Num passado recente, Joana Kabuki escrevia no site Repórter Sombra que em si se revelara uma “alma de escritora”, não “uma escritora”. Hoje, publicado o seu livro de estreia no romance, a obra Viradas do Avesso, Joana admite, com uma gargalhada tímida, que irá rever esta sua afirmação. Joana já se sente em pleno uma escritora. Na última década, Joana debateu-se com o manuscrito que, finalmente, conheceu os escaparates em abril deste ano. Um livro que entretece a história, as memórias, os desencontros e encontros de três mulheres, Berta, Alice e Carlota. Um trio de vozes que permitiu a Joana Kabuki exteriorizar-se. Escrever Viradas do Avesso foi um processo catártico para uma mulher que assume a sua timidez, mas que, amiúde, entrecorta a conversa com uma gargalhada extrovertida.
Na conversa que mantemos com Joana, as palavras vogam entre um Alentejo litoral, por ora mitificado como um lugar para habitar um futuro; as leituras de adolescência e outras de uma idade mais madura; o processo de escrita e também o encontro feliz com a editora Clube do Autor que deixa a sua chancela no livro de estreia de Joana. Uma conversa que se nutre de palavras sobre as angústias [por exemplo, a dificuldade de encontrar um título apetecível para a obra] e os desassossegos de Joana [a desconcertante vontade de descobrir coisas]. Na escrita não há apenas processo criativo e técnica, há que residir alma e coração.
Joana, julgo que para início de conversa será importante conhecê-la. Que retrato nos pode traçar de si mesma?
Sou desde sempre escritora de coração. Um sentir que me acompanha desde que me lembro de aprender a escrever. É um processo, uma dimensão em que tenho trabalhado ao longo dos anos. Trabalho em marketing e comunicação. Sou casada e tenho uma filha de 16 anos. Nasci em Lisboa. Adoraria viver no Alentejo, apesar de não ter aí raízes. Um Alentejo com vista para o mar, tão importante como este é para mim.
Na biografia que nos é apresentada no seu livro diz-nos que a paixão por escrever nasceu quando descobriu como isso se faz. Como se faz isso?
Juntando muitas palavrinhas [risos]. Como tudo o que é arte, a escrita pode ser aperfeiçoada, mas ninguém nos ensina a fórmula para seja um processo que corra bem. Fiz vários cursos de escrita criativa, onde aprendemos muitas coisas, mas não temos também ali a fórmula. Diria que é um processo de tentativa/erro.
Uma tentativa/erro que também está no processo de escrita deste seu livro?
Comecei a pensar na história para este livro há dez anos. Fui deixando a narrativa avançar, ora pegava nela, ora a deixava por algum tempo. De permeio, fui preenchendo caderninhos, adoro escrever à mão. Pensava para onde a história poderia ir. Depois, em 2020, houve o momento em que todos parámos. Deparámo-nos com a pandemia. E tive tempo. Tinha muitas dúvidas, dei a história a ler. Esta coisa do fio da história andar para trás e para a frente, levar os leitores para o passado, trazê-los ao presente, fazia-me questionar até que ponto seria entendível. Pedi à Lénia Rufino, também escritora, para ler as páginas que já tinha escrito. Diz-me a Lénia: “a única coisa que tens de fazer é continuar”. A minha filha também foi uma das minhas primeiras leitoras. Adora ler, pelo que tem uma capacidade boa para analisar as narrativas.
Pelo que me conta, não é uma escritora com um projeto de narrativa estruturado…
Sim. No caso de Viradas do Avesso, tinha uma ideia daquilo que iria acontecer e, na minha cabeça, o livro acabaria na primeira parte. O livro final tem três partes. Faltava ali alguma coisa e avancei para a segunda parte. Depois, já tinha o livro fechado, com o epílogo, mas continuava a faltar algo, não estava encerrado. Eis que um dia penso: ‘é isto, é o que vai completar a história’.
Como tudo o que é arte, a escrita pode ser aperfeiçoada, mas ninguém nos ensina a fórmula para seja um processo que corra bem.
Foi um processo que se fez de angústias…
Sim, principalmente a última parte, em que faltava alguma coisa e não sabia como a encontrar. E há um dia em que chega.
Diz de si mesma que a escrita lhe apazigua o desassossego. Que desassossego é esse de que nos fala?
O desassossego prende-se com a vontade de fazer e de descobrir coisas. A escrita ajuda muito as pessoas que nascem tímidas e envergonhadas como é o meu caso. Tenho muita coisa acumulada dentro de mim. A palavra escrita apazigua-me.
Escreveu no site Repórter Sombra que em si se revelou uma “alma de escritora”, não “uma escritora”. O que há de diferente nas duas expressões?
Ah! Julgo que já posso mudar isso [risos]. É anterior à publicação do livro. Há quem pense que para se ser escritor, há que ter inúmeros livros já publicados e aclamados. Há quem considere que basta ter um blogue onde se escreve. Como não tinha a pretensão de dizer que era escritora, escrevi aquilo que citou. Mas acho que agora posso mudar a minha apresentação[risos].
Perguntei-lhe como é como escritora, gostaria de perceber como é como leitora?
Leio sobretudo ficção, especialmente romance, não no sentido da história de amor, mas no sentido mais lato, como por exemplo a novela. Na juventude comecei a ler Agatha Christie, o que me fez querer ser escritora de livros policiais, mas pede-nos uma imaginação que talvez eu não tenha. Sempre gostei de ler José Saramago, mas a minha escritora de eleição é a Rosa Lobato Faria, com uma grande obra de romances, novelas, contos e poesia. Julgo que em Portugal não lhe deram a devida atenção. De Rosa Lobato Faria dizia-se “é a senhora das novelas”. Li todos os livros que escreveu no âmbito do romance. Adoro a simplicidade das suas histórias, mas com uma grande beleza de escrita. Fora de Portugal, aprecio a obra de Liane Moriarty. Ao chegar à segunda página dos seus livros já estou ‘presa’ às personagens. É uma autora com uma grande capacidade de criar personagens. Dá-nos vontade de conhecer aquela pessoa. Também gosto muito da escrita de Fredrik Backman.
Adoraria viver no Alentejo, apesar de não ter aí raízes. Um Alentejo com vista para o mar, tão importante como este é para mim.
Como foi o encontro com o Clube do Autor? Foi paixão à primeira vista?
Tenho uma paixão pelo Clube do Autor desde que a chancela nasceu. Sempre gostei do conceito de clube e apreciava o catálogo da editora. Quando acabei o meu manuscrito, enviei-o para várias editoras. O Clube do Autor foi quem me respondeu. Queriam conversar comigo. Fiquei entusiasmadíssima. Tem sido uma relação extraordinária.
Porquê “Viradas do Avesso”? Há pouco falávamos de desassossego, o título impele-nos para algum tumulto, vidas em desalinho. Concorda?
Tenho a dizer que inicialmente este não era o título que escolhera para o livro. Mas, logo na primeira conversa com a editora foi uma das questões que abordámos. Trabalhámos o livro e, quase a fechá-lo, ainda não havia título [risos]. Não conseguia chegar ao título. Andámos em torno de várias ideias, a burilar a questão do passado, do tempo. Um dia, a minha editora apresenta-me uma sugestão para o título: “Viradas do Avesso”. E fez todo o sentido. De facto, a vida das personagens viu-se virada do avesso.
Já que fala das personagens dá-me o mote para lhe perguntar sobre as três protagonistas desta história: Berta, Alice e Carlota. Como as apresenta?
Cresceram juntas. São três amigas de infância, quase irmãs, fruto da sua grande cumplicidade. Há um acontecimento que leva ao desaparecimento da Berta, o que causa um ‘terramoto’ na vida da Alice e da Carlota. Sofrem muito. Ao fim de 20 anos estas três mulheres reencontram-se e percebem o que aconteceu. Um reencontro que gera atrito. Todas vão ter de se confrontar com as memórias que partilharam enquanto eram jovens. É um reencontro que não vai ser fácil. Há uma pergunta que fica no ar: se fosse hoje, escolheríamos os mesmos amigos? Porque nós mudamos. No fundo, são três mulheres numa procura da possibilidade de estarem juntas novamente.
Há um confronto entre as memórias da juventude, um desaparecimento e o tempo presente. Há nesta itinerância do seu texto uma intenção. Qual é?
A ideia subjacente a esta história é a de passar a relevância da questão da verdade não ser um dado absoluto. Cada um de nós olha para as coisas e acontecimentos de acordo com a sua realidade. Há razões para o comportamento dos outros ser diferente do nosso. A visão destas três mulheres passa por isto mesmo. A mesma coisa que acontece num mesmo momento é percecionada de forma diversa por cada interveniente.
Como decorreu o processo de encontrar uma voz para estas personagens?
Foi quando pensei: ‘este é um projeto ambicioso’. Há momentos em que o escritor é quase um ator e entra no âmago da personagem, sente-a e vive-a. E nesse processo a ‘coisa’ flui. Julgo que ao escrevermos o livro também libertamos muito de nós. Podemos fazer aquilo que quisermos. Acredito que escrever estas viagens nos libertem.
A Joana tem um pouco de si em todas estas personagens ou investiu mais do seu eu nalguma delas?
Há muito de Alice em mim, porque é muito ponderada e responsável, um pouco aborrecida por vezes. Há um pouco de Berta e isso perceberão quando lerem o livro. No fundo, gostaria de ser com a Carlota, bem-disposta, de bem com a vida.
Continua a escrever para o Repórter Sombra?
Parei um tempo com o lançamento do livro, acresce o emprego, a família. Logo, teve de haver um afastamento, mas voltarei à escrita no Repórter Sombra.
A Joana já trabalha no projeto seguinte no que toca à escrita?
Quando recebi o e-mail do Clube do Autor, estava a fazer pesquisa para aquela que, espero eu, seja a minha próxima história. Pensava que o manuscrito que deu origem a Viradas do Avesso não iria dar em nada e estava a pensar passar para o próximo projeto.
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