Numa nota que deixa aos leitores do seu livro, Canábis, Maldita e Maravilhosa (edição Oficina do Livro), Margarita Cardoso de Meneses escreve: “O ponto de partida deste exercício literário era apresentar uma obra essencialmente informativa e fundamentada sobre o que é a canábis, a sua história botânica, o que nos une a ela, o que representa na nossa sociedade e o seu potencial não só terapêutico e medicinal, como também agroindustrial, alimentar, ambiental, recreativo, etc. O objetivo era contar, de forma imparcial, os factos sobre esta planta tão amada e tão odiada”. Palavras que se nos afiguram como um bom ponto de partida para, com a autora e ativista pela legalização da canábis, procurarmos perceber os porquês para defender esta causa. Na mesma nota, a autora de diversos artigos sobre a canábis, deixa a pergunta: “Como é que com os extraordinários resultados que a investigação científica tem vindo a trazer, desde os anos 60 do século passado, para o âmbito da medicina, a canábis ainda não é de uso comum?” Uma vez mais, procuramos encontrar respostas ao longo desta entrevista que também olha para a canábis, planta da mesma família do lúpulo, como o “ouro verde” em diversas atividades económicas que geram expressivos lucros. Isto, sem deixar de procurar respostas ao longo da conversa sobre questões como a dependência ou a possibilidade futura da legalização da canábis para fins recreativos, proibida em Portugal. No nosso país, a utilização de canábis para fins medicinais foi legalizada em 2018 e regulamentada em 2019.
Na introdução que escreve ao livro da Margarita, a jornalista Laura Ramos refere que este é um “convite para explorar as complexidades desta planta e abraçar as oportunidades que oferece ao planeta e à humanidade”. Que oportunidades são estas?
A canábis é uma planta muito variada, pois são inúmeros os usos a dar às diferentes partes que a constituem e substâncias que produz. Por exemplo, o caule da planta contém fibra que permite produzir pasta de papel, estruturar bioplásticos, tecidos, adubos e blocos de cânhamo [este, apresenta pouca ou nenhuma concentração do composto Tetrahidrocanabinol – THC - e, como tal, não possui efeitos psicoativos], ou seja, tijolos cortados à medida e que podem ser usados em construção com excelentes propriedades, por exemplo, de insonorização e isolamento. As folhas podem ser usadas para fazer camas calmantes para animais, tinturas, emplastros para tratar feridas e ajudar a regenerar a pele. Na culinária, pode fazer chás, para acrescentar a sumos e batidos ou para fazer saladas. Até as raízes cozidas eram usadas na medicina tradicional chinesa, por exemplo, para tratar inflamações. Quando falamos da canábis pensamos normalmente na parte da droga, mas esta é apenas uma substância que é produzida. Apenas um, entre os mais de cem canabinoides que a planta produz, é psicotrópico [o já referido THC], com a capacidade de influenciar a atividade do sistema nervoso central.
Aliás, refere no livro que da canábis se conhecem mais de 25 mil usos...
Sim, costuma dizer-se que da planta do cânhamo se conhecem mais de 25 mil utilidades. Já aqui referi algumas. Pode ser usada, por exemplo, para fazer diluentes, para fazer tintas, adubos, combustível, aglomerado. Uma frase que permite perceber a quantidade de usos ou de possibilidades que esta planta apresenta é aquela que refere que “tudo o que pode ser feito a partir de petróleo, pode ser feito com canábis”. Acresce que o cânhamo ou a planta de canábis absorve facilmente o CO2 do ar e os metais pesados do solo. No passado, os agricultores franceses usavam a planta para limpar os solos entre as culturas do milho.
A Margarita lista inúmeras possibilidades. Da teoria, para a prática, em Portugal há produtos a serem desenvolvidos ou estamos só a falar no campo da possibilidade?
Há produtos a serem desenvolvidos, mas não com a escala que seria desejável. No passado fizeram-se muitos produtos a partir do cânhamo, por exemplo roupa e papel. Aliás, a título de curiosidade, sabia que a Enciclopédia Britânica foi impressa em papel de cânhamo ao longo de séculos? Em Portugal, tínhamos o cultivo de cânhamo no vale de Vilariça, em Torre de Moncorvo. Essas tradições foram-se perdendo para se manterem mais nos têxteis, embora de forma tímida. Também ainda encontramos o cânhamo na produção de cordas. É possível adquiri-las no nosso comércio. Há alguma investigação e desenvolvimento, não muito, que explora esta área e há algumas marcas que estão a fazer alguns produtos a partir do cânhamo. Por exemplo, em termos de têxteis e em Portugal, temos a Sensihemp da Marta Vinha, uma empreendedora que desenvolveu um tecido de cânhamo, com as fábricas do Norte do país. Um tecido muito suave, muito leve, muito agradável ao tato. Ou seja, há pessoas a fazer coisas. Por exemplo, na área da construção encontramos a Cânhamor, uma empresa muito interessante, fundada por dois israelitas e dois palestinianos e que produz tijolos de cânhamo. Eles estão a tentar impulsionar bastante esse mercado.
Há também quem esteja a produzir cremes com óleo de sementes de cânhamo...
O que é perfeitamente legal. Agora também está um pouco na moda apresentar a folha da planta da canábis nas embalagens. Há aqui várias questões que se levantam. O CBD é um canabinoide que não tem efeitos psicotrópicos ou intoxicantes e tem inúmeras propriedades farmacológicas. Seria muito interessante para a cosmética, dado ser muito bom na redução da dor, tem efeito anti-inflamatório e calmante. O CBD não pode ser usado em cosmética em Portugal. Podem ser feitas coisas é a partir do óleo das sementes. Logo, há produtos que são anunciados como canábis que, no final, só têm o óleo das sementes. Ou seja, parte da planta da canábis, mas não é a canábis como as pessoas a entendem.
Que momento e acontecimento concorreram para uma alteração da forma como olhamos para a planta da canábis?
Não há um momento específico, há vários momentos. Os problemas começaram no final do século XIX, não especificamente com a canábis, mas com aquilo que nos Estados Unidos se começou a denominar poisons [venenos]. Muitos produtos no mercado faziam-se anunciar com propriedades milagrosas, entre os quais alguns com canábis na sua composição, outros até com cocaína. Por exemplo, a Coca-Cola, na sua origem, tinha cocaína na composição e era vendida como estimulante. Vários produtos com canábis disponibilizados no mercado, continham altíssimas quantidades de álcool e outros componentes perigosos. Eram vendidos como remédios e, inclusivamente, dados às crianças. Começou-se a perceber que estes remédios não eram aquilo que prometiam ser e estavam a causar problemas de saúde. O químico-chefe do Departamento de Agricultura, Peter Collier foi o grande impulsionador para que o governo começasse a controlar este tipo de produtos. Um trabalho continuado por Harvey Washington Wiley, outro químico, que exerceu pressão no sentido da rotulagem e controlo sobre o que era fabricado. A partir daí, houve vários produtos de canábis que, realmente, acabaram por ser proibidos. Este foi o primeiro passo para que a opinião pública começasse a mudar. Para além destes dois cientistas, outros médicos, ativistas e jornalistas, também denunciaram os perigos de substâncias, preparados, xaropes e tinturas.
A Margarita referiu há pouco vários momentos. Quer recordar-nos outro?
Um outro momento decisivo na forma como se olhou para a canábis, prende-se com a Guerra Civil no México, com início em 1910. Com ela, houve uma grande vaga de imigração mexicana para os Estados Unidos, nomeadamente para localidades no sul do país. Com eles, levavam uma erva consumiam, fumavam e os deixava com boa-disposição. Tratava-se de uma população vulnerável e problemática, o que se compreendia porque não tinham condições de vida dignas. Tudo isso trouxe alguns problemas sociais que foram, mais tarde, usados numa campanha contra a canábis, empreendida por Harry Anslinger, o artífice da Lei Seca, a da proibição do álcool. Que, aliás, não tinha corrido muito bem. Anslinger tomou como missão da sua vida a guerra às drogas, entre os quais à canábis. Impulsionou a criação de uma grande campanha pública para alertar contra os perigos desta planta. Uma planta que vinha com os mexicanos, que também era consumida pela população negra, e que se tornou uma planta maldita.
