Francisco Sales, Médico Neurologista e Presidente da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia

O que é a epilepsia?

A Epilepsia é uma doença neurológica crónica caracterizada pela existência de crises epilépticas recorrentes, não provocadas. As crises epilépticas traduzem uma descarga eléctrica anormal e excessiva no nosso cérebro, manifestando-se com alterações clínicas motoras e não motoras. As manifestações clínicas das crises epilépticas são variáveis em função das diferentes partes do cérebro envolvido nessa descarga. No entanto, a Epilepsia não são apenas as crises epilépticas, pelo que, entre as crises, podem também existir alterações em várias esferas, nomeadamente cognitivas, comportamentais, psicológicas, sociais.

Quantas pessoas portadoras de epilepsia existem em Portugal?

Em Portugal existem cerca de 50 a 60 mil pessoas com Epilepsia. Em cada ano surgem cerca de 50 novos doentes por cada 100 mil pessoas. A probabilidade de cada um de nós vir a ter uma crise epiléptica ao longo da sua vida é de 1 para 100. Cerca de 50 milhões de pessoas em todo o Mundo sofrem de Epilepsia. Na Europa são 6 milhões de pessoas com esta doença.

A Epilepsia pode surgir em qualquer grupo etário ou estrato social, atingindo igualmente os dois sexos. Existem no entanto dois picos com maior incidência, que são na infância e terceira idade.

Quais as principais causas de epilepsia? Esta doença pode ser evitada?

As causas da Epilepsia podem ser adquiridas ou genéticas. A presença de determinados factores de risco, nomeadamente, traumatismos craneoencefálicos, tumores, infecções do sistema nervoso, complicações perinatais, doença cerebrovascular, está associada, e esses factores estão também na origem, de várias formas de Epilepsia. Nesse sentido a sua prevenção pode evitar o futuro desenvolvimento de uma Epilepsia.

Um doente com epilepsia pode ter uma vida chamada “normal”?

Não existe uma única forma de Epilepsia. Existem de facto vários tipos diferentes de Epilepsia, condicionando assim diferentes repercussões na vida diária das pessoas com Epilepsia. Num extremo podemos ter doentes com formas de Epilepsia muito graves, completamente dependentes, muitas vezes institucionalizados. No outro extremo temos doentes com Epilepsias completamente controladas, sem qualquer repercussão significativa na sua vida quotidiana. Em pontos intermédios deste espectro temos doentes com diferentes gradações desta repercussão. O tipo de Epilepsia, a medicação e a gravidade das crises epilépticas são importantes factores a ter em conta.

Quais os principais cuidados que um doente com epilepsia deve ter?

Os aspectos mais dramáticos das crises epilépticas são a sua imprevisibilidade e, de uma forma geral, a sensação de perda de controlo, não se saber o que aconteceu. Tal implica que o doente e a sua família estejam sistematicamente em alerta, pelo menos até ao momento em que se sentem seguros com a medicação.

Os cuidados a ter, de igual forma, dependem do tipo de epilepsia e por consequência do tipo de crises epilépticas. As crises com queda brusca ao solo ou as crises provocando convulsões, necessitam de uma alteração do espaço em termos de segurança que é diferente da que é necessária para os doentes com crises chamadas parciais complexas, nas quais os pacientes se comportam como autómatos, com um total ou parcial comprometimento da sua consciência.

Enquanto cuidadores de uma pessoa portadora de epilepsia, quais os cuidados que devemos ter?

As pessoas com Epilepsia são na sua generalidade pessoas independentes. De facto cerca de 60 a 70% das pessoas com Epilepsia respondem adequadamente á medicação anti-epiléptica instituída, e tal faz a grande diferença. Por outro lado os doentes com formas de Epilepsia chamadas refractárias, isto é, que não respondem aos diferentes esquemas terapêuticos, sofrem de todas as consequências de uma doença crónica incapacitante: nas suas vertentes social, psicológica, pessoal, familiar, etc. Estes doentes não são completamente independentes necessitando por isso de um apoio extraordinário das suas famílias e dos seus amigos.

Quanto melhor for o conhecimento sobre o que é a Epilepsia melhor será o nível de cuidados, e sobretudo melhor será a adequação do nível de cuidados ao doente em concreto. Na minha experiência as famílias estão hoje muito mais sensibilizadas e têm hoje, em geral, um conhecimento mais consistente sobre o que é a Epilepsia.

