O ano é 1989 e Steven Sotherberg lança o seu primeiro filme, “Sexo, mentiras e vídeo”, que lhe garante o prémio da crítica internacional em Cannes. Sotherberg foge às grandes produções hollywoodescas e cria uma obra intimista, focalizada em quatro personagens e nas relações que estabelecem entre si. Encontramos como personagem-chave Graham (James Spader), um indivíduo discreto mas algo bizarro que retorna à sua cidade natal para tentar reconquistar o afecto do seu amor de faculdade; John (Peter Gallagher) é o seu amigo também dos tempos de faculdade, agora advogado bem sucedido numa firma da cidade, que o acolhe, casado com Ann (Andie MacDowell), uma dona de casa neurótica e sexofóbica; por último, encontramos ainda a irmã desta, Cynthia (Laura SanGiacomo), empregada de bar, o oposto de Ann em termos de feitio, que mantém um envolvimento sexual secreto com o cunhado.

“Sexo, mentiras e vídeo”, como sugerido pelo nome, lida basicamente com a questão da mentira. São vários os tipos de mentiras que este filme aborda, nomeadamente as que contamos a nós próprios, bem como as que contamos às pessoas com quem nos relacionamos emocionalmente. Graham acredita que é capaz de reconquistar a sua antiga paixão por ter mudado a sua forma de encarar a vida. Entretanto, ao longo desse processo, deixou de ser capaz de se entregar emocional e sexualmente. Cynthia e John mantêm o seu relacionamento secreto e John mente abertamente a Ann quando esta o confronta com a suspeita de que ele lhe estará a ser infiel. Ann aceita as explicações dele, mentindo a si própria e denegando os sinais óbvios de que algo não está bem.

Será esta uma realidade muito alheia à da generalidade dos relacionamentos afetivos? Farão as mentiras parte integrante das relações entre as pessoas? Gostemos ou não, a mentira é uma realidade incontornável da existência e dos relacionamentos humanos. Sem ela a cortesia, a educação, a tolerância, a aceitação e uma série de outras coisas que associamos à vida em sociedade e ao civismo provavelmente não seriam possíveis. Nas relações íntimas a ausência da mentira tornaria qualquer envolvimento (ainda mais) complexo e, possivelmente, inviável.

É habitual e expectável que, mesmo quando envolvidos em relações de compromisso se deseje e fantasie com terceiros. A nossa sexualidade não se limita ao ato sexual, ao beijo, ao abraço; ela espraia-se pelos caminhos tortuosos da nossa mente, por meandros que na maioria das vezes escapam ao nosso controlo. Se todos esses caminhos fossem partilhados com quem partilhamos a vida, as consequências seriam imprevisíveis, mas provavelmente catastróficas. Apesar disso, mantém-se a ideia, culturalmente partilhada e socialmente reforçada, de que é desejável ser-se cem por cento honesto para com o outro e que a mentira é um mal a evitar nos relacionamentos. Ao manter esta crença, está-se paradoxalmente a perpetuar a necessidade da mentira e a criar impasses na vida dos casais. Um deles refere-se à ideia da fidelidade.

A mentira da fidelidade

A ideia da relação única, monogâmica e eterna, encontra-se enraizada no nosso imaginário. Está nos contos de fada (“E viveram felizes para sempre...”), nas narrativas fundadoras da nossa cultura (Adão e Eva) e na cultura popular (telenovelas, filmes, romances, etc.). Platão, na sua obra Symposium descreve como, numa época ancestral, terão existido seres circulares que possuiriam órgãos a dobrar (Droz, 1992). Todos teriam dois rostos, quatro pernas e quatro braços e dois conjuntos de genitais. Seriam muito fortes e orgulhosos, a ponto de terem decidido desafiar os Deuses. Zeus, para os castigar por essa afronta, tê-los-á dividido em duas partes. Cada qual, separada da sua outra metade, passaria o resto do tempo à procura dela. Ao encontrá-la, ambos morreriam por permanecerem desesperadamente abraçados, não salvaguardando as suas necessidades mais básicas.

Apesar da mensagem do perigo associado a esse amor avassalador, o conto platónico valida a ideia da cara-metade. Por aí, algures, existirá sempre alguém que nos completa. Na história romântica de Shakespeare, Romeu e Julieta nunca chegam a conhecer a separação: a morte surge como a solução para a impossibilidade de vivenciarem o seu romance.
Com a ideia do amor eterno, surge também a da inexpugnabilidade da relação. No amor natural e completo não há espaço para desejar ninguém mais. Para Leleu (1999), “a fidelidade é óbvia; não é, nem uma resolução tomada, nem uma obrigação decretada; cada qual entregou a sua liberdade ao outro” (pp. 39-40). Os parceiros “pertencem-se” mútua e naturalmente, mas muitas vezes a sua fidelidade é também jurada perante Deus ou perante o Estado nos votos de casamento.

O problema, porém, como sugere a necessidade de jurar fidelidade e a existência do ciúme, é que a monogamia não surge por defeito. Se a grande narrativa da fidelidade predomina na sociedade e nas relações amorosas, ela acaba por não ser coerente com as práticas. Kinsey, nos anos 50 do século passado foi dos primeiros a evidenciá-lo, quando nos seus estudos verificou que cerca de  40% dos homens já havia sido infiel às suas esposas (López & Fuertes, 1989). Já nos anos 80, Shere Hite descobre que este número se eleva para os 72% (em homens casados há pelo menos dois anos) deitando assim por terra a ideia da monogamia como realidade dominante nas relações conjugais modernas (Hite, 1981).

As mentiras da infidelidade

Se a infidelidade é um facto da vida das relações afectivas, então como gerir a mentira implícita a este contexto, aquela que serve para salvaguardar a relação? É importante considerar que os próprios conceitos de fidelidade e de infidelidade não são unívocos. Por exemplo, se fidelidade para muitas pessoas implica não ter qualquer tipo de relação sexual com uma terceira, como se define então relação sexual? Será o sexo oral uma relação sexual? E o beijo? E a masturbação assistida? O que dizer então da infidelidade emocional e psicológica? Até que ponto se está a ser infiel quando se partilha com alguém com quem não temos uma relação “oficial” de casamento ou namoro as nossas inseguranças, sonhos, desejos e fantasias? Não é isso, afinal, apanágio daqueles com quem partilhamos uma qualquer conjugalidade?

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