Desta forma, associou-se esta planta, à droga, à marijuana, a marihuana, como lhe chamavam. Jornais como o The New York Times, noticiavam os acidentes e mortes associados a uma erva que vinha do México e que deixava as pessoas loucas. Depois foram feitos filmes [ex. Tell Your Children], transmitidos em cinemas públicos. Anslinger escreveu cartas públicas, publicadas na imprensa escrita sobre os perigos da canábis. E foi aí que, realmente, a perceção pública mudou em relação a esta planta.
Repare, a canábis era cultivada nos Estados Unidos tradicionalmente enquanto cânhamo, para fibra e para matéria-prima. Alguns dos signatários do Tax Act, de 1937, um imposto proibitivo que taxava a importação, o cultivo, a venda ou a distribuição de qualquer parte da canábis, exceto o caule, não sabiam sequer que era a planta que plantavam. A anunciada marihuana.
A partir do início do século XXI assistimos a um processo de descriminalização e legalização da canábis em diferentes países. O que contribuiu para isso?
Vários aspetos. As pessoas são naturalmente inteligentes e muitas questionam aquilo que lhes é contado. Há muita gente que continuou a usar a canábis para diversos fins, embora com uma expressão muito menor, porque passou a ser uma planta proibida. Mas, realmente, quem começou a utilizar a canábis enquanto droga recreativa, e não teve uma experiência má, o que não nego que possa acontecer, mas antes uma boa experiência, mais ou menos intensa, começou a questionar aquilo que lhe era contado. Houve quem começasse a estudar o assunto, também a viajar, para o Nepal, para a Índia, e viram como as populações consumiam tradicionalmente a canábis. Nos anos de 1960, os químicos Raphael Mechoulam e Yechiel Gaoni, isolaram e sintetizaram o THC. Surgiram estudos em torno da canábis e as pessoas começaram a perceber que a canábis pode coadjuvar no sono, mas também a proporcionar uma noite de galhofa com os amigos [risos]. Temos pessoas como o escritor e filósofo Allen Ginsberg que foi grande ativista, a partir das décadas de 1940 e 1950, pela causa da canábis. Foi das primeiras pessoas que se manifestou publicamente com um cartaz a favor da canábis.
O que leva alguém a passar do interesse pelo mundo da canábis para se tornar uma ativista na sua defesa como aconteceu com a Margarita?
Ainda jovem comecei a consumir canábis. Sou uma pessoa muito curiosa, pelo que queria saber o que estava a consumir. Perguntava e não obtinha respostas e comecei a pesquisar. Aos poucos, comecei a entender um pouco o comportamento desta planta. Também me informava junto da revista espanhola Cânhamo, uma publicação com imensa informação, uma enorme escola para mim. Tinha de perceber o que era a droga. Cresci nos anos de 1980 e 1990, por isso vi os estragos que a heroína fez à minha volta. Assisti a muito, sempre tive bastante rejeição face ao consumo de heroína. Quando me deparei com a canábis pensei: “isto é melhor do que o álcool. Realmente, sinto-me muito melhor quando consumo isto [canábis] do que quando bebo álcool”. E depois, claro, fui a Amesterdão. Quando me vi perante um menunuma coffee shop, com a oferta de vários aromas, sabores e efeitos, e com uma pessoa à minha frente capaz de me explicar aquilo que me estava a vender, comecei realmente a questionar e a dizer: “Mas porquê não ter isto em Portugal?”. Mais tarde, surge a revista Cânhamo em Portugal. Comecei a colaborar. Foi um feliz encontro. Também comecei a escrever para o site da associação Cannativa e para o site da Cannareporter e a Cannadouro Magazine. Também me envolvi na organização da marcha pela canábis que decorreu em Lisboa.
Em relação à legalização da canábis em Portugal, a Margarita refere no seu livro que precisa de “revisão e de ação”. Porquê?
Porque continua a ser uma droga muito consumida sem qualquer controlo de qualidade. Se queremos, realmente, proteger a saúde pública, temos mesmo de controlar esta substância porque ela existe, consome-se, os jovens estão a consumi-la e sem qualquer controlo de qualidade. Pode consumir canábis com tão má qualidade que levará a efeitos secundários muito graves. Além disso, é uma planta tão variada, variável e tão complexa na sua própria composição, ou seja, nós podemos adquirir uma erva que é muito Indica [uma das três variedades], ou outra que é muito Sativa, ou uma híbrida, com efeitos completamente diferentes. Portanto, era importante que as pessoas soubessem aquilo que compram e aquilo que consomem, porque vai ter efeitos diferentes.
Por que razão o proibicionismo não resulta, como escreve no seu livro?
Julgo que escrevi no livro que o proibicionismo da canábis é a política mais malsucedida da História. Já vimos qual foi o impacto da repressão do consumo. Sem extrapolar para outras drogas, vamos focar-nos na canábis, vemos que o efeito da Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961, acordo que definiu as políticas internacionais de drogas e abriu a porta à criminalização, não impediu que os consumos aumentassem. São consumos de substâncias que não sabemos sequer se, realmente, são canábis. Muitas vezes não serão. Quem começa a fumar e compra a um dealer ou a alguém na rua, pode até nem estar a fumar canábis. E as consequências podem ser muito más.
Vê na atual configuração política no Parlamento português caminho para assistirmos à legalização da canábis com fins recreativos?
É improvável que com esta composição parlamentar, a lei passe. Contudo, tenho esperança e acho que vou viver o dia em que a canábis vai ser legal na sua utilização recreativa. O Parlamento está mais bem informado sobre o que é canábis, tem vindo a compreender melhor a planta, a estudar o assunto e a entender também a importância de uma alteração de políticas de drogas em termos de proteção da saúde pública. E não só, porque também isto acaba por ter implicações na componente económica, porque, sobre esta planta, o que se tem provado é que quando é legalizada, acaba por criar um nicho de mercado muito importante e muito expressivo em termos económicos.
Por que nos diz que a escalada do consumo de canábis para outras drogas é um mito? Escutamos com frequência que esta é a porta de entrada para drogas mais pesadas.
Na minha opinião, ao falarmos em escalada de consumo, o álcool será a primeira substância a considerar, depois o tabaco e, mais recentemente, os vapes, que substituem os cigarros tradicionais. Depois, talvez venha a canábis e, neste caso, há quem passe para outras drogas e quem não passe para outras drogas. Há quem experimente a canábis e até nem goste e não irá consumir. Mas, realmente, não se pode dizer que a canábis seja a porta de entrada. Até porque, muitas vezes, para começar a fumar canábis, é preciso começar a fumar tabaco antes. O tabaco é uma droga. Julgo que não restam dúvidas quanto a isso. Ao contrário do que acontece com o tabaco, o álcool, a canábis tem um baixo registo de mortes associadas ao seu consumo. No entanto, a perceção de risco é muito elevada.
Mas causa dependência...
Depende dos consumos. Dizer que não causa dependência seria desonesto. Tudo aquilo que produz endorfinas no nosso corpo e que nos faz sentir melhor ou ajuda a paliar a dor é passível de criar dependência. Isto pode aplicar-se à canábis. Pode causar dependência se estivermos a falar de um consumo muito frequente e depende da potência daquilo que se consome. Há quem fume canábis esporadicamente, há quem fume uma vez e não goste do efeito e não volta a experimentar, ou seja, não causa necessariamente dependência.
Em 2018, aquando do debate em torno da legalização da canábis para fins medicinais, os opositores à legalização afirmaram que a droga cria dependência e não liberta ninguém. Ser livre é libertar-se da droga, não tornar-se dela dependente, afirmava-se. Como comenta?
Parece-me muito alarmista afirmar isso e até pouco informado. Quem recorre a esse tipo de argumentos não sabe do que fala ou não estudou bem o assunto. É difícil ouvir tais coisas. Na prática, repetem frases que já foram usadas anteriormente, embora a realidade tenha vindo a provar que estes chavões não correspondem à verdade.
Também não é incomum escutar-se que os defensores da introdução da canábis com diversos fins, sejam eles o recreativo ou o medicinal, estão a serviço de lobbies...
Existem interesses em várias áreas, em vários aspetos da planta. Como vimos os seus usos são imensos. Ou seja, a canábis medicinal é uma indústria de milhares de milhões. Duvido que numa indústria de milhares de milhões não haja lobbies a funcionar. A canábis com fins recreativos é uma indústria ilegal de milhares de milhões. Duvido que na classe política mundial, não haja lóbis ou quem mexa cordéis por causa deste negócio incrível que é a droga ilegal. Não sei quem está ou quem não está nos bastidores. Só posso dizer que é possível que haja algumas influências porque é uma indústria de muito dinheiro.
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