“Estamos a viver tempos extraordinários”. Tim Rocktäschel, autor de Inteligência Artificial – 10 coisas que deve saber (edição Vogais), abre com palavras auspiciosas o livro que nos entrega. O cientista e investigador a trabalhar na Google DeepMind, envereda numa viagem de dez breves capítulos ao universo da Inteligência Artificial (IA). O também professor de IA no Centro de Inteligência Artificial do Departamento de Informática da University College London, recorda-nos que a IA é, no presente, uma constante nos nossos quotidianos: “está a ser usada ubiquamente para automatizar processos nas nossas vidas diárias”.
Nas perto de 130 páginas do livro, o autor recorda-nos que ainda durante o nosso tempo de vida, “veremos uma mudança transformacional como a IA é usada (…): assistentes pessoais inteligentes (…) robôs humanoides (…) a IA generativa revolucionará o modo como os conteúdos dos meios de comunicação social são criados”.
Para não deixar o leitor órfão de informação sobre um futuro próximo admirável, também estranho e com o seu q.b. de angustiante, Tim Rocktäschel sugere-nos uma viagem que se inicia com a pergunta essencial: “O que é a Inteligência Artificial”, sem lhe esquecer os primórdios: “criar IA tem sido o sonho de pessoas há séculos”. Desta forma, o autor de Inteligência Artificial – 10 coisas que deve saber, recorda-nos o matemático Alan Turing (1912 a 1954), frequentemente referido como o pai da IA; mas também nos deixa um pertinente tema para reflexão: “é justo perguntar-se se a IA poderá, a dada altura, tornar-se mais inteligente do que qualquer ser humano no planeta ou até do que toda a humanidade junta”. Numa escrita acessível, sem recurso a jargão matemático, Rocktäschel olha para os jogos de computador, manancial para a evolução da IA, para as redes neurais artificiais que consistem em centenas de milhares de milhões de neurónios simulados “cujo único trabalho é prever a palavra seguinte num dado texto”. Isto, sem omitir a aplicação da IA ao processo científico: “uma IA chamada AlphaFold é capaz de prever estruturas proteicas tridimensionais, a partir de sequências de aminoácidos e tem preenchido uma base de dados de 200 milhões de previsões”, escreve o autor.
Uma análise à IA à qual Tim Rocktäschel não subtrai os riscos significativos a curto, médio e longo prazo e a forma como podemos mitigá-los.
Do livro, publicamos um excerto, retirado do capítulo 7 da obra:
A Inteligência Artificial pode fazer descobertas científicas
Pode a IA ser criativa? Pode ela conduzir a novas descobertas científicas? A 10 de março de 2016, a AlphaGo ganhou o seu segundo jogo de go contra Lee Sedol, um jogador profissional (9.º dan). Notável neste jogo foi uma jogada da AlphaGo que mais tarde ficou celebremente conhecida como Jogada 37.
Segundo o comentador, foi uma jogada criativa que normalmente não veríamos em partidas de jogadores de topo. As pessoas já jogam o go há milhares de anos, mas a estratégia usada pela AlphaGo foi algo de novo. Na verdade, os sistemas de IA, tais como a AlphaGo, vieram mudar a maneira como o go é ensinado, dado que os estudantes têm atualmente acesso a partidas jogadas por IA que revelam estratégias antes desconhecidas e que conduzem a novos comportamentos humanos.
A IA já conduziu a novas descobertas, para além dos jogos. Um estudo de 2019 descobriu que a IA treinada com publicações acerca da ciência de materiais, “poderá recomendar materiais para aplicações funcionais vários anos antes da sua descoberta”. Usando a aprendizagem por reforço profunda, a IA também tem sido utilizada para descobrir algoritmos de ordenação novos que são mais rápidos do que qualquer um dos algoritmos existentes, os quais foram inventados pelos programadores humanos desde os primórdios da ciência da computação. Uma IA baseada em LLM tem sido usada para descobrir soluções programáticas novas para problemas combinatórios.
Em 2021, um sistema chamado AlphaFold 1 demonstrou capacidade para prever estruturas proteicas tridimensionais a partir de sequências de aminoácidos, o que agora está a revolucionar a maneira como a bioinformática é feita.
Hoje em dia, a IA está já a ser usada em muitos domínios restritos para melhorar radicalmente o processo de descoberta científica, e acredita-se que seja “um emergente método geral de invenção”. No entanto, poderemos sentir-nos tentados a defender que, até agora, a IA ainda segue na ciência o padrão a que Lem (veja o Capítulo 3) chamaria “reforços inteletrónicos”, isto é, a estrutura da ciência não está a mudar de forma radical. A IA é implementada em domínios específicos com a ajuda de cientistas humanos que fornecem conhecimento significativo específico de domínio. De facto, a AlphaFold é descrita pelos seus autores como “uma nova abordagem de aprendizagem automática que incorpora conhecimento físico e biológico acerca da estrutura das proteínas". A hipótese científica a investigar, bem como qualquer conhecimento de domínio necessário, ainda é fornecida à IA pelas pessoas.
O que seria preciso para “alcançar uma vitória estratégica total” sobre a “barreira de informação da nossa civilização”, tal como foi imaginada por Lem? Significaria que estávamos a ser bem-sucedidos no desenvolvimento de uma IA que não se limita a tornar as pessoas mais eficientes nas suas iniciativas científicas, mas uma IA que consegue automatizar a maioria ou mesmo a totalidade do processo científico, conduzindo a um processo de criação de conhecimento autónomo e ilimitado.
Segundo David Deutsch, a ciência é o processo de “procurar boas explicações, através da criatividade e do criticismo” e as pessoas “criam-nas ao rearranjarem, combinarem, alterarem e contribuírem para ideias existentes, com a intenção de as melhorar”. Além disso, David Deutsch diz que uma boa explicação se caracteriza por ser “difícil de alterar, pois todos os seus detalhes desempenham um papel funcional». Dada esta descrição, poderemos decompor o processo científico numa gama de capacidades que uma IA teria de possuir para realizar ciência de forma autónoma. Ela precisa de ser capaz de processar a linguagem natural para ler e compreender as explicações que os cientistas humanos produziram até agora. Dadas estas explicações, o conhecimento da literatura científica e os conhecimentos de bom senso, do mundo e de domínio, teria de ser capaz de gerar teorias explicativas novas, o que tanto exige criatividade como a capacidade para avaliar a novidade. Por último, tem de ser capaz de criticar as explicações, com base em provas empíricas, através do planeamento e da realização de experiências ou através da leitura de resultados e argumentos empíricos relatados por outros cientistas, quer estes sejam seres humanos ou IA.
Acredito que estamos a assistir a sinais de vida iniciais na IA para todas estas capacidades. O setor está a progredir rapidamente, no sentido de superar a primeira barreira de processamento e compreensão da linguagem. Tal como analisámos nos dois capítulos anteriores, os Modelos de Linguagem de Grande Escala (LLM) são capazes de adquirir o conhecimento do mundo, do bom senso e do domínio através do treino com conjuntos de textos à escala da Internet. No entanto, nesse processo, os LLM também demonstraram espantosas capacidades suplementares. Poderão funcionar como máquinas de padrão geral, optimizadores, e até operadores de recombinação evolutivos e inteligentes. Por outras palavras, os LLM são capazes de gerar variações de dados. Se fornecermos explicações à IA, ela poderá gerar variações destas explicações. Uma questão diferente é saber se estas explicações geradas irão ser explicações novas e boas.
Há outros indícios de que a IA poderá igualar a criatividade de nível humano. Um estudo recente não encontrou “nenhuma diferença qualitativa entre a criatividade da IA e a que é gerada pelos seres humanos” num teste padronizado que pede aos participantes que criem novas utilizações para os objetos do dia a dia. Embora este estudo não nos diga se a IA poderá ser igualmente criativa em relação a problemas científicos, outro estudo recente foi capaz de “gerar hipóteses excêntricas, cientificamente promissoras” e prever descobertas futuras usando a IA. Por que razão é isto possível? Os LLM, quando estão a ser treinados com dados textuais humanos à escala da Internet, começam a incorporar noções humanas de grau de interesse (interestingness) — “interiorizam conceitos humanos de grau de interesse devido ao treino com enormes quantidades de dados gerados pelos seres humanos, em que os seres humanos escrevem naturalmente acerca do que consideram interessante ou aborrecido”.
No seu conjunto, a IA atual está a demonstrar sinais de vida, tanto na variação como na seleção de hipóteses, de acordo com o interesse que possam ter para um ser humano, cumprindo assim as condições iniciais para uma evolução tecnológica autónoma. Fechar o circuito científico exige igualmente a incorporação de provas empíricas. Quando se trata de aplicar a análise estatística, os LLM parecem já ser capazes de realizar uma grande variedade de tarefas estatísticas, “semelhantes ao que um estatístico consegue fazer na vida real”. Em simultâneo, a sua capacidade para escrever programas de computador está a melhorar a um ritmo impressionante.
Embora estejamos apenas no início da incorporação da IA nos processos científicos, a IA já foi adotada numa vasta gama de domínios científicos, onde está a acelerar a descoberta de novo conhecimento explicativo. A próxima fase na evolução do processo científico verá provavelmente cientistas de IA (semi)autónomos a transformarem radicalmente o ritmo a que a ciência é feita. Acredito que os indícios atuais apontam para um futuro em que a “vitória estratégica total” de Lem é alcançável durante o nosso tempo de vida.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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