Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril ficaram conhecidos por Lars Kepler e, sob esse pseudónimo, assinam livros policiais. O Hipnotista foi o primeiro título da série protagonizada pelo comissário Joona Linna, seguindo-se depois O Executor, A Vidente, O Homem da Areia, Stalker, O Caçador, Lazarus, O Homem-Espelho, A Aranha e O Sonâmbulo.
Em 2023, sob o pseudónimo Alex Ahndoril, esta dupla de autores deu início a uma nova série policial, cuja protagonista é a carismática investigadora privada Julia Stark. Vou Encontrar a Chave – publicado em 2024 pela Singular – é o primeiro livro deste novo projeto.
Agora, Lars Kepler regressa aos escaparates com um novo título, O Sonâmbulo (Porto Editora) que situa o leitor em Estocolmo, na Suécia.
Desta feita, a meio da noite, é emitido um alerta sobre um assalto em curso no parque de campismo de Bredäng, nos arredores da capital da Suécia. O veículo da polícia mais próximo responde à chamada e dirige-se para o local. Apesar de o parque estar encerrado durante o inverno, há luz numa das autocaravanas e ao abrirem a porta os agentes encontram um cenário aterrador. Das paredes aos móveis, tudo está coberto de sangue. Uma pessoa foi brutalmente assassinada e esquartejada com um machado.
No chão de um dos quartos, um jovem dorme, usando um braço decepado como almofada. É imediatamente detido, levado para a prisão de Kronoberg e identificado como Hugo Sand, de 17 anos, filho de um conhecido escritor. Mas Hugo sofre de uma forma rara de sonambulismo e, por isso, tanto pode ser o criminoso como uma testemunha. Contudo, alega não ter qualquer recordação daquela noite. Joona Linna, a quem cabe investigar o caso, contacta o seu velho amigo Erik Maria Bark para, com recurso à hipnose, tentar descobrir o que aconteceu no interior da autocaravana. Este torna-se o tiro de partida para uma complicada perseguição a um temível assassino em série, que acaba de entrar numa fase particularmente cruel.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
1
O céu de novembro sobre o centro comercial Vårberg está escuro como ferro fundido. São quase três da madrugada e as ruas estão desertas. Um carro da polícia avança devagar ao longo das janelas gradeadas de um salão de beleza.
Os colegas John Jakobsson e Einar Bofors estão sentados lado a lado em silêncio. Há quase um ano que deixaram de se falar. Se não precisarem de comunicar, permanecem calados.
O saco com os restos da comida do quiosque jaz aos pés de Einar, e o odor a fritos e óleo enche o compartimento.
John tamborila no volante e, como de costume, pensa no seu lívido irmão mais velho enquanto olha pelo vidro do carro.
Janelas poeirentas com anúncios refletem a luminosidade da entrada do metro. Lixo, folhas velhas e vidro partido juntaram-se entre os pilares de betão da arcada. Em frente à Stadsmission, há latas de spray, sacos de plástico e caixotes esmagados. Mergulhados nos seus pensamentos, os dois agentes passam pelo parque de estacionamento e viram à direita junto à igreja etíope.
Sob a luz dos candeeiros de rua, veem-se grandes flocos de neve que começam a cair lentamente, e de repente todo o bairro parece saído de um conto de fadas. Para John, isso é como receber uma desagradável visita da sua infância.
A claridade leitosa do ecrã do sistema POLMAN ilumina-lhe o punho cerrado com força. No preciso instante em que Einar pega na sua lata de rapé húmido, recebem uma chamada da central regional. Trata-se de um assalto no parque de campismo de Bredäng.
Einar responde à chamada ao mesmo tempo que John vira para as traseiras do supermercado, contorna os contentores de reciclagem e sai de novo para a estrada.
– O parque de campismo encerra no inverno e o proprietário encontra-se na Florida – informa o operador. – Mas, como ele tem as câmaras de vigilância ligadas ao telemóvel, consegue ver que há luz numa das caravanas.
Com a sirene e as luzes de emergência desligadas, o carro da polícia acelera pela estrada deserta, passando por filas de prédios e pela antiga central de caldeiras. Os limpa-para-brisas varrem os flocos de neve do vidro.
Nenhum dos dois fala, mas ambos pensam que o assalto é provavelmente alguém a tentar não morrer congelado durante a noite: um sem-abrigo, um imigrante ilegal, um toxicodependente ou uma pessoa com problemas de saúde mental. É o costume.
Eles passam o hotel Scandic e viram para a Skärholmsvägen.
Há quase cinco anos, John conseguiu abrir a fechadura da porta do quarto do irmão mais velho. Luke estava deitado no chão ao lado da cama, com os lábios azuis. O garrote de borracha amarelada pendia-lhe frouxamente à volta do braço, e o disco de algodão com uma pinta de sangue colara-se à T-shirt dos Nirvana. John nunca há de esquecer as pupilas dos olhos arregalados. Estavam irrealmente pequenas, como se houvessem sido pintadas com a ponta da agulha.
Desde que foi colocado no serviço operacional, John traz sempre consigo três caixas do antídoto Naloxona apesar de não fazer parte do equipamento. Não é algo de que ele fale, porém, até agora, já salvou a vida a oito pessoas graças ao spray nasal.
Passam pelo campo de futebol escuro, atravessam a zona industrial e entram na Reserva Natural da Floresta de Sätra. Quando param à frente dos portões de aço do parque de campismo, decorreram oito minutos desde que responderam à chamada.
A loja, a receção e o restaurante tailandês estão encerrados até ao fim do inverno. Flocos de neve caem vagarosamente e aterram no asfalto à sua frente.
John e Einar saem em silêncio do carro e saltam o portão. Depois, olham para o mapa, localizam o lugar de estacionamento G e põem-se a caminho.
O vasto parque de campismo tem um aspeto estranhamente desolado sem veículos, tendas e pessoas.
Atravessam um relvado amarelo de onde partem os caminhos que conduzem a uma área de caravanas. À direita, veem-se colinas com árvores despidas. Flocos de neve descem lentamente por entre os ramos negros que se estendem em todas as direções.
Passam por um pequeno parque infantil e pelo local de despejo das sanitas químicas, antes de se verem no meio das caravanas soerguidas por calços. O ambiente acústico altera-se: o som dos seus passos é captado pelas paredes e ecoa de forma intrusiva.
As janelas estão escuras, as bandeirolas pendem frouxamente das altas antenas de televisão e os pequenos espaços exteriores encontram-se todos vazios.
John pensa em como teve medo do irmão no último ano, em como Luke por vezes se enfurecia e era cruel, como na vez em que John lhe pediu para devolver o dinheiro que lhe emprestara.
Mesmo a uma grande distância, eles já veem a luz de uma das caravanas mais afastadas. Quando se aproximam, compreendem que vem de um candeeiro atrás das cortinas de uma das janelas.
John para, enche os pulmões com o ar fresco, saca a arma de serviço, sobe as escadas de metal, bate vigorosamente à porta e depois abre-a.
– Polícia, vamos entrar – grita sem grande força na voz.
Entra na penumbra da caravana e, no pavimento de vinil a imitar parquê, vê pegadas escuras em ambos os sentidos. Então, olha para a direita no corredor, para lá de duas portas fechadas e da exígua casa de banho.
Tudo está silencioso e imóvel.
Com a pistola apontada para o chão, John dirige-se para a sala de estar iluminada. As paredes e o teto estalam a cada passo que dá. Tudo o que consegue ver à sua frente é a mesa da cozinha com quatro cadeiras. A luminosidade indireta do candeeiro mais ao fundo reluz nas superfícies riscadas dos móveis.
Ele estaca quando uma mulher começa a falar baixinho algures à sua frente.
– Atende, garanhão, atende – diz ela num tom travesso. – Atende, garanhão…
– Polícia, vou entrar – grita John, sentindo os pelos dos braços eriçarem-se com o pico de adrenalina.
– Garanhão, atende… atende, garanhão, atende… At…
A mulher cala-se e John avança com a arma erguida.
Um cheiro metálico que relembra o de uma pedra de amolar húmida enche o ar estagnado. John sente as vibrações no chão quando Einar entra na caravana com passos pesados. Ele para, respira tremulamente pelo nariz, escuta, depois dá um passo para o interior da cozinha, faz um movimento amplo com a arma para o lado e solta um gemido.
No lava-louça em aço inoxidável, está uma perna humana inteira com um penso no joelho e uma meia preta de homem no pé. Os músculos e tendões foram cortados com cerca de dez golpes desajeitados de machado. A cabeça do fémur foi arrancada do acetábulo do osso ilíaco e reluz branca contra o tecido vermelho-escuro.
– Que raio…
Paredes, teto e chão estão todos salpicados de sangue. Na mesa de centro, entre dois vasos com flores de plástico, jazem partes de uma cabeça. Embora faltem o maxilar e o queixo, John percebe que a vítima é um homem de cabelo preto espetado com as pontas descoloradas.
O tampo da mesa está todo coberto de sangue, que pinga viscosamente para uma grande poça no chão.
O telemóvel que se encontra no sofá acende-se e, no ecrã, aparece o nome «Anna», ao mesmo tempo que o toque de chamada personalizado recomeça:
– Atende, garanhão, atende… Atende, garanhão…
Na outra parte da caravana, Einar abre a porta do quarto principal e ilumina simultaneamente o interior com a sua lanterna. Na cama de casal, jaz um tronco sem pernas nem braços. As superfícies de corte são irregulares e desleixadas, com cartilagens pálidas e cotos de osso lascado.
Einar fixa a barriga peluda e esquartejada do homem, o pénis mirrado, o peito musculoso e tatuado, as partes inferiores do pescoço e da cabeça. O colchão está ensopado de sangue e todo o corpo tem um brilho escuro.
Ele sente a pistola tremer-lhe na mão como se estivesse viva. A visão é tão oprimente que ele vacila, aperta a lanterna debaixo do braço e leva a mão à boca. O cheiro a ketchup nos seus dedos misturado com o odor a sangue fresco dá-lhe a volta ao estômago.
John ouve os passos pesados do colega, olha para o corredor atrás de si e vê Einar sair de um dos quartos às arrecuas. Ele deixa cair a lanterna enquanto mexe atabalhoadamente na unidade RAKEL, sai da caravana e vomita.
John começa a voltar para trás, mas estaca, escuta e sente um calafrio percorrer-lhe as costas. Das paredes ouve-se um riso ao mesmo tempo frouxo e mecânico. Talvez venha do exterior, pensa John no preciso instante em que o riso se converte num lamento. Depois, faz-se novamente silêncio total.
Com o coração acelerado, ele aproxima-se da última porta fechada. De súbito, vem-lhe à mente o pensamento irracional de que o seu irmão Luke se encontra ali dentro com lábios azuis, pupilas minúsculas e um machete ensanguentado sobre um ombro.
Do lado de fora da caravana, ouve-se Einar falar de forma agitada e desconexa com a central regional.
John pressiona o puxador para baixo, empurra a porta e aponta a pistola à obscuridade do interior. Na parede por baixo da janela, há um radiador desligado da tomada. A frente de metal branco está respingada de sangue.
As dobradiças rangem levemente segundos antes de a porta se fechar. John estende a mão, abre a porta de par em par e entra.
Junto a um beliche, um rapaz está deitado de lado no chão, com um braço decepado a fazer-lhe de almofada sob a cabeça. O rosto pálido está relaxado e os olhos estão fechados. Ele veste umas calças de ganga, uma camisola verde-musgo e tem uns ténis calçados. John aproxima-se para lhe sentir o pulso.
Um machado repousa sobre o colchão na parte inferior do beliche. Einar grita qualquer coisa lá fora.
O chão range sob o peso de John quando ele se aproxima.
De repente, o rapaz ri com os olhos fechados. Os dentes brilham no rosto ensanguentado.
John tropeça para trás, tateia a pistola, destrava-a, escorrega numa poça de sangue, bate com as costas na parede e dispara contra o chão.
O rapaz sobressalta-se, senta-se, pestaneja e olha com indiferença para John. Depois, afasta a franja com uma mão ensanguentada e humedece os lábios.
– Onde estou? O que é que aconteceu? – pergunta ele com uma voz assustada.
Comentários