Vivemos num mundo acelerado, “cheio de estímulos aos quais é muitas vezes difícil de resistir. Raramente estamos em paz e estamos quase sempre a pensar em tudo menos no que está a acontecer no momento presente: o relatório que temos para entregar, as compras que temos que fazer, no que ficou por fazer” Sofia Pereira, especialista em Gestão Consciente do Tempo olha para o rebuliço dos nossos quotidianos para questionar se é este caminho, desenfreado e em piloto automático, que nos garante o bem-estar, equilíbrio e saúde física e mental. Há que saber parar e reequacionar os próximos passos, um exercício que a especialista em Análise e Intervenção Familiar transporta para o seu livro Como ter tempo para tudo (edição Manuscrito).
A propósito do lançamento do presente título, falamos com a sua autora e o seu programa de sete semanas no sentido de recuperarmos o equilibro entre a vida familiar e profissional. Uma conversa onde afloram expressões como Slow Movement e autocompaixão em desfavor de termos como multitasking, “uma ilusão poderosa que se tornou a grande tentação do nosso século”, como sublinha Sofia Pereira.
A autora fundou em 2019 a Academy4you, na qual se dedica à investigação e implementação de práticas de Gestão Consciente do Tempo. Em 2020, fundou a Academia Pais Sem Pressa, convicta de que o ritmo fast em que se vive está a colocar em causa a vida na família. Sofia Pereira é, desde 2021, presidente da Associação Slow Movement Portugal.
A Sofia Pereira introduz no seu livro um conceito que será novo para muitos leitores, o de Gestão Consciente do Tempo e, consequentemente, de gestora consciente do tempo. Do que estamos a falar?
A Gestão Consciente do Tempo é um conceito que respeita a nossa individualidade e os diversos papéis sociais que desempenhamos na vida, e que se distribuem pelas várias esferas, pessoal, profissional e familiar. E todas são importantes. Não somos apenas profissionais e, no tempo que nos resta, somos pais/mães, maridos/esposas, companheiros/companheiras. Assim, a Gestão Consciente do Tempo convida ao afastamento do modo piloto automático em que vivemos; também a conhecer e respeitar o ritmo e limites individuais; a assumir o princípio de que “menos é mais” e a colocar o foco no importante e no essencial, nas diferentes esferas da nossa vida. Porque todos temos a mesma quantidade de tempo para usar, mas é cada um de nós que assume o compromisso de ir ao encontro do que deseja e do que faz a diferença na sua vida, isto é, do que é realmente importante.
Competimos uns com os outros para estarmos ocupados, achando que isso faz de nós pessoas mais importantes.
A palavra Consciência remete-nos para uma ideia de conhecimento do “eu”. A sociedade em que vivemos permite-nos esse encontro?
A palavra consciência remete-nos para a ideia do conhecimento do “eu” e também da presença, da tenção plena, do foco da atenção no que está a acontecer no momento presente. O presente está cada vez mais acelerado e tentamos acompanhar esse ritmo, muitas vezes até à exaustão. E, estamos nesta viagem a alta velocidade há algum tempo, muito antes do surgimento da Internet e das redes sociais.
Vivemos tempos em que a vida é rápida. Corremos para não ficar atrás dos outros. Trabalhamos mais do que os outros, para nos destacarmos. Estamos ligados a várias coisas e ao mesmo tempo, pois é impensável ficar para trás. Mas, muitas vezes, isso só se traduz no aumento do nosso stresse e ansiedade. Competimos uns com os outros para estarmos ocupados, achando que isso faz de nós pessoas mais importantes.
Não tenhamos ilusões: o mundo não vai desacelerar. Somos nós que temos de encontrar um novo ritmo para os nossos dias, de forma consciente, isto é, conhecendo e respeitando os nossos ritmos e limites, priorizando o que é realmente importante para nós.
No fundo estamos a priorizar mal…
O nosso mundo é hoje, como disse, um mundo acelerado, cheio de estímulos aos quais é muitas vezes difícil de resistir. Raramente estamos em paz e estamos quase sempre a pensar em tudo menos no que está a acontecer no momento presente: o relatório que temos para entregar, as compras que temos que fazer, no que ficou por fazer... E, nesta vida em piloto automático, estamos quase sempre a fazer comparações com os outros: a colega que saiu mais cedo que nós, os amigos que compraram uma casa fantástica, aquela pessoa que acompanhamos no Instagram que faz viagens de sonho e nós não temos nem tempo nem dinheiro para isso.
Parar é uma ação que desvalorizamos e tão importante para uma vida mais equilibrada. Parar para onde estamos, para onde queremos ir. Parar para perceber como nos sentimos e onde estamos a colocar a nossa atenção e o que estamos a priorizar.
