Aos 99 anos, o comunicador e naturalista britânico Sir David Attenborough reafirma o seu papel como uma das vozes mais respeitadas na defesa do planeta. Depois de quase oito décadas a documentar a vida selvagem, Attenborough regressa com um novo livro, Oceano – O Último Reduto Selvagem (edição Temas & Debates). O título, publicado em maio de 2025, chega aos escaparates em coautoria com o ambientalista e produtor Colin Butfield.

Attenborough é um nome que atravessa gerações. Desde os anos 1950, quando começou a trabalhar na BBC, que o seu trabalho se tornou sinónimo de alerta para a beleza deste nosso mundo, mas também para os delicados equilíbrios que o entretecem. Programas como Life on Earth (A Vida na Terra), de 1979, e The Living Planet (O Planeta Vivo), de 1984, levaram a milhões de telespetadores imagens de um mundo frágil e das criaturas que o habitam. O seu estilo calmo e empático, aliado à autoridade científica que o acompanha, fê-lo conquistar a admiração e o respeito. O homem nascido na vila de Isleworth, nas cercanias de Londres, não abranda e olha para o futuro: “os próximos cem anos serão decisivos”, alerta.

Ao seu lado na escrita deste Oceano está Colin Butfield, figura relevante no movimento ambiental global. Cofundador e diretor dos Open Planet Studios, Butfield tem liderado projetos de comunicação que aliam ciência, cinema e ativismo, incluindo o documentário A Life on Our Planet. A colaboração entre ambos resulta numa fusão entre emoção e rigor, ideal para comunicar temas complexos ao grande público.

Um mergulho em oito habitats marinhos

A presente obra oferece-nos um mergulho em oito habitats marinhos, conduzindo o leitor dos recifes de coral às regiões abissais, das florestas de algas às zonas polares. Nas mais de 400 páginas do livro, os autores convidam-nos ao conhecimento de um ambiente que ocupa dois terços da superfície terrestre e, pasme-se, 99% da sua área habitável.

Cada capítulo inicia-se com um testemunho pessoal de Attenborough, muitas vezes evocando memórias de expedições passadas ou encontros com espécies raras. O naturalista recorda, inclusivamente, episódios inaugurais da sua vida como explorador incluindo o seu primeiro mergulho com escafandro em 1957: “Fiquei tão deslumbrado com o que via diante de mim que, por um momento, esqueci-me de respirar”.

Estas narrativas cedem espaço à análise científica de Butfield, que detalha o papel vital dos oceanos na regulação do clima, na captura de carbono pelo fitoplâncton e na manutenção da biodiversidade marinha.

Os oceanos tornaram-se a lixeira global. Viagem a um mundo que agoniza
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Attenborough imprime à sua escrita um carácter intimista e biográfico. Disso fazem prova as palavras que abrem este seu mais recente livro: “A primeira memória que guardo do oceano é a de uma lagoa tropical (...) Esta lagoa tropical existiu, na verdade, na minha imaginação, estimulada pela exploração de uma velha pedreira calcária em Leicestershire, a cerca de cem quilómetros da costa. Para um rapazinho da década de 1930, era um lugar maravilhoso para viver aventuras, e o conhecimento de que, há milhões de anos, terá sido uma lagoa quente e intocada só aumentava o seu poder de atração”.

Entre o risco e a esperança

Apesar de expor ameaças críticas — como a pesca industrial, a poluição e o aquecimento global — o livro mantém uma nota de esperança. A recuperação dos recifes em Cabo Pulmo, no México, surge como símbolo do que é possível alcançar com políticas de proteção eficazes. “Ainda há tempo”, recorda-nos cada página, reforçando que a natureza, quando cuidada, retribui com resiliência.

A mensagem do livro é clara: a próxima década pode definir o destino dos oceanos. Attenborough e Butfield não oferecem soluções fáceis, mas também não sucumbem ao pessimismo. Apostam na educação, na ciência e no envolvimento cívico como caminhos para mudar o curso.

“Tive a felicidade de viver quase cem anos. Durante este tempo, ficámos a saber mais sobre o nosso oceano do que em qualquer outro período da história humana (...) Não estarei cá para assistir ao fim da história, mas, depois de uma vida inteira a explorar o nosso planeta, continuo convencido de que, quanto mais pessoas apreciarem e compreenderem o mundo natural, maior será a nossa esperança de o salvar, bem como a nós mesmos”, enfatiza Attenborough na introdução que escreve ao livro.

O lançamento do livro é acompanhado por um documentário homónimo, a estrear em breve nas plataformas digitais.

Da obra, publicamos o excerto abaixo.

No tempo de vida de uma baleia-azul

O tempo de vida de uma baleia-azul — cerca de noventa anos — é uma referência muito prática para a nossa viagem à descoberta do oceano moderno. O modo como hoje perspetivamos o mundo da baleia-azul é absolutamente diferente do modo como encarávamos o oceano aquando do nascimento da nossa baleia, na década de 1930.

Muito embora as culturas de navegadores, com particular destaque para os polinésios, possuíssem conhecimentos milenares sobre como atravessar habilmente o oceano e apesar de nações dedicadas à pesca comercial, como o Reino Unido e os EUA, terem aprendido como se obtêm quantidades gigantescas de peixe, a ciência ainda não tinha explicado o motivo para as correntes oceânicas terem o comportamento que têm ou para certos peixes se encontrarem em certos lugares, em dados momentos. Para compreender estas questões, precisávamos de novas formas de olhar para o nosso planeta.

“Oceano” é, de longe, uma designação mais adequada para o nosso mundo do que “Terra”. Atualmente, pouco mais de 70 por cento da superfície do nosso planeta está coberta por água salgada, unindo-se num único oceano planetário. A deslocação das placas tectónicas e os fluxos e refluxos das eras glaciais governam o mapa do nosso oceano, mas, aproximadamente nos últimos 10 000 anos, os seus principais pontos de ligação foram os mesmos de hoje. Quando a nossa baleia-azul nasceu, só compreendíamos estas ligações de um ponto de vista da superfície e da terra. Conhecíamos as formas dos continentes que emolduravam o oceano, tínhamos assinalado no mapa as brechas terrestres que ligavam o mar Vermelho ao oceano Índico, o Mediterrâneo ao Atlântico e ao Ártico. Contudo, o oceano só faz real sentido em três dimensões, por isso, para o compreender verdadeiramente, precisávamos de ver o mundo pelos olhos de uma baleia.

baleia-azul
baleia-azul Baleia-azul. créditos: Wikimedia Commons

Foi com os progressos dos sonares durante a Segunda Guerra Mundial que tudo isto começou a tornar-se possível e, quando a nossa baleia estava na adolescência, nós começávamos pela primeira vez a ver o leito marinho como deve ser. Os dados fornecidos pelo sonar revelaram que o leito do oceano não era uma planície lisa e desprovida de interesse, como muitos tinham pensado, ostentando pelo contrário vastas cristas montanhosas, fossas profundas e vulcões. Apresentava características e regiões tão claramente definidas como qualquer outra em terra. Começámos a pensar o oceano como cinco grandes bacias interligadas: Ártico, Atlântico, Índico, Pacífico e Antártico — ainda que o oceano Antártico só em 2021 tenha sido oficialmente reconhecido como uma bacia oceânica.

O Pacífico é, de longe, o maior dos cinco: abrange quase metade de todo o oceano e é suficientemente grande para lá caber toda a superfície terrestre do planeta. Além disso, foi assim batizado por Fernão de Magalhães, o explorador português do século XVI, devido à tranquilidade das águas que ali encontrou. Isto poderá parecer improvável para qualquer pessoa que conheça os invernos no Pacífico ao largo do Havai ou no norte da Califórnia, mas Magalhães fez a sua entrada pelo letalmente traiçoeiro estreito situado na ponta da América do Sul, que ainda ostenta o seu nome, pelo que, comparativamente, um dia de calmaria no Pacífico poderá muito bem ter-lhe parecido sereno. O Pacífico é tão vasto que podíamos sair de Melbourne, na Austrália, e alcançar a extremidade sul do Chile ou aproximar-nos do Ártico, através do mar de Bering, sem nunca dele sair.

