhecendo o caráter disruptivo de Gehry, não será difícil imaginar que o Vale do Ebro ganhou uma assinatura especial. De tal ordem que o edifício inaugurado em 2006, assinado pelo norte-americano, atrai hordas de visitantes a Elciego. A cada meia hora, a máquina de satisfazer curiosidades a que chamamos Turismo, conduz sucessivas levas de três dezenas de visitantes para o âmago da Marqués de Riscal, casa produtora de vinhos que, anualmente, entrega ao mercado dez milhões de garrafas de tintos, brancos e rosés.
São 11h30 de uma manhã fresca de segunda-feira e a máquina funciona com uma precisão sincrónica. O nosso guia franqueia a porta de acesso ao centro de acolhimento do visitante, um espaço multiusos que serve de loja, bar vínico e espaço de prova (no final da visita).
É-nos anunciado que todas as explicações no decurso da visita têm uma língua oficial, o espanhol. Volvidos não mais de cinco minutos de caminho, nos jardins que ladeiam a adega, entre eles o frondoso e fresco Jardim dos Ingleses, sentamo-nos num auditório, ocupando um dos edifícios principais. Uma tela devolve-nos sob a forma de filme sucessivas décadas com a história da casa Marqués de Riscal. Recuamos a 1958, data de nascimento da adega. Viajamos a 1862, com o engarrafamento dos primeiros vinhos. Vamos a 1895, data do reconhecimento internacional, com os néctares Marqués de Riscal a afirmarem-se como os primeiros vinhos não franceses a ganharam o Diploma de Honra na Exposição de Bordéus. Sucedem-se datas, ora de prémios, ora de lançamentos de vinhos no mercado e expansão internacional. Até ser atingida a marca do milénio, com ela a afirmação dos vinhos Marqués de Riscal em 140 países e uma decisão da marca, criar a “Cidade do Vinho”.
“O edifício tem de estar em harmonia com a paisagem, com a localidade onde se insere, mas capaz de ser alegre, uma festa como o próprio vinho”. Frases que o visitante recebe em imagem e na voz do Gehry no filme a que assistimos.
O edifício da autoria de Gehry, epicentro de toda a adega, alberga um hotel de três estrelas e dois restaurantes, o Bistro 1860, de cozinha tradicional e um vanguardista, o Marqués de Riscal, que recebeu em 2011 uma estrela Michelin. Toda a estrutura parece ser pensada para fugir a classificações que possamos invocar quando por palavras queremos construir a imagem de uma adega. Ela existe, na forma do primeiro edifício do século XIX, depois ampliado em 1883. Estruturas em pedra pardacenta, atualmente aninhadas neste gigante de telhados ondulantes de titânio, em contorções e num trio de cores que vão do rosa, representando o vinho, ao dourado, em alusão à rede em malha que envolve parte das garrafas, e à prata, por referência às cápsulas, também das garrafas.
Um colosso que se apresenta, assim que franqueamos as sebes altas de vegetação, depois de deixarmos o centro de acolhimento ao visitante. Amparados por um caminho de alfazema aproximamo-nos da estrutura que mimetiza um movimento ondulatório, ao correr do vento fresco que desce desde as montanhas Cantábricas, a norte. A sul, erguem-se os Picos de Urbión. De permeio, este Vale do Ebro, a 500 metros de altitude, de solos calcários, beneficiando do aconchego entre as duas cordilheiras montanhosas. Aqui, o microclima congemina para a produção de uva, abrigado das aragens do Mar Cantábrico que impossibilitaria a vinha. Isto mesmo escutamos da voz do nosso guia enquanto passeamos entre fileiras de uma vinha em estaca, a pouco mais de 50 metros do hotel, estrutura que integra o complexo denominado “Cidade do Vinho” e que inclui um SPA, com vinoterapia.
Ficamos, ainda, a saber que toda a vindima, nos 1500 hectares da casa Marquês de Riscal, é feita à mão e que as dezenas de néctares com assinatura deste produtor, alguns provindo de vinhas com 70 anos, utilizam, maioritariamente, a casta Tempranillo (mais de 90%), Graciano (cerca de 7%), entre outras. Castas que feita a vindima irão descansar já sob a forma de mostos no ponto seguinte da visita.
É-nos franqueado acesso às adegas. Uma primeira, ampla, onde descansam 24 cubas de madeira, cada uma com capacidade para 14 mil quilos de uva. Dentro das cubas opera-se, logo após a vindima, que decorrerá já com agosto adiantado e setembro estreado, a primeira fermentação, a alcoólica, etapa inaugural do milagre de levar a uva até ao vinho. Depois, hão de descansar os vinhos em 12 tinas de oito mil litros, numa outra sala da adega, onde se dá a fermentação malolática. Finalmente, nesta viagem nas sombras da adega, onde a temperatura se mantém nos 15 ºC, vai o vinho estagiar em longos e silenciosos corredores. Nestes, uma multidão de 37 mil barricas perfilam-se em fiadas continuas. Cada uma destas barricas de carvalho francês (também as há de carvalho americano) com capacidade para 250 litros. Nenhuma delas com um tempo de vida útil superior a dez anos. Findo este período não termina o tempo destas guardiãs de néctares. A Marqués de Riscal vende-as para acolherem, numa segunda vida, outras bebidas como o Whisky ou a Genebra.
Não finda a visita sem que se dê a incursão à joia da coroa da Marqués de Riscal. Guardadas a sete chaves na adega velha, centenas de milhares de exemplares dos vinhos históricos deste produtor do norte espanhol. Há, inclusivamente, como nos explica o guia, garrafas de 1860. Vinhos únicos com direito a conhecerem a luz do dia em momentos especiais. Um deles, em 2008, aquando dos Jogos Olímpicos de Pequim. Por agora, nenhuma das garrafas irá conhecer a luz do dia. Apaga-se a luz e, entre paredes centenárias, o vinho ganha sabedoria até uma próxima visita.
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