A Sofia Carvalho escreve a abrir Alergias – Comer sem Medos que “este é o livro que gostaria de ter recebido quando entrei no mundo das alergias alimentares”. Em que contexto entrou neste mundo das alergias alimentares?

Em 2016, nasceu o meu filho mais novo e ele apresentava vários problemas de pele e gastrointestinais, mas muita gente comentava que eram medranças [pequenos quistos, de aparência avermelhada e rugosa] e “coisas normais de bebé”. Com um mês e meio, sensivelmente, tivemos um episódio em que, após o banho e do creme, o meu filho começou a chorar de dor, o que me levou a crer que afinal não podia ser normal. Corremos à pediatra e foi logo diagnosticado com APLV, alergia à proteína do leite de vaca. Foi assim que começou a nossa jornada no mundo das alergias alimentares.

Porque gostaria a Sofia de ter um livro como aquele que agora publicou nessa época?

Na época eu nunca tinha ouvido falar de tal doença, e pouco se falava de alergias alimentares, portanto a minha sede de conhecimento e também de manter o meu filho seguro fizeram com que eu investigasse muito, e começasse a desenvolver receitas para ele e para toda a família que, até então, tinha uma alimentação dita normal. Se eu tivesse este livro na altura o processo iria, sem dúvida, ser mais simples e descomplicado. Por essa razão, este livro foi criado para ajudar as famílias a não passarem pelo processo penoso que eu e muitas outras passaram.

Alergias alimentares: Da angústia de uma mãe nasceu um livro que nos ensina a comer sem medos

Na época, quando descobre que o seu filho, o Afonso, tinha alergia à proteína do leite, o que mudou no contexto familiar?

Nós éramos uma família com uma alimentação dita normal, não tínhamos quaisquer restrições alimentares, portanto quando descobrimos que o Afonso tinha alergia à proteína do leite de vaca e que não se sabia exatamente a gravidade dela, pois ele era muito pequeno. Retiramos todos os produtos que ele não podia consumir, também da nossa alimentação.

Além disso, passei a fazer quase todos os alimentos em casa, como pão, snacks, sobremesas, pequeno-almoço como panquecas e muffins, para não só evitar contaminações cruzadas como também garantir segurança na alimentação dele.

A partir desse momento a Sofia inicia um processo de descoberta e de reinvenção da cozinha doméstica. Quer contextualizar-nos essa (re)descoberta de ingredientes, combinação entre eles e de como substituíram outros?

Confesso que foi um desafio, mas para mim, depois de passar a fase do medo e insegurança, foi simplesmente fantástico, não fosse eu alguém que adora aprender. Por essa razão hoje este é o meu trabalho.

Sofia Carvalho

Em 2017, após a descoberta das alergias alimentares do seu filho mais novo, criou o blogue Criar Comer Crescer. Tudo começou com a partilha de receitas sem leite e sem soja, as alergias do seu filho, mas depressa se apercebeu de que existem muitas mais alergias e casos ainda mais complicados que o do seu filho, e por essa razão dedicou-se a criar receitas simples, fáceis, mas cheias de sabor e bem deliciosas a pensar nas alergias e/ou restrições alimentares.

Felizmente, apesar de o Afonso ter feito reação a quase todos os alimentos que comeu pela primeira vez, a partir do primeiro ano só ficou APLV e alérgico à soja, mas as partilhas das receitas que fazia para ele apresentou-me pessoas com cenários ainda mais complexos, com alergias ao ovo, ao glúten, entre outros, por isso começaram a chover pedidos para que eu desenvolvesse também receitas sem estes alimentos. Comecei a investigar, principalmente em sites estrangeiros e livros, muitos livros, e a testar receitas tradicionais e mais comuns em Portugal, sem esses alergénios também.

Quanto à substituição de ingredientes, temos aqui conversa para muitas horas, por isso foi criado o livro onde ensino a substituir cada um dos alergénios de acordo com o tipo de receita para oferecer a textura e resultado mais idêntico ao tradicional sem comprometer o sabor.

O seu livro não contém os oito principais alergénios. Quer dizer-nos quais são e se a sua ausência foi limitativa na criação das receitas que incluiu na obra?

Os oito principais alergénios são o leite (mais propriamente a proteína do leite de vaca), ovos, soja, oleaginosas (frutos secos), amendoim, glúten, peixe e marisco.

Neste momento já tenho mais de sete anos de experiência na substituição de ingredientes, independentemente de serem os principais oito, os principais 14 e muitos mais, como por exemplo o milho ou coco, que não pertencem a nenhuma dessas categorias, mas que são pedidos que chegam até mim. Sendo assim, a parte mais difícil foi o caminho, aquele que investi em aprender, depois disso, tornou-se muito mais simples e descomplicado, por isso escrever este livro sem eles não foi limitativo.

Que receitas encontram os leitores no seu livro?

Como as maiores dificuldades e pedidos, em geral, são as receitas base, receitas que de uma forma ou de outra são usadas numa base diária, receitas de iogurtes vegetais que apesar de existirem muitas alternativas económicas de soja, não existem muitas para quem tem APLV e alergia à soja, receitas de sobremesas como receitas tradicionais portuguesas e bolos de aniversário, pequenos-almoços, lanches e snacks (aquelas receitas do dia a dia), e também receitas de pão e massa que leveda (principalmente para quem tem alergia ao glúten e multialérgicos que necessitam de fazer o seu próprio pão em casa), essas são as categorias de receitas que incluímos no livro e decidimos não incluir receitas de refeições principais por ser a categoria de refeições mais simples e fáceis de contornar.

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Em que contextos pensou a Sofia ao elaborar estas receitas?

O meu objetivo ao criar as receitas deste livro foi torná-las não só simples, com ingredientes relativamente fáceis de encontrar, e fáceis de fazer, mas também torná-las o mais customizáveis possível para que uma receita pudesse ser adaptada não só a restrição alimentar da pessoa, mas também para poder variar em sabores para que a alimentação não se torne monótona e sem graça. Por exemplo, muitas receitas foram criadas com uma receita base e depois dou sugestões de pequenas adaptações para alterar sabores ou ajustar às necessidades da pessoa.

Além disso, ouvi a comunidade, as suas necessidades e decidimos colocar no livro as receitas mais pedidas, tradicionais e que iriam ajudar mais pessoas no seu dia a dia para que possam ter uma caminhada neste mundo das alergias alimentares mais simples e descomplicada, tais como a criação de mix de farinhas sem glúten para pastelaria, mix de “ovo” sem ovo que depois de feito pode ser usado para criar omeletes, ovos mexidos, quiches e pataniscas, as bases de como fazer “iogurtes” vegetais em casa e não só as receitas, mas também as bases de como fazer pão sem glúten, percebendo ingredientes e dando a minha fórmula “mágica” para que se possa adaptar qualquer receita de massa que leveda com glúten e outros alergénios em sem glúten e sem outros alergénios.

Como pode ver, este livro não tem só 40 receitas, e já existem muitos que dizem que é a “bíblia” de quem tem alergias e outras restrições alimentares, por isso cada vez mais estou orgulhosa do trabalho que desenvolvemos.

Sete perguntas sobre alergias alimentares a Mariana Couto, Especialista em Imunoalergologia.

Mariana Couto
Mariana Couto, Especialista em Imunoalergologia. créditos: Arena

A alergia alimentar é um importante problema de saúde publica, com tendência crescente nas últimas décadas. O que está a concorrer para assistirmos a mais alergias alimentares?

O que explica o aumento das alergias, e não só as alimentares, é a alteração do nosso estilo de vida nos países ocidentais. A “Teoria da Higiene” como é conhecida, sugere que esta seja uma consequência da diminuição do estímulo infecioso providenciado ao nosso sistema imunológico.

A gravidade das reações tem vindo a aumentar?

 A gravidade das manifestações de alergia alimentar tem vindo a aumentar, com os registos de recursos ao hospital por anafilaxia a provarem isso mesmo, resultado de um sistema imunitário mais reativo.

Como é feito o diagnóstico da alergia alimentar?

O primeiro ponto essencial é uma correta e minuciosa recolha da história clínica, que com base criteriosa nos sintomas apresentados ajuda a suspeitar não só do diagnóstico, mas também e muito importante, do mecanismo IgE ou não-Ige mediado. Essa distinção é fundamental para depois selecionar os exames complementares que fazem sentido realizar e que são diferentes conforme o tipo de alergia.

Mariana Couto

Tirou a especialidade no Hospital São João, no Porto, e foi também no Porto, na Faculdade de Medicina, onde se doutorou. Exerceu no Hospital de Braga, até se dedicar em pleno à atividade no setor privado da saúde. Integra a Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica; exerce o cargo de editora da Revista Portuguesa de Imunoalergologia.

Quais as diferenças entre alergia alimentar e hipersensibilidade alimentar não-alérgica?

A alergia alimentar é provocada pelo sistema imunitário, ao passo que a hipersensibilidade alimentar não-alérgica (também designada intolerância) ocorre por outros mecanismos que não envolvem o sistema imunitário (por exemplo a intolerância à lactose ocorre por deficiência da enzima lactase que é a responsável por fazer a digestão deste açúcar no intestino).

Entre os alergénios alimentares alguns se destacam por apresentarem maior incidência?

Nas crianças os alergénios alimentares mais frequentes são o leite de vaca, ovo, soja, peixe, trigo, amendoim e frutos secos. Em idade adulta são frequentes as alergias a marisco, frutos frescos e frutos secos, amendoim e peixe.

alergias: comer sem medos
créditos: Arena

No caso concreto português, a proteína do leite de vaca (sobre a qual se detém com pormenor no livro) é a primeira causa de alergia alimentar nos primeiros anos de vida. Neste caso, há comportamentos a adotar para prevenir a alergia alimentar?

Não existe evidência de nenhuma medida preventiva eficaz na gravidez. Após o nascimento, a Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica defende os seguintes comportamentos: Evitar o uso de fórmula adaptada como alimento suplementar em bebés amamentados na primeira semana de vida;Introduzir ovo bem cozido, mas não ovo cru ou malcozinhado - de acordo com os estudos, parece que a melhor idade é entre os quatro e seis meses de vida; introduzir amendoim, numa forma apropriada para a idade, como parte da alimentação complementar, em populações onde existe uma alta prevalência de alergia ao amendoim, entre os quatro e seis meses de vida.

Não raro, deparamo-nos com mitos sobre alergias alimentares. Quer elencar algum que lhe pareça preponderante?

É habitual as pessoas acharem que se consumiam um alimento previamente sem reação, que o mