O “comilão de Almada”, “Luciano das ratas”, o “gigante de Farelos”, o “rei do lixo”, a todas estas figuras excêntricas e bizarras da nossa história lhes dedica a historiadora Fátima Mariano um capítulo do seu novo livro. Contas feitas, são dez relatos - entrecortados de outras breves narrativas – que a mestre e doutora em História Contemporânea recorda na obra que entregou recentemente aos escaparates nacionais.

Grandes Figuras Excêntricas da História de Portugal (edição Contraponto), tem a sua génese num título anterior da mesma autora, fruto do interesse demonstrado pelos leitores na figura de Doroteia Ivo, a jovem algarvia com alegada visão raio-X. Mote para Fátima Mariano se colocar perante o desafio de descobrir outras tantas histórias reais de personagens do passado (também recente) que se destacaram por características excecionais.

Estas são narrativas que, à luz da atualidade, não nos deixam indiferentes. Alguns destes homens, mulheres e crianças mereceram exibição pública em espetáculos. Sobre o facto esclarece a autora: “o que em determinado período histórico e/ou numa determinada cultura é considerado excêntrico, num outro tempo e lugar pode ser considerado como normal”. Para Fátima Mariano, “é notória a mudança no modo como a sociedade em geral e a própria imprensa começam a criticar esta forma de exploração de seres humanos”. Comum a todas as histórias, o facto de a historiadora procurar nas figuras que nos apresenta, traços de superação, de coragem, de solidariedade, de compaixão.

A Fátima Mariano traz para o presente figuras esquecidas da História de Portugal. O que a motivou a escrever este livro?

A ideia surgiu na sequência da publicação da história de Doroteia Ivo, a mulher com visão raio-X, no meu livro anterior, Grandes Mistérios da História de Portugal. Foi nela que José Saramago se inspirou para criar a personagem Blimunda do Memorial do Convento. Esta história despertou muito interesse nos leitores. Doroteia Ivo tinha a capacidade de ver o interior do corpos (humanos e animais) e da terra, o que poderia, na época, ser considerado feitiçaria, mas nunca foi incomodada pela Inquisição. Durante as minhas pesquisas, cruzei-me com outros portugueses que por terem uma característica física, psicológica ou comportamental incomum ou uma profissão inusitada, foram alvo de curiosidade pública e alguns foram expostos em feiras e casas de espetáculos.

Ao escrever este livro, ponderou o facto de algumas das histórias nele contadas serem chocantes quando observadas a partir da atualidade?

À luz dos valores atuais, sim, choca saber que havia pessoas que por serem portadoras de uma deficiência física eram expostas para satisfazer a curiosidade pública, por vezes ainda em criança. É importante, contudo, olharmos para o passado tendo em mente o contexto da época. Esta não era uma realidade exclusiva de Portugal. As histórias são apresentadas cronologicamente e é notória a mudança no modo como a sociedade em geral e a própria imprensa começam a criticar esta forma de exploração de seres humanos.

Como refere, em Portugal, no passado, fez-se a apresentação pública destas pessoas com algum tipo de deficiência. Quando findaram estas apresentações?

Existiram apresentações públicas, sim, até na segunda metade do século XX. Em casas de espectáculo, em feiras, etc., não só de portugueses, mas também de estrangeiros, como por exemplo, os “meninos gordos”, Mateus e Ana, dois irmãos italianos que tinham excesso de peso. Ele, aos 11 anos, pesava 201 quilos e ela, aos nove, 129 quilos. Eles estiveram em exposição em Portugal. Não sei quando terminaram estes espetáculos.

Ainda no seguimento da pergunta anterior, havia empresas/empresários que promoviam este tipo de espetáculo?

Em alguns casos, eram empresários estrangeiros; noutros, como no caso de Feliciano da Assumpção, o “monstro de Albardo”, eram conhecidos da família que viram na sua exposição ao público uma oportunidade de negócio.

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Alguma entre as histórias que nos relata a tocou particularmente?

Todas elas me tocaram à sua maneira. Umas pelo sofrimento envolvido, como no caso das pessoas portadoras de deficiência física que eram exibidas publicamente ou de Albano Jesus Beirão, o “homem-macaco de Aveloso”, que chegava a ser violento quando acometido dos estranhos ataques e que, quando regressava ao seu estado normal, sentia culpa e sofria pelo comportamento que tinha tido. Outros pelos caricato das situações, como no caso do “comilão de Almada”, que ingeria quantidades absurdas de comida, ou de Luciano Moreira, que ficou conhecido por ser um exímio caçador de ratos nos esgotos de Lisboa. Mas estas histórias têm também um outro lado, que é o da superação, apesar dos obstáculos, o da solidariedade e o da compaixão.

Leva para o seu livro as histórias de homens-mulheres e mulheres-homens. Sucintamente, pode explicar-nos que personagens eram estas?

São casos de pseudo-hermafroditas, pessoas cujos órgãos sexuais externos não se desenvolveram completamente e, por isso, deram origem aos chamados “erros de sexo”. Um dos casos apresentados é o de Inês dos Anjos, que depois de observada por médicos na década de 1920, concluíram que se tratava de um homem e não de uma mulher. Foi submetida a uma cirurgia e mudou de nome, passando a chamar-se Inácio.

Cita-a no seu livro como uma das “figuras mais carismáticas da Lisboa do início do século XX”. O que tinha Luciano Moreira de tão especial para, inclusivamente, ser um protegido de D. Carlos I?