É fácil? Não. Exige esforço, energia e tempo. É um percurso que se faz, com pequenos passos de cada vez.
A própria Sofia Pereira viu-se enredada nesta voragem do tempo. O que lhe trouxe o alerta para mudar e como o fez?
Os sinais de que eu estava a desrespeitar o meu ritmo e os meus limites já existiam muito antes de eu ter sido obrigada a parar, em 2017, contudo não me permiti, nessa fase inicial, parar para perceber o que estava a acontecer e fui desvalorizando.
Dores de cabeça fortes, cansaço, falta de apetite, intolerância ao barulho, irritabilidade, choro fácil, problemas gastrointestinais, enfim, um conjunto de sintomas que levaram a que procurasse ajuda especializada e parasse, de forma forçada, por várias semanas, no fim do mês de novembro desse ano.
Procurar ajuda especializada e cumprir o plano terapêutico é fundamental. Não falo apenas nas medidas farmacológicas, mas em todas as outras não farmacológicas que são essenciais à recuperação: exercício físico, meditação, sono, alimentação adequada, dedicar tempo a atividades que nos dão prazer.
Recordo‑me perfeitamente do primeiro dia em que fiquei sozinha em casa, depois de as crianças saírem de manhã com o pai, e de me questionar: “E agora? O que vou fazer com tanto tempo livre?” As orientações clínicas eram para abrandar o ritmo, mas continuar a ter rotinas. Retomei o exercício físico, a leitura e o tempo para não fazer nada. Somente descansar. Ao longo deste período, embora de forma lenta, fui sentindo alterações positivas no meu humor e alterações relativamente à sintomatologia que referi acima. Pouco a pouco, voltei a sentir prazer em realizar as tarefas de casa, desde ir às compras a cozinhar.
Foi nesta fase que me debrucei sobre o conceito de Gestão Consciente do Tempo, por pura necessidade de mudar de vida. O estado a que tinha chegado não permitia que continuasse a insistir na forma como estava a viver. Nesse momento, percebi que ansiedade, irritação, cansaço e exaustão eram as palavras que verbalizava mais do que uma vez por dia até ter sido obrigada a parar. Não era o que queria para mim daí em diante.
Perante a minha própria história e o que via a acontecer à minha volta, pois foram muitas as pessoas que nesse período partilharam comigo sentir o mesmo, procurei conhecer várias estratégias que me ajudassem. Em variadas disciplinas, descobri as ferramentas que me têm vindo a permitir, desde essa altura, alcançar a harmonia entre as diversas esferas da minha vida. No livro explico cada uma dessas estratégias, bem como quais as disciplinas nas quais estão alicerçadas.
A Sofia Pereira perfilha o movimento Slow. Todos já ouvimos falar deste movimento na sua associação à alimentação [slow food]. De que forma o podemos extrapolar para os nossos quotidianos?
São cerca de 980 milhões os resultados que o Google mostra, após uma rápida pesquisa em torno do conceito de Slow Movement. Apesar desta imensa quantidade de informação, continuo a verificar a necessidade de se desmistificar o conceito slow. Para ser slow não necessita de abandonar a sua vida atual, deixar tudo para trás e ir viver para o campo ou para a floresta, longe de tudo e de todos. Também não precisa de adotar o ritmo de um caracol ou de uma tartaruga para executar as suas tarefas. Ser slow não é ser preguiçoso e não ser produtivo.
Vários autores descrevem o Movimento Slow como o Movimento do Equilíbrio. O equilíbrio entre o rápido e o devagar, o mais e o menos, o importante e o circunstancial.
Para tal, o Movimento Slow defende que é cada vez mais necessário estarmos conscientes dos ritmos e limites individuais. Para mim, apenas a partir desta consciência individual e consequente disciplina, é possível travar o ritmo frenético a que cada um de nós vive. Trata-se, em primeiro lugar, de um trabalho focado no eu, que exige tempo, esforço e energia. Ser slow é, em primeiro lugar, uma escolha consciente. É um movimento de equilíbrio. Connosco, com os outros, com o mundo.
E, o modo de estar slow é uma atitude transversal que se pode aplicar à vida em geral, desde a saúde e ambiente, passando pela alimentação, pela família, pelo trabalho e pelo lazer, pela educação, e estendendo-se à vida nas cidades e comunidades, à igualdade de género e à luta contra as discriminações e contra a pobreza, valorizando a restauração do equilíbrio, dos ritmos biológicos, dos laços sociais e dos valores essenciais do ser humano.
