“Porque é que fiquei?” É isto que perguntam a si mesmas (e que lhes perguntam os outros) as pessoas que conseguiram sair de uma relação com alguém com perversão narcisista, assim que começam a olhar para trás, para a sua história, como quem acorda de um pesadelo. Face a este doloroso mistério - porque é que nos deixamos ficar reféns de relações tóxicas? - a psicoterapeuta Anne Clotilde Ziégler, autora de vários bestsellers sobre narcisismo, apresentano seu livro Porque é que fiquei? (edição Pergaminho) respostas para ajudar a fazer as pazes com o passado e reconstruir a identidade e autoestima, depois de uma relação tóxica. A autora analisa ao detalhe as estratégias utilizadas pelos predadores, que explicam como as pessoas ficam presas numa relação, e a sua vulnerabilidade específica.
Um livro endereçado a todas as vítimas de relações tóxicas, assim como para os seus amigos e familiares. “Sair de uma relação tóxica é um processo longo e difícil, um combate que merece ser reconhecido”, diz-nos a autora.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
Fiquei…porque cheguei à conclusão de que sou eu que tenho um problema
O esforço para enlouquecer o outro ou gaslighting
O termo gaslighting é uma alusão ao filme Gaslight (1940), que mostra um homem – um predador com uma bela figura – agindo para fazer crer à mulher que ela é louca, para os fins vilanescos que são revelados no final. Este esforço para enlouquecer o outro é uma manobra que pode parecer uma técnica de inversão (não fui eu que cometi erros ou falhas, tu é que enlouqueceste), mas que, na minha opinião, vai muito além de uma simples transferência de responsabilidades. É de outra natureza e obedece a outras motivações.
Uma relação de domínio com um perverso narcisista envolve invariavelmente manipulações destinadas a fazer com que a presa duvide da sua saúde mental, num esforço para a enlouquecer. Essas manipulações são conscientes, mesmo que o seu motivo subjacente não seja visível para o predador. Todavia, à superfície, ver a sua presa enlouquecer é para ele uma fonte de intenso prazer.
Como é que o predador procede? Para escapar ao fascínio e à estupefação, mas também para compreender porque é que a presa fica ali retida e permanece durante muito tempo, é preciso recuperar o raciocínio e compreender a manobra. Depois de vermos como um mágico faz um truque, este já não tem graça. Seguem -se os principais truques de prestidigitação do predador.
Modificar impercetivelmente o ambiente familiar da presa
Baseamos a nossa tranquilidade – e uma parte da nossa identidade, como demonstrou Jean-Claude Kaufmann – no facto de os nossos objetos familiares estarem sempre no mesmo lugar: a nossa chávena do café da manhã, as colheres de chá, o nosso pente, etc. Alguns destes objetos são utilizados diariamente, alguns ocasionalmente, e outros ainda mais raramente (os livros da biblioteca, por exemplo, ou os talheres de prata), mas sabemos onde estão e, sem nos apercebermos, criámos uma forma de estabilidade graças a isso. O nosso universo é seguro, previsível, controlado e livre de traições. Alguns objetos são, pelo contrário, nómadas e, para os mais distraídos, significam longos minutos de procura: as chaves, os óculos.
Deslocar ou fazer desaparecer objetos familiares – sem dizer nada e negando tê-lo feito, obviamente – é uma forma muito eficaz de desestabilizar uma pessoa. O seu ambiente trai-a, tornando-se imprevisível, caótico e assustador. Quem é que nunca passou um dia a pensar no que poderia ter feito com este ou aquele objeto que esperava encontrar no seu lugar? Tudo o que o predador tem de fazer é voltar a colocar o objeto no seu lugar habitual (como é que eu não o vi?) ou guardá-lo num lugar inesperado, mesmo incongruente, para que a pessoa duvide de si própria e fique angustiada.
A presa não consegue conceber que o seu predador o tenha feito intencionalmente (aliás, ele nega-o com a maior veemência), pelo que facilmente atribui a si própria a responsabilidade por não saber onde põe as coisas, com a impressão de estar a enlouquecer.
Dizer uma coisa e depois o contrário
Nesta manobra, o predador faz uma afirmação antes de afirmar o seu contrário, negando que se trata de uma contradição, e não importa se é uma coisa pequena ou grande, como gostar de iogurte de morango ou querer mudar -se para Timbuktu.
O predador pode argumentar que as suas afirmações não estão em oposição e que a presa está a agir de má vontade, é limitada intelectualmente ou até que está psicologicamente perturbada. Quanto mais claramente contraditórias forem as duas afirmações e quanto mais vigorosamente forem negadas, maior será o efeito de confusão (tu não percebes mesmo nada, és tão estúpida! o facto de eu querer ir viver para Timbuktu não significa que queira deixar Paris). A presa reage, por vezes, de forma energética, desencadeando um conflito que vai incendiar -se e passar para outras questões, de preferência as que lhe são mais dolorosas. Na maioria das vezes, no entanto, ela fica paralisada e atordoada com tanta incoerência, antes de finalmente admitir que deve de facto ter um problema, uma vez que não compreende o que parece ser tão óbvio.
O predador pode também contestar ter dito o que disse: a presa terá entendido mal, ouvido mal ou tomado os seus desejos por realidades, etc. O conflito, neste caso, não resolve nada e acaba mal para a presa: confusa, dominada por emoções violentas, acaba por concordar que talvez se tenha enganado. A sua coerência vacila e tem dúvidas mais do que suficientes sobre o que percebeu. O gaslighting está em marcha.
Transmitir mensagens verbais e não verbais incoerentes
O nível não verbal da comunicação pode ser detetado muito rapidamente, sem que estejamos claramente conscientes disso. Ele é, no entanto, fundamental, pois fornece a chave para interpretar o que está a ser dito, dando informações sobre o estado emocional do orador. Muitas vezes, é isto que falta nas mensagens escritas e que leva a mal-entendidos (os emoticons foram concebidos para compensar este facto). Quando a linguagem não verbal é coerente com a afirmação, reforça-a e facilita a sua compreensão; caso contrário, gera confusão.
Dizer “Estou satisfeito com este presente” com uma cara séria ou fazer um elogio subtilmente irónico torna a mensagem incompreensível.
“Será que ele está mesmo satisfeito com o meu presente?”, perguntará a presa, ou “Quando ele diz que gostaria de ter o meu apetite, será que ele pensa que eu como demasiado?”.
Em todas as suas tentativas de metacomunicação (a comunicação que fala sobre a comunicação) a presa ouvirá dizer que não percebe nada ou que está louca, e o predador negará a evidência da sua declaração não verbal. Enquanto a presa não se aperceber do truque de ilusionismo e não decifrar a incoerência dos dois níveis de mensagem, permanecerá na zona intermédia de um discurso incompreensível que finge ser claro, com a convicção angustiante de que, de facto, não compreende nada do que o seu interlocutor está a dizer. Como ele não tem dificuldade em comunicar com os outros, e tudo lhes parece claro quando ele se exprime, a presa chega à conclusão de que tem um problema, e quanto mais abertamente ele se mostra encantador, mais preocupada ela fica. Normalmente, acaba por decidir que tem de “mudar algo em si própria”.
Reescrever a história
Além de se basear nos nossos hábitos quotidianos, a nossa identidade baseia -se num relato interior constituído em parte por lembranças, devaneios e projetos. Algumas lembranças são fundamentais tanto para uma pessoa como para um casal (o primeiro beijo, uma declaração de amor, a primeira viagem, a compra de certos objetos ou, se for caso disso, o nascimento de filhos), mas todas as nossas lembranças, mais ou menos significativas, são constitutivas da nossa coerência interna. As recordações da infância, dos lugares que amamos, das circunstâncias de um encontro, de infortúnios, de perdas, de alegrias, todas contribuem para fazer de nós aquilo que somos.
Todavia, a memória pode pregar-nos partidas – toda a gente já o experimentou – porque cada memória é uma reconstrução. Assim, é fácil fazer com que a presa duvide, e o predador faz isso mesmo, reescrevendo as histórias a seu favor, nalguns casos várias vezes. Assim, dependendo do estado da recordação modificada, a presa duvidará da sua memória, da sua perceção e das suas intenções no momento, o que a faz sentir-se insegura e põe em causa a sua autoconfiança.
Se a recordação for fundamental, ela duvidará da sua compreensão da situação global, com a impressão quase paranoica de que acordou numa situação que não compreende. Por exemplo, consoante foi ele que lhe implorou para voltar depois de uma discussão ou foi ela que se agarrou a ele, a sua compreensão do que acontece a seguir será completamente alterada.
Se foi a memória de pequenas coisas, menos essenciais e fundadoras, que se transformou (a presença de um amigo numa certa ocasião, o facto de ter recebido um presente no seu último aniversário, meses antes, etc.), o efeito continua a ser muito perturbador para a coerência interna da presa. Apesar de clamar com emoção e insistir que não foi assim que aconteceu, os seus protestos servem de estímulo ao predador, que aproveita a oportunidade para lhe dizer que ela é, de facto, louca. Confusa e stressada, ela acaba por duvidar da sua sanidade mental.
As memórias são inerentemente subjetivas: uma pessoa normal acabará por admitir, perante a emoção da outra pessoa, que não percebeu a mesma coisa que ela, e que pode ser que esteja enganada; um perverso narcisista nunca o admitirá, porque está a tentar enlouquecer a outra pessoa.
Dar ordens de ligação dupla
A ligação dupla é uma forma de comunicação particularmente tóxica. Consiste, na maior parte das vezes, em dar duas instruções impossíveis de seguir ao mesmo tempo ou em dar uma ordem que não pode ser obedecida; por exemplo, gritar a alguém para se acalmar: o grito deixa a pessoa tensa e amedrontada e impede-a de obedecer à ordem. Além disso, quem é que consegue descontrair-se quando lhe estão a dar ordens? A ligação dupla é particularmente difícil de identificar e enfrentar, em grande parte devido ao stresse que gera.
Esta forma de mensagem tóxica foi descoberta por Gregory Bateson, que a identificou nas famílias de esquizofrénicos: leva as pessoas à loucura ou contribui para ela. O perverso narcisista (embora não seja o único a fazê-lo) usa e abusa dela, e a sua presa tenta “dançar consoante a música” sem o conseguir, retida numa armadilha absurda e inextricável. Faça o que fizer, as coisas não correm bem e ela dá ao seu predador um pretexto para incessantes censuras. Isto desestabiliza -a ainda mais emocional e cognitivamente e dá-lhe a impressão de estar a enlouquecer.
Descontextualizar as reações da presa
Como acabámos de ver, a presa está desorientada, confusa e repleta de emoções violentas que precisam de ser manifestadas. A manobra de descontextualização funciona sempre: consideradas isoladamente, sem se ter em conta o que as provocou, as reações e as manifestações emocionais da presa podem ser consideradas como sintomas de uma patologia mental. Estas reações não serão vistas por aquilo que realmente são, reações, mas como a expressão de um psiquismo perturbado na sua essência.
Por exemplo, se o predador começa logo ao acordar a espalhar pequenas críticas insidiosas sobre a cara da presa (oh! olha a tua cara! Dormiste mal?), sobre o seu cheiro (ups! Há quem precise de um duche por aqui…), sobre os seus chinelos (os teus chinelos de avozinha não são mesmo nada sensuais!), sobre o sabor do café (que horror! que café é este? mudaste de marca?), tudo isto antes de tomar um duche suficientemente longo para esvaziar o depósito de água quente e, finalmente, dizer à presa que já não há combustível no depósito do carro que ela costuma levar para o trabalho, há uma boa hipótese de esta acabar por perder a calma. Se explodir de raiva ou fizer um comentário ponderado, pode ser censurada pelo seu “mau humor matinal crónico” ou pela sua maneira de “estragar a despedida, quando só nos vamos voltar a ver à noite”, ou mesmo pela experiência insuportável de viver com ela. De facto, ela foi desagradável ou fez uma grande birra. Fora de contexto, pode ser acusada de ter mau feitio e, se isto voltar a acontecer, de ser temperamental.
Recordo-me de uma paciente que, depois de ter saído de uma relação de domínio, me confessou com grande vergonha que era alcoólica. Depois de a ouvir, apercebi-me de que se tinha embriagado apenas uma vez, na altura em que o seu marido predador tinha saído por três dias com outra mulher. Ela estava convencida de que se tratava de alcoolismo, embora, claro, não o fosse.
A própria presa já não sabe a que é que reagiu e já não consegue discernir que as suas reações são normais. A dúvida instala-se. O gaslighting funciona.
Fazer psicologia inversa
O predador, que muitas vezes se orgulha dos seus conhecimentos de psicologia – quando não exerce uma profissão na área da “psicologia” ou do coaching –, pode entregar -se a interpretações psicologizantes, tanto mais facilmente quanto mais tiver desestabilizado a sua presa.
Sabemos que não temos consciência de todas as nossas características psicológicas: um peixe não sabe o que é a água ou, para citar Lacan, o olho não pode olhar para si próprio. É por isso que estamos sempre interessados nas opiniões dos outros sobre nós. Muitas vezes, elas deixam nos uma impressão profunda e fazem com que nos questionemos (sobretudo, infelizmente, se forem negativas).
Basta que o predador assuma uma posição de autoridade, temperada com palavras inteligentes, ares de sabichão e exemplos de reações descontextualizadas, e já está. A presa interioriza o que está a ser dito e questiona -o longamente ou até concorda: “tens comigo uma relação transferencial; projetas a figura do pai e fazes manobras passivo-agressivas com o único objetivo de te vingares de um Édipo não resolvido. Por exemplo, não passaste a minha camisa a ferro [ela acabou de chegar e não teve tempo]. Minha pobre menina, és um caso perdido… Precisas de tratamento, mas pergunto-me se, no teu caso, o nome do pai não prescreveu, o que te coloca imediatamente no quadro de uma fragmentação psíquica sem acesso à relação de objeto”.
E assim se deixa a presa no meio de imensas dúvidas sobre a sua saúde mental: é verdade que ela está furiosa com ele... e se for verdade que ela é passivo -agressiva, e aquilo sobre ter prescrito parece algo grave...
Além disso, a atribuição de tal ou tal característica, especialmente se for repetida, terá um efeito modelador, uma profecia que se cumpre a si mesma, conhecida como o “efeito Pigmalião”: à força de nos dizerem que somos desajeitados, muitas vezes tornamo-nos desajeitados.
Por sinal, estas manipulações explicam por que razão é imperativo que o profissional que lida com as presas que o consultam proceda de uma forma particular. No caso geral do tratamento psicoterapêutico, é necessário ajudar o paciente a recuperar a sua responsabilidade e a descobrir que ele é parte do problema. Esta tomada de responsabilidade permite-lhe assumir a sua liberdade e o seu poder de agir de forma diferente. Aqui, o gaslighting e as interpretações exageradas ditam a necessidade de começar por desconstruir o discurso do outro, o que pode levar muito tempo. Depois, e só depois, é que se analisa a responsabilidade da presa, as suas vulnerabilidades específicas que permitem ao predador agarrar-se a ela.
Porque é que o predador faz isto?
As manobras utilizadas pelo perverso narcisista podem ser conscientes, mas os seus motivos mais profundos escapam-lhe.
A psicose branca
“Psicose” é o nome erudito para “loucura”. Proponho darmos alguns passos juntos para entender do que estamos a falar. O ego de uma pessoa é aquela autoridade psíquica que diz «eu». A sua função consiste em estabelecer um sentido de identidade (mais ou menos) estável e coerente, em gerir as escolhas e os conflitos interiores, mas também em dar sentido aos acontecimentos do mundo exterior. Quando a pessoa está bem, o seu ego é coerente e flexível, adaptável; pode aceitar a mudança e o questionamento, não vivendo obcecada com questões narcísicas.
Esta autoridade coloca um problema nos seus extremos: um ego demasiado “forte” é categórico, sem cambiantes, ilusoriamente omnisciente e omnipotente (eu sei tudo, compreendo tudo, posso tudo e tenho necessariamente razão); no caso da perversão narcísica, compensa excessivamente um ego fraco e doente, que ameaça fragmentar -se a qualquer momento, arriscando uma desintegração do sentido de si e do mundo, uma incoerência muito intensamente angustiante. Já nada é estável, já nada é compreensível, já nada é inteligível, já nada é previsível, nem a própria pessoa nem o mundo, e a diferença entre os dois não é clara: é o caos, a psicose, a loucura, a desintegração, a morte psicológica.
A patologia narcísica perversa é assim uma fortaleza defensiva que visa impedir essa desintegração, essa fragmentação, que constitui uma ameaça constante e sempre presente. É a esta ameaça de descompensação psicótica que damos o nome de “psicose branca”: ela não é acompanhada, como a psicose habitual, de alucinações e delírios (ou então de um delírio de baixo nível, que emerge na grandiosidade narcísica e nos “factos alternativos”, nos quais o predador acaba por acreditar, como constatamos com espanto), mas é no risco de uma descompensação maior – em particular de uma verdadeira paranoia – que a psique do perverso narcísico se encontra permanentemente.
Enlouquecer o outro
Neste contexto, o esforço para enlouquecer a outra pessoa tem vários objetivos.
- Transferir a loucura para a presa
O raciocínio é simples: trata -se de uma inversão, desta vez inconsciente nas suas motivações mais profundas (não sou eu que sou louco, é a outra pessoa). Os desafios da sobrevivência psicológica tornam a manobra implacável.
- Partilhar a experiência instável da psicose
Quando o predador consegue arrastar a sua presa para um universo psíquico instável, incoerente e angustiante, já não está sozinho com a sua experiência. Conseguiu transmitir a sua psicose à outra pessoa, como se fosse basicamente normal, e isso tranquiliza -o.
Efeitos do gaslighting na presa
A desestabilização
As acusações de insanidade, a sua demonstração através de argumentos tendenciosos e os desequilíbrios emocionais experimentados pela presa acabam por convencê-la, em maior ou menor grau, de que algo está errado com ela. O mínimo que pode dizer é que não está no melhor estado de saúde mental, como se pode ver, e tem dificuldade em discernir se o que veio primeiro foi o ovo ou a galinha: estará ela em apuros porque o predador a empurra para isso, ou estará o predador a agir assim com ela porque ela é louca e insuportável? Numa relação longa, é efetivamente difícil discernir as causas e as consequências, “pontuar as sequências relacionais”. como dizem os psicólogos sistémicos. Elas tendem a entrar numa espiral inextricável, sobretudo quando se está no meio de uma tempestade emocional e cognitiva.
A presa tem dificuldade em falar com qualquer outra pessoa sobre o que lhe está a acontecer, mesmo com um psiquiatra: a qualquer momento, ela pode distorcer a história, que será necessariamente subjetiva. Além disso, tem vergonha do que lhe está a acontecer, das suas reações, por isso cala -se e permanece com a sua experiência.
É assaltada por uma dúvida: louca ou doente mental como é, estará em condições de tomar a decisão de sair, de deixar a relação? E, se o fizer, será que a sua loucura lhe permitirá desenvencilhar-se sozinha? Haverá mais alguém que a queira? Será o predador, no fim de contas, uma boa pessoa que está disposta a suportar a sua loucura, que mais ninguém aceitaria?
Incapaz de responder a estas perguntas durante muito tempo, ela bloqueia e fica.
A experiência da estranheza
Perante a psicose de outra pessoa, a experiência é de estranheza, de um mal-estar difuso e surdo, difícil de nomear e cuja origem é quase impossível de discernir, como um sopro de caos. É tão inquietante, ou mesmo angustiante, que tentamos esquecê-la rapidamente e passar a outra coisa. A presa prefere pensar que é ela que está a funcionar mal, e tenta esquecer tudo o mais rapidamente possível, para que o abismo se feche. A sensação de ser uma pessoa perturbada psiquicamente é desagradável, mas mais estável e menos caótica.
E depois, se for preciso, ela pode fazer alguma coisa em relação a isso. Assim, muitas vezes, se não sempre, as presas que me procuram para pedir ajuda relatam episódios de amnésia; não se lembram do que aconteceu. A experiência da estranheza é uma explicação possível para estas falhas de memória.
Quando a presa já não se lembra, não possui uma base estável para ser consistente com a decisão de se ir embora; por isso, ela fica. É menos angustiante.
A solidariedade
Perante a psicose, esse monstro que espreita na sombra, que ameaça a sua coerência interna e que provoca um nível de ansiedade muito elevado que ele tenta suprimir, o perverso narcisista sente -se só. Tenta sê-lo menos “partilhando” a sensação da psicose que está a surgir, ou seja, ameaçando a coerência interna da sua presa e tentando gerar nela uma angústia como a sua. Muitas vezes, a presa aceita inconscientemente esta partilha, por amor e empatia, mesmo que seja em seu detrimento; além disso, tende a tornar o insuportável suportável porque ele é solidário com ela... Ela sacrifica -se por amor, e este amor suaviza tudo.
O sentimento confuso de que está a abandonar a outra pessoa ao seu triste destino e à sua angústia se a deixar retém-na durante muito tempo.
O caminho e as armadilhas para ultrapassar os efeitos do gaslighting
1. Tomar consciência pouco a pouco, recordar-se
Como é que podemos forçar-nos a recordar-nos do que não nos recordamos? É obviamente impossível (e este é um bom exemplo de uma dupla ligação). A memória do que aconteceu, vaga e fragmentária, pode voltar quando se lê algo ou se ouve alguém que fala sobre estes assuntos, mas para isso é preciso ter iniciado a viagem da consciência.
Por vezes, as perguntas das presas levam-nas a consultar a Internet, onde começam a encontrar respostas às suas perguntas graças à magia dos motores de busca; outras vezes, é uma amiga ou um amigo que tem algum conhecimento do assunto e que pode expressá-lo por palavras; por vezes, é um livro cujo título ressoa com a sua própria experiência; por vezes, é um profissional que, tendo explorado o assunto, pode dar um nome ao que se está a passar.
O facto é que a presa ainda leva tempo a admitir o que começa a compreender, tanto mais que não é perfeita e livre de reações neuróticas (como toda a gente). O discernimento é uma arte delicada e não é uma tarefa fácil. Neste caso, a ajuda de um profissional é muito bem-vinda.
2. Admitir que não se compreende tudo
A psicose é, no fundo, difícil de conceber: é uma experiência inacessível a quem não a tenha vivido, por exemplo, num episódio delirante (sem sequelas, mesmo que não sem consequências), ou a quem não tenha frequentado profissionalmente hospitais psiquiátricos. É muito difícil ver como é a experiência da fragmentação a partir de um ego não fragmentado, porque tendemos a tentar compreender a experiência do outro a partir da nossa. Acrescente -se que a psicose aqui é apenas superficial: a perversa fortaleza narcísica funciona, e é por isso que é tão difícil, se não impossível, abalá-la.
Para a presa, por outro lado, admitir que a psique de alguém que ama ou amou, que conhece tão intimamente, com quem partilha ou partilhou a sua vida, e com quem por vezes teve filhos, se baseia numa experiência tão estranha e patológica é muito desestabilizador. O predador tem um carácter difícil, é verdade, mas não tem o aspeto de um louco, desse ser que imaginamos como estranho e radicalmente diferente, desgrenhado e incoerente. Com frequência, com muita frequência, ele parece normal. Diz e faz coisas sensatas. Ela conhece-o, ter-se-ia apercebido. E as vezes em que esteve perto de se aperceber da disfunção estão meio apagadas...
Tantas outras explicações são possíveis, e ela agarra -se a elas: conflitos normais, como em todos os casais, uma dificuldade temporária no trabalho, preocupações familiares ou com amigos, até a sua própria loucura, demonstrada pelo gaslighting, a sua depressão, as suas crises de choro, etc., desde que se esqueça de que, no caso dela, tem tudo que ver com a reação.
Esta tomada de consciência do inconcebível (no sentido literal, significa que não se chega a concebê-lo) é evanescente e instável; às vezes ela vê, mas depois não acredita e já não vê; é angustiante, insuportável. Demora muito tempo a admitir isto e a admitir que não pode mudar nada. Sendo a perversão narcísica uma defesa que funciona para evitar efetivamente a loucura, a pessoa portadora da patologia agarrar-se-á a ela como a uma tábua de salvação... e, de um certo ponto de vista, até terá razão.
3. Passar pela dor de deixar alguém com a sua loucura
A presa está intimamente convencida de que o predador merece toda a sua compaixão, sobretudo porque o ama ou amou. Se ela se for embora, sente que está a abandoná-lo à sua loucura. No entanto, não serve de nada (nem para a presa nem para o predador) ficar sob os seus golpes, por vezes reais, mas, mais frequentemente, verbais e psicológicos, e em todo o caso infinitamente destrutivos. É preciso tempo para que a presa se convença disso e aceite passar por esse sofrimento.
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