Luciano Moreira, alcunhado “Luciano das ratas”, ficou conhecido como um exímio caçador de ratos no início do século XX. Devido à peste bubónica, o Governo Civil de Lisboa decidiu pagar uma determinada quantia por cada dúzia de ratos mortos, que eram o principal transmissor da doença. Sabendo que estes animais viviam sobretudo no subsolo, Luciano Moreira, um pedreiro desempregado, pediu autorização à Câmara para percorrer os canos de esgoto da cidade. Esta acabou por ser a sua principal profissão durante cerca de seis anos, embora com algumas interrupções. Além de caçar ratos, também encontrava objetos furtados ou perdidos, detetava fugas de gás e de água e perseguia suspeitos de crime. Um dia, ofereceu um retrato a D. Carlos I, que muito apreciou o seu gesto e acabou por recompensá-lo com cinco mil réis e incluí-lo na sua lista de cidadãos protegidos. Luciano Moreira prestou um verdadeiro serviço público à cidade de Lisboa, mas morreu na miséria. O seu funeral foi pago pelo jornal O Século.

Há uma figura no seu livro que impressiona pela longevidade (morreu aos 92 anos), não obstante a vida tumultuosa que levou. Trata-se de Albano Beirão, o “homem-macaco de Aveloso”. Porque era assim apelidado?

Albano de Jesus Beirão foi assim apelidado pelo jornal O Século por ser vítima de misteriosos ataques, que o transfiguravam.  Durante os ataques, que tanto podiam durar minutos como horas, guinchava como um animal, corria de gatas, trepava a edifícios e monumentos e dava saltos como se tivesse molas nos pés. Juntava-se sempre uma multidão à sua volta e, por vezes, registavam-se feridos Quando regressava ao seu estado normal, ele não se lembrava de nada. Chegou a ir às redações pedir aos jornalistas que apelassem a que o povo não se juntasse à sua volta quando estivesse a ter um ataque, porque não queria magoar ninguém. Por iniciativa do Governo, foi visto por médicos de várias nacionalidades e a tese mais consensual era a de que sofreria de epilepsia nervosa e licantropia. Os ataques duraram cerca de 47 anos. Devido à doença, nunca conseguiu permanecer num emprego. Sobreviveu graças a uma pensão estatal e à caridade. Viveu uma vida de grande sofrimento.

Algumas das figuras que apresenta no seu livro tiveram projeção internacional, como João Baptista dos Santos. Quem era a “tripeça humana”?

João Baptista dos Santos foi assim apelidado por um médico por ter três pernas, quatro pés, dois pénis e dois ânus, um deles imperfurado. Gerou natural curiosidade pública e científica. O seu caso foi estudado por médicos de várias nacionalidades. Viveu cerca de 30 anos e morreu em Inglaterra. Foi sapateiro, esteve também em exposição ao público, em Portugal e no estrangeiro, gostava de andar a cavalo, casou, teve filhos. É um dos casos de superação, porque não permitiu que a sua condição física o impedisse de viver a vida que quis.

O jornalista do Expresso, Rui Ochôa, escreveu em 2009 o seguinte: “alvo da mesma curiosidade de sempre e vítima dos mesmos interesses que o faziam deslocar-se penosamente pelo mundo”. Referia-se a Gabriel Estevão Monjane, o “Gigante de Manjacaze”. É uma história com contornos tristes…

Sim, é verdade. Gabriel Estevão Monjane media 2,45 metros e foi considerado o homem mais alto do mundo em 1988 pelo Guiness Book of World Records. Essa sua condição física provocou-lhe sérios problemas de saúde e teve de ser operado várias vezes. Andou em digressão por quase todo o mundo durante vários anos e quem o conheceu diz que ele era muito afável, mas também que tinha um olhar muito triste.

Quem foram “Luciano das ratas” e o “homem-macaco de Aveloso”? Fátima Mariano trouxe para o presente figuras esquecidas da história de Portugal
créditos: Editora Contraponto

Entre as personagens que nos apresenta, algumas deram origem a mitos, enredos e teorias. A Fátima Mariano quer partilhar connosco alguma delas?

Há quem considere que o a história de Albano de Jesus Beirão, o “homem-macaco de Aveloso”, inspirou Edgar Rice Burroughs a criar a personagem Tarzan, mas não encontrei nada que sustente esta teoria.

Tem presente se, em alguns dos períodos a que se reporta no livro, houve pessoas ou movimentos a oporem-se a estas exibições públicas de seres humanos?

Não encontrei referências a movimentos organizados de contestação destas exibições públicas. O que percebi é que, à medida que avançamos no século XX, começa a haver uma maior sensibilidade para o tema. No caso dos apelidados “meninos-macacos”, por exemplo, o médico Fausto Landeiro critica, no Diário de Notícias, a forma como alguns jornais se referiam a estas crianças. Também no caso de Gabriel Estevão Monjane e de Lúcio Pedro, conhecido como o “Anão do Coliseu”, há críticas nos jornais pelo facto de estas pessoas serem expostas ao público devido à sua condição física.

Da investigação que fez para o seu livro chegou a outras figuras que, por falta de fontes credíveis, não incluiu na obra?

Sim. Não foram incluídas por falta de fontes credíveis ou por a informação que foi possível recolher ser escassa. Uma dessas figuras é a Maria Cachucha, uma mulher que trabalhava no matadouro de Torres Vedras. Tenho muita curiosidade em conhecer melhor a sua história de vida.

Entrevista concedida por escrito em setembro de 2022.