O modo de estar slow é uma atitude transversal que se pode aplicar à vida em geral, desde a saúde e ambiente, passando pela alimentação, pela família, pelo trabalho e pelo lazer, pela educação, e estendendo-se à vida nas cidades e comunidades.
Somo seres multitarefas, ou é esta expressão uma armadilha que nos enreda em quotidianos preenchidos de stresse?
O multitasking é uma ilusão poderosa e é a grande tentação do nosso século. Na era do e‑mail, das mensagens de texto, das redes sociais, somos constantemente “empurrados” para fazer várias coisas ao mesmo tempo. Somos constantemente “bombardeados” por inúmeros estímulos externos, repletos de muita informação e que disputam a nossa atenção.
Os autores e neurocientistas David Levitin e Earl Miller explicam‑nos o porquê de ficarmos tão “agarrados” à ideia de que o multitasking é positivo. É que este aumenta a nossa produção do cortisol, a hormona do stresse, bem como a da adrenalina, outra hormona bastante poderosa.
Mas o que está verdadeiramente a acontecer, a nível cerebral, é que o nosso córtex pré‑frontal, a zona do nosso cérebro que é fundamental para a nossa atenção, memória, processos sensitivo‑motores, cognição, emoção e até conduta, está a ser inundado por múltiplos estímulos, o que provoca precisamente uma desaceleração da atividade cognitiva.
Se acredita que é mais produtivo por fazer várias coisas ao mesmo tempo, desengane-se. Ficamos mais lentos, menos eficientes, mais vulneráveis a cometer erros, menos capazes de filtrar informação e de nos focarmos nos aspetos relevantes que estão a acontecer à nossa volta.
O seu livro é-nos apresentado em jeito de caminho a trilhar. Que viagem é esta?
O livro apresenta sete passos rumo a uma Gestão Consciente do Tempo. Em cada um dos passos, o leitor, ao seu ritmo, explora um dos pressupostos fundamentais deste conceito. Através dos sete passos sugeridos, o objetivo é que o leitor, quando chegar ao fim deste livro, consiga avaliar a forma como faz a gestão do seu tempo, no que respeita à distribuição deste pelas diferentes esferas da sua vida. Há um outro objetivo o de comunicar conscientemente consigo e com os outros, assim como o de conhecer os vários papéis que assume nas suas diferentes esferas da vida e refletir sobre eles. Volto a afirmar: ninguém é apenas profissional. Somos homens/mulheres, maridos/esposas, companheiros/companheiras, pais/mães, filhos/filhas, irmãos/irmãs, amigos/amigas.
Gostaria também de sublinhar que os sete passos que apresento no meu livro permitem a cada um conhecer e respeitar os seus ritmos e limites; planear conscientemente o seu tempo, respeitando o tempo para cada uma das suas esferas da vida; fazer um uso consciente do seu tempo; integrar no seu dia a dia a compaixão, autocompaixão, esforçando‑se por ser mais flexível.
A Era Industrial acelerou o ritmo humano. Contudo, a Era Digital parece estar a aprisionar-nos e a alhear-nos. Como vê a gestão que fazemos das plataformas/dispositivos digitais e de que forma estes impactam as nossas vidas?
Acredito e defendo que devemos colocar a tecnologia ao nosso serviço e não o contrário. Atendendo a que, no século XXI, estamos constantemente ligados a smartphones, atrevo‑me a afirmar que a quantidade de informação disponível a cada minuto é assustadoramente elevada. Gosto particularmente da analogia que o neurocientista Daniel Levitinfaz do smartphone a um canivete suíço, e uso‑a muitas vezes quer nas formações que ministro quer nas sessões de mentoria individuais que faço. Os nossos smartphones incluem dicionário, calculadora, navegador, e‑mail, jogos, agenda, gravador de voz, previsão do tempo, GPS, Twitter, Facebook, Instagram… e também uma lanterna. O que é que uma criança nos pede quando necessita de tirar uma peça de lego que fugiu para debaixo do sofá? Pois é, a lanterna do telemóvel.
Quando desligamos do mundo virtual, conectamo‑nos com o mundo real. E o que está no mundo real? A nossa família, os nossos amigos, o trabalho, a natureza, a imaginação, a criatividade. Por isso, uma das estratégias que sugiro é reservar algum tempo por dia, todos os dias, para se desconectar e se conectar com o mundo real.
A Sofia Pereira fala-nos no seu livro do propósito. Aparentemente, vidas tão preenchidas como as que levamos poderiam parecer-nos plenas de propósitos. Não é assim?
O facto de grande parte de nós ter tantas coisas para fazer, pressionados pelo tempo, priva‑nos precisamente de termos tempo para pensar sobre quem somos, o que pretendemos, o que é realmente importante, e responder à questão “sou feliz?”.
A nossa agenda sobrelotada de atividades impede‑nos de refletir sobre estas questões que, ao contrário do que pensamos, não são apenas questões sobre as quais os filósofos se debruçam. Elas estão relacionadas com a nossa identidade pessoal, pelo que são fundamentais para que depois possamos, conscientemente, direcionar a nossa ação para o importante e essencial.
Para elevar os nossos níveis de bem‑estar, não existe, na minha perspetiva, outro caminho senão o de repensar sobre o que queremos realmente fazer com o nosso tempo. Felizmente, isto é possível sem comprometer o nosso sucesso nas diversas áreas da nossa vida, nomeadamente a profissional.
E aqui a identidade pessoal é fundamental e define‑nos. É ter a consciência de quem somos, quais são os elementos que nos definem e de como estes se manifestam e determinam a nossa realidade pessoal, familiar e profissional.
Ter uma vida com significado é muito mais do que estabelecer objetivos e metas, como, por exemplo, chegar ao topo de carreira em dois anos. Ou casar e ter filhos antes dos trinta. Porque estes, por si só, não determinam que esteja a viver de forma alinhada com o seu propósito. E também não precisamos de sentir que a nossa vida tem um propósito geral e altamente místico, como viver numa comunidade, em regime de voluntariado, algures numa montanha sagrada.
Para sermos mais felizes, temos, sim, de encontrar significados específicos para as diversas áreas das nossas vidas: pessoal, familiar e profissional. Quero com isto dizer que acredito que existe um propósito que nos move em cada uma das esferas da nossa vida. Só temos de parar para o encontrar.
Para mim, o propósito é o nosso GPS interior. Quando assim é, focamos as nossas ações numa gestão de tempo mais consciente, sem desprezar nenhuma faceta da nossa existência. Mas, como referi, existe uma diferença entre ter um propósito e estabelecer apenas um objetivo. Podemos ter uma vida repleta de objetivos e isenta de propósito.
O facto de grande parte de nós ter tantas coisas para fazer, pressionados pelo tempo, priva‑nos precisamente de termos tempo para pensar sobre quem somos.
Uma palavra que nos desabituámos de escutar e que já referiu nesta nossa conversa é autocompaixão. Porque a transporta para o seu livro?
Como sabe a vida pode ser muito dura. Existem situações e acontecimentos que nos provocam muito stresse, como problemas no trabalho, dificuldades financeiras, desentendimentos com pessoas de quem gostamos, problemas de saúde. Estas situações ou acontecimentos inesperados têm naturalmente um impacto na concretização dos objetivos que nos propomos atingir. Tudo aquilo que queremos fazer com o nosso tempo.
É aqui que entra o “superpoder” da autocompaixão, um conceito ainda pouco usado e atrevo-me a afirmar muitas vezes usado de forma incorreta, como sinónimo de ter pena de si próprio, gentileza ou até fracasso.
Eu defino-a como a capacidade de falar consigo, e tratar‑se da mesma forma com que fala e trata aqueles que ama quando algo de menos bom lhes acontece. É ser gentil consigo próprio, apoiar‑se, validar‑se, sobretudo nos maus momentos. E, por isso, a autocompaixão tem vindo a ser associada a um sentimento de maior bem‑estar, contribuindo mesmo para a diminuição da ansiedade e depressão, o aumento das competências emocionais para lidar com os problemas de forma mais eficaz e uma maior compaixão dirigida às outras pessoas.
A nossa vida é curta (cerca de 25 a 30 mil dias). Não controlamos tudo, os imprevistos acontecem. A autocompaixão irá permitir‑lhe tratar‑se a si próprio com amabilidade, manifestando preocupação e apoio para consigo, tal como faria com alguém querido. Atua como um pai ou uma mãe carinhosos. Mesmo que o seu desempenho na gestão consciente do seu tempo não esteja a ser o que desejaria num determinado dia ou fase da vida, permita‑se aceitar‑se a si mesmo. Como uma mãe, mostre apoio e amor incondicionais a si próprio, reconheça que está tudo bem, mesmo sabendo que não é perfeito. Ninguém é.
A Sofia Pereira é pós-graduada em Liderança Positiva e Felicidade 5.0. No caso Felicidade 5.0, o que preconiza esta?
O Conceito de Felicidade 5.0 tem vindo a ser desenvolvido, em Portugal, pelo Professor Doutor Jorge Humberto Dias. Ao longo da história, diversos investigadores têm analisado a evolução de vários conceitos, caracterizando-os em diferentes versões, por exemplo, sociedade 1.0, a sociedade 5.0. A felicidade 5.0 é uma proposta do autor, que enquadra a felicidade como global, criativa e integradora.
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