Embora todas as cinco bacias oceânicas estejam ligadas, como e onde se ligam é que se revela importante para a nossa compreensão da forma como as correntes, os nutrientes e a vida selvagem se movimentam pelo oceano. A rota do Pacífico até à mais pequena das bacias, a do Ártico, passa pelo apertado e pouco profundo estreito de Bering. Esta brecha é percorrida por relativamente pouca água ou vida selvagem. Pelo contrário, no ponto onde encontra a mais jovem das bacias oceânicas do mundo, o Pacífico entra no equivalente marinho de uma misturadora: o oceano Antártico. As águas das bacias oceânicas do Pacífico, do Atlântico e do Índico juntam-se todas ao oceano Antártico e misturam-se na Corrente Circumpolar Antártica, que avança a todo o vapor, no sentido horário, em torno de todo o continente da Antártida.

Em meados da década de 1950, as principais bacias oceânicas, as suas subdivisões (mar Báltico, mar do Norte, golfo do México e outros) e os seus pontos de ligação faziam parte da linguagem científica e política comum. Tal é significativo porque, apesar de sabermos há muito que florescem diferentes habitatsoceânicos em diferentes partes do mundo — os recifes de coral nos trópicos, as algas em águas mais temperadas —, começávamos agora a compreender a água marinha, em si, como parte de um só sistema, os nossos muitos mares, como um só oceano.

Com efeito, quanto mais olhávamos, mais clara parecia tornar-se a evidência de que certas espécies estavam presentes em todo o oceano: a baleia-azul, por exemplo, tinha sido observada em todas as bacias oceânicas; apenas as zonas congeladas dos oceanos Ártico e Antártico estavam fora do seu alcance, uma realidade que irá seguramente mudar nos próximos anos, à medida que o número de baleias for recuperando e devido ao recuo do gelo marinho.

Na década de 1950, a nossa baleia era um adulto em pleno, tinha mais de 25 metros de comprimento e pesava mais de 150 toneladas. Não era apenas “grande”, pois fazia parte da maior espécie animal do planeta: de longe maior do que a maioria dos dinossauros. Sabíamos por que motivo a sua espécie conseguia alcançar tamanha dimensão — a força ascensional das águas do mar permite aos animais que habitam os oceanos atingirem uma massa que os ossos jamais conseguiriam sustentar em terra —, mas ainda não sabíamos o suficiente sobre a vida de uma baleia-azul para compreender o motivo por que tal tamanho poderia constituir uma vantagem evolutiva. Precisaríamos de uma grande parte do tempo de vida da nossa baleia o descobrir.

Do gelo dos polos às águas tropicais, onde há uma boa história subaquática está o fotógrafo Nuno Sá
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Uma revelação acerca das correntes oceânicas deu-nos uma pista essencial. Já há muito tínhamos compreendido que existiam correntes dominantes à superfície do oceano, mas só nos anos 1960 décadas de investigação efetuada por um sem-fim de cientistas do mundo inteiro foram reunidas para descrever um sistema global de correntes, conhecido como circulação termo-halina — ou o tapete rolante global, como passou a ser conhecido. Designado com base nos dois fatores que influenciam a densidade da água marinha, a temperatura (thermo) e a salinidade (halina), este sistema começa com o congelamento da água do mar no extremo norte e no extremo sul do nosso planeta. Quando congela no Ártico, o oceano deixa para trás o seu sal, que não congela, tornando a restante água à superfície mais salgada e mais densa. Esta água fria e densa desce, trazendo à tona outra água superficial para a substituir, gerando uma corrente. A água densa que desce empurra para sul as águas profundas e, durante centenas de anos, esta corrente lenta e profunda desloca-se ao longo das bacias oceânicas, até chegar à Antártida, onde se lhe junta mais água fria, salgada e descendente. A Corrente Circumpolar Antártica desloca a água em torno da Antártida, no sentido horário, até ser novamente impulsionada para norte, em duas correntes: uma que ruma ao oceano Índico e outra, ao Pacífico. À medida que viajam para norte, as correntes vão aquecendo gradualmente e ascendem à superfície. As águas aquecidas continuam a circular à volta do globo, acabando, por fim, por regressar ao Atlântico Norte e alcançando o Ártico, onde o ciclo recomeça.