A epilepsia é uma área descurada em Portugal?

Por variadas razões a Epilepsia e os doentes com Epilepsia sempre se têm situado na zona de penumbra. Esse evitamento da exposição é reforçado por várias condutas institucionais e da sociedade em geral, de alguma forma perpetuando o estigma associado a esta doença, que não é sobreponível ao de tantas outras doenças crónicas. No entanto, talvez possamos estar num momento de viragem e por isso gostaria de referir algumas das mais importantes iniciativas formais, que julgo estarem a contribuir para melhorar a sensibilização pública para esta doença.

A aprovação da Declaração Escrita sobre Epilepsia foi anunciada na sessão plenária de 15 de Setembro de 2011 no Parlamento Europeu e traduz uma vontade de afastar a Epilepsia dessa zona de penumbra e colocá-la na agenda dos diversos estados-membros. Ver em www.epilepsia.pt/lpce/declarracao-escrita-sobre-epilepsia. Tendo sido assinada por 459 deputados, trata-se da terceira maior adesão de todas as declarações de doenças desde 2004. 

Quase todos os eurodeputados portugueses assinaram, dando assim sinais de uma crescente sensibilização para os problemas enfrentados pelas pessoas com epilepsia na realidade nacional e europeia. Esperamos que a assinatura desta declaração possa vir a ter um impacto concreto nos recursos destinados pela união europeia à investigação de melhores tratamentos, bem como à protecção de direitos e promoção da qualidade de vida das pessoas com epilepsia.

A Epilepsia é colocada pela primeira vez na agenda da OMS (Geneve, Janeiro de 2015) como doença prioritária necessitando de uma acção coordenada a nível de cada país, dirigida aos seus aspectos médicos, sociais e conhecimento público. É nossa esperança que os Estados sigam estas orientações da OMS.

Os doentes epilépticos dispõem atualmente de mais e melhores respostas?

Ao longo destes 40 anos de existência da LPCE muita coisa mudou. Um dos aspetos com mais significativo impacto na qualidade de vida das pessoas com Epilepsia foi o desenvolvimento na área terapêutica, com o aparecimento de novos fármacos e a abordagem cirúrgica em algumas das epilepsias. Muita coisa persiste ainda por fazer, mas os doentes que conseguiram ver controladas as suas crises após a introdução de um novo medicamento ou pela cirurgia, são a razão de que vale a pena apoiar a investigação, investir em recursos e melhorar a rede assistencial.

Em que consiste a campanha "Epilepsia é mais do que ter crises"?

Este é o tema de uma campanha europeia cujo objetivo é alertar e sensibilizar a sociedade e os governos para as questões de quem vive com epilepsia. "Epilepsia é mais do que ter crises" direciona-nos para duas realidades bem distintas:

A primeira, que felizmente abarca a maioria das pessoas com esta doença e onde -“epilepsia é mais do que ter crises” - terá que significar que existe muito mais vida para além das crises. Na verdade, estes doentes o que ambicionam é esquecer que existe a doença. São por norma pessoas com epilepsia onde as crises se encontram já controladas embora mantendo uma medicação diária. Por isso e progressivamente vão retomando todas as tarefas quotidianas, incluindo a condução. A grande angústia é a sempre presente e imprevisível possibilidade de ocorrer uma nova crise. Em geral estas pessoas com epilepsia evitam a exposição preferindo não assumir publicamente a doença. Em Portugal estima-se que existam cerca de 40 mil pessoas nestas circunstâncias.

A outra realidade dirige-nos para pessoas com formas mais graves de epilepsia (cerca de 20 mil pessoas em Portugal), onde - “epilepsia é mais do que ter crises” - significa haver infelizmente grandes condicionalismos para o exercício de uma vida activa. Para além das crises estes doentes podem apresentar também problemas de aprendizagem, psicopatologia, problemas de relacionamento interpessoal, etc. havendo com frequência discriminação e exclusão social. Este grupo de doentes tem maior morbilidade e mortalidade e maior impacto em termos económicos, pela necessidade de recorrerem com mais frequência aos serviços de saúde.

Esta campanha europeia dirige-se a todas as pessoas com epilepsia, ao público em geral e aos governos, para que estes invistam mais na investigação e tratamento da epilepsia. Em Portugal pretendemos com esta campanha dar a conhecer um pouco mais sobre o que é a epilepsia.

Por Francisco Sales, Médico Neurologista, Presidente da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia (LPCE)