As correntes trazem nutrientes das profundezas para a superfície, promovendo o desenvolvimento de plâncton e, deste modo, propulsando quase toda a rede alimentar do oceano. Os cientistas descobriram igualmente que, ao transportar calor do equador em direção aos polos, e vice-versa, estas correntes afetam profundamente o clima do mundo. Por exemplo, é este sistema que conduz água quente através do Atlântico Norte, mantendo os países do noroeste da Europa, como o Reino Unido, muito mais quentes do que outros lugares na mesma latitude.

Oceano
Oceano créditos: Temas & Debates

As correntes oceânicas, locais e globais, são vitais para toda a vida na Terra, não apenas para a baleia-azul. Contudo, pensa-se que o afloramento das correntes terá tido especial impacto na evolução da baleia-azul, uma vez que os nutrientes que emergem à superfície alimentam as suas presas, e as presas que a baleia-azul escolhe explicam, por sua vez, por que motivo é tão grande. A baleia-azul sustenta o seu amplo volume consumindo quantidades gigantescas de alguns dos animais mais diminutos do oceano, mas claramente não precisa das suas dimensões épicas para subjugar a sua presa. Durante os seus noventa anos de vida, a nossa baleia-azul terá consumido krill ‒ um pequeno crustáceo da família do camarão ‒, aos biliões, e a forma como o faz exige uma transformação física deveras extraordinária.

Apesar de todo o seu imponente tamanho, uma das características mais notáveis da baleia-azul é a eficiência da sua forma. Como um torpedo em câmara lenta, desloca a água à volta da cabeça e ao longo dos flancos enquanto desliza sem esforço a uma velocidade de cruzeiro de cerca de 10 quilómetros por hora. Contudo, quando encontra um cardume de krill, abre os seus imponentes maxilares num ângulo próximo de 90 graus, deslocando a maxila inferior e expandindo as pregas de pele sob a boca, o que lhe permite engolir 80 mil litros de água repleta de krill num só trago. Filtra-os, então, através das barbas presentes no maxilar superior que deixam a água sair, encurralando o krill no interior. Comparativamente, nós, humanos, conseguimos dar conta de parcos 0,07 litros, sem krill. Quando se alimenta, a boca da baleia-azul consegue insuflar-se até atingir um tamanho equivalente ao resto do corpo, conferindo-lhe a silhueta de um enorme girino.

Este processo é conhecido como lunge-feeding e, tanto quanto conseguimos discernir com base nos registos fósseis e geológicos, parece ter evoluído nas baleias-de-barbas há pouco mais de 7 milhões de anos, aproximadamente na mesma altura, acreditam hoje os cientistas, em que se observou um aumento notável de afloramentos oceânicos ricos em nutrientes. Estes afloramentos terão estimulado picos de florescência de plâncton, peixes miúdos e crustáceos, que foram aproveitados pelas espécies capazes de se alimentar rapidamente segundo este método e engolir grandes quantidades. Ao contrário de outras baleias-de-barbas, as baleias-azuis evoluíram para serem caçadoras especializadas, compondo o krillquase todo o seu regime alimentar. E esta especialização exerceu uma nova influência na sua aparência e no seu comportamento.

Encontramos pelo menos oitenta e cinco espécies de krill em todo o oceano e todas elas se alimentam de plâncton. O termo «plâncton» vem da palavra grega para «errante» e é usado para definir qualquer animal (zooplâncton) ou planta (fitoplâncton) microscópico que se movimenta à deriva ao sabor das correntes oceânicas. O krill agrupa-se em cardumes abundantes, mas que não são constantes e podem estar separados por significativas distâncias. O predador de krill digno desse nome tem, por conseguinte, de conseguir deslocar-se com eficiência durante muitas semanas sucessivas sem se alimentar, mas quando depois depara com a oportunidade para isso, tem de ser capaz de ingerir quantidades tremendas. Uma baleia gigantesca — com uma boca igualmente enorme — de forma aerodinâmica, mas capaz de sobreviver à base das reservas de gordura durante meses enquanto percorre com vagar grandes distâncias, é uma solução altamente eficiente para um animal que se alimenta de krill.

Há, todavia, algo ainda mais comprido do que a nossa baleia-azul que também se alimenta de krill. Com quase 200 metros de comprimento, percorre lentamente a coluna de água durante a noite. A sua brancura espectral reluz e emite uma luz azul-clara luminescente, atraindo assim as presas para a sua cortina de tentáculos urticantes. Podemos achar que é uma só criatura, talvez uma medusa fina e comprida, mas é um gigantesco sifonóforo, uma colónia de indivíduos idênticos, chamados zooides, sendo que cada um assume uma função especial com que contribui para a colónia: alguns capturam presas, outros digerem-nas; alguns nadam, outros reproduzem-se. O sifonóforo deambula por aqui durante a noite porque é neste período que um enorme número de animais ascende das profundezas para se alimentar: a migração vertical diária — a maior movimentação diária de biomassa no nosso planeta.

Muito embora já se soubesse há anos que ocorria no oceano uma qualquer migração vertical, só por volta da altura em que a nossa baleia alcançou a meia-idade os cientistas dispunham da tecnologia e da capacidade de investigação para desvendar a fenomenal escala da migração vertical que sucede diariamente em todo o oceano. Até esse momento, a maioria de nós encarava as migrações marinhas como deslocações horizontais para novas zonas de alimento ou reprodução, como fazem muitas baleias, os atuns ou as aves marinhas.

Contudo, a investigação revelou que enormes quantidades de krill, peixes-lanternas, lulas e inúmeras outras espécies descem, durante o dia, para lá do alcance da luz para evitar os predadores visuais. Quando a noite cai, procuram águas ricas em fitoplâncton e rumam à superfície. À semelhança de todas as outras migrações, também aqui há predadores. Alguns deslocam-se com a migração vertical, capturando os viajantes em plena ascensão, ao passo que outros, como o gigantesco sifonóforo, ficam de atalaia, lançando a sua ampla armadilha ao longo de uma extensão correspondente a dois campos de futebol consecutivos. Com milhares de milhões de animais a participar nesta migração todas as noites, os predadores contam com uma grande fartura de presas.

A segunda metade da vida da nossa baleia refletiu um período de descobertas incríveis. Começávamos a ver o oceano em três dimensões e, à medida que a nossa tecnologia se foi desenvolvendo, as descobertas não pararam de surgir. Os saltos tecnológicos alcançados foram utilizados pelos cientistas marinhos para nos veicular uma perspetiva completamente nova do oceano profundo. Veículos submersíveis revolucionaram a exploração do oceano e, quando alcançámos a década de 1970, tinham sido usados para descobrir uma forma de vida inteiramente nova em torno das fontes hidrotermais do mar profundo. E, à medida que se foi aperfeiçoando mais ainda, a tecnologia foi revelando sucessivas novas maravilhas. Veículos comandados remotamente podiam entretanto passar dias a explorar o leito marinho, enviando em contínuo imagens para a superfície. Hoje, qualquer pessoa com uma ligação à internet pode assistir a vídeos em tempo real transmitidos por missões de veículos de controlo remoto a milhares de metros sob a superfície.

O envio de novas tecnologias para as profundezas veio transformar a nossa perspetiva do oceano, mas o mesmo se pode dizer do seu envio para o espaço. Em 1957, lançámos o nosso primeiro satélite. Durante os sessenta anos que se seguiram, a tecnologia de satélites progrediu de tal maneira que pôde ser usada para descobrir milhares de montes marinhos anteriormente escondidos abaixo da superfície oceânica, acompanhar os movimentos dos animais com localizadores para perceber as suas migrações e obter informação sobre os lugares de maior atividade e as superautoestradas da vida selvagem no mar. Uma combinação de avistamentos visuais e de identificação com localizadores permitiu traçar um panorama das baleias-azuis em todo o mundo. Foram identificadas diferentes subespécies e populações e registaram-se algumas migrações genuinamente maciças que revelaram ligações até então desconhecidas entre diferentes partes do nosso oceano: por exemplo, a investigação veio mostrar que a nossa baleia, uma subespécie chamada baleia-azul-do-norte, passou provavelmente todo o seu tempo de vida no nordeste do Pacífico, deslocando-se de lugares tão a norte como o Alasca a outros tão a sul como a Costa Rica.

Contudo, os satélites e os submersíveis só tinham capacidade para revelar uma parte do panorama global. Para compreender as ligações entre características do oceano e a migração das espécies — por que motivo certas espécies seguem as rotas que seguem —, é preciso um mapeamento de pormenor e, para este efeito, o sonar desempenhou uma vez mais um papel transformador.

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Desde finais da década de 1980 que o sonar multifeixe fornece imagens altamente pormenorizadas de uma vasta área do leito marinho. As versões mais recentes emitem mais de 1500 sondagens de sonar por segundo desde um navio. Os feixes do sonar varrem o fundo e criam um mapa de sons que um computador consegue converter numa representação visual do leito marinho. Com efeito, no final de 2023, 25 por cento de todo o leito marinho já tinha sido mapeado com uma resolução de 100 metros ou superior e está atualmente em curso um grande projeto que visa mapeá-lo na íntegra até 2030. A imagem assim obtida é complementada pelo sonar de feixe dividido, que envia e recebe impulsos acústicos na coluna de água, e, por consequência, consegue detetar e criar mapas acústicos das espécies que nadam nessa área, muito embora, evidentemente, só consiga detetar o que está em dado sítio naquele momento preciso.

Mesmo esta limitação pode agora ser colmatada com progressos na análise de amostras de ADN, através da qual os cientistas conseguem perceber o que atravessou uma coluna de água. Testes de ADN ambiental sondam a água em busca de vestígios de espécies marinhas — pele, excrementos, muco —, analisando o ADN das espécies que passaram por uma área nas últimas horas, sem que seja sequer preciso capturá-las ou mesmo vê-las.

Estes espantosos avanços tecnológicos, combinados com embarcações capazes de permanecer no mar meses a fio e sistemas de monitorização remota em boias que fornecem informações constantes, durante todo o ano, acerca de ondas, temperatura e química da água, vieram revolucionar a nossa compreensão do oceano. Durante a vida de uma só baleia-azul, passámos de vasculhar a superfície do oceano para uma compreensão profunda da sua importância. Não obstante, por mais que estas novas tecnologias, nos últimos noventa anos, nos tenham proporcionado o ponto de vista de uma baleia acerca do oceano, também nos levaram a mudar o mundo em que essa baleia se movimenta, tornando-o irreconhecível.

Ficamos algo surpreendidos quando, sobrepondo um mapa da atividade de pesca global (dos lugares onde mais pescámos) a um mapa mundi, percebemos a sua correlação com os lugares onde a ciência registou as maiores concentrações de nutrientes e as mais significativas aglomerações de vida marinha. À semelhança das baleias, hoje em dia os barcos de pesca também viajam durante meses, detetam montes marinhos e usam o sonar para localizar as suas presas. Tornámo-nos tão competentes na captura de peixe que, estima-se, em 2024, o ser humano terá reduzido a biomassa — a vida — do oceano em 2,7 gigatoneladas. Para termos uma ideia da escala, a totalidade da população humana consiste em cerca de 0,4 gigatoneladas de biomassa, pelo que podemos imaginar o desequilíbrio gerado ao remover sete vezes essa quantidade de vida do ecossistema oceânico.

Todavia, os agentes que determinam a mudança no mundo da nossa baleia não se restringem à sobrepesca. A baleia-azul, como muitas outras espécies do oceano aberto, foi alterando o seu regime alimentar, o comportamento e as capacidades de navegação durante milhões de anos, a fim de explorar com eficiência o lugar que ocupa no oceano diversificado e complexo do nosso planeta — e, como vimos, este nicho é particularmente restrito, considerando que a baleia se alimenta sobretudo de krill e que o seu corpo evoluiu na perfeição no sentido de explorar esta fonte de alimento. Torna-se assim num predador altamente eficiente, mas também muitíssimo suscetível a tudo o que altere a disponibilidade do krill ou a sua capacidade de o encontrar.

oceanos
oceanos créditos: Wikimedia Commons

Ainda não sabemos ao certo de que modo as baleias-azuis combinam os seus diferentes sentidos para atravessar o oceano, mas sabemos que o som é extremamente importante e que usam amplas rotas para migrar em diferentes alturas do ano. Mais ainda, teremos com certeza afetado os seus sentidos e essas rotas de mais maneiras do que teremos sequer capacidade para compreender.

Dezenas de milhares de grandes navios a transportar mercadorias pelo mundo inteiro geram ruído e, por acidente mas inevitavelmente, atingem baleias em migração. O aquecimento e a acidificação do oceano estão a alterar a distribuição da vida no seu seio, retirando fiabilidade aos padrões de alimento e reprodução burilados através do tempo. Ao removermos deliberadamente as espécies de maior porte do oceano para nos alimentarmos delas, as nossas redes, traineiras e dragas destroem ou danificam amiúde também habitats inteiros, perturbando as intricadas teias alimentares de formas que ainda não compreendemos completamente.

Contudo, com os novos conhecimentos adquiridos, ficámos também a saber da capacidade de regeneração do oceano. Compreendemos agora muito mais acerca dos lugares onde a vida floresce e de que modo podemos ajudá-la nesse processo. Registámos exemplos de regeneração e recuperação e podemos — se assim o quisermos — monitorizar e alterar as nossas práticas de pesca de modo a alcançar um equilíbrio em que o oceano possa, em simultâneo, satisfazer as nossas necessidades e florescer. Se a nossa baleia-azul tivesse hoje uma cria, viveria muito possivelmente até ao século XXII. Num mundo em que apliquemos à proteção do seu espaço vital a mesma visão de futuro e compreensão que em tempos salvou a sua espécie, poderá viver para assistir a uma espantosa transformação. Os seus territórios de alimentação nos mares frios de altas latitudes estarão cheios de plâncton, krill e um sem-fim de espécies de peixes. As suas crias nascerão em águas seguras, orladas de mangues e corais. Quando atravessar o oceano aberto, as suas rotas migratórias estarão livres de redes e os montes marinhos por onde passar serão vibrantes de vida. E, quando se aproximar da costa, o leito marinho estará vivo uma vez mais, com algas, corais, mexilhões, lagostas e ostras. Quem sabe se, nas suas viagens, não passará pelos nossos descendentes — membros de uma sociedade que vive em equilíbrio com o mundo natural que lhe fornece alimento, meios de subsistência e inspiração, num tempo em que a humanidade amadureceu e superou o ímpeto de tentar dominar as ondas e, em vez disso, conseguiu finalmente florescer a pari passu com o maior reino selvagem do planeta Terra.

No tempo de vida de uma só baleia-azul, descobrimos mais sobre o nosso oceano do que em toda a restante história da humanidade. No entanto, descobriremos a visão de futuro para ajudar o oceano a recuperar dos danos que lhe causámos nesse mesmo período? Para responder a esta pergunta, temos de abandonar a nossa baleia e mergulhar em cada um dos habitats mais importantes do nosso oceano. Do vasto oceano aberto às misteriosas fontes hidrotermais nas águas profundas, do mar congelado do Ártico ao indomado oceano Antártico, de montes marinhos isolados a densas florestas submarinas, estonteantes jardins de coral e emaranhados de mangues; todos encerram as suas próprias maravilhas na história da evolução, inspiram os seus próprios guardiães humanos e revelam pistas acerca do futuro da vida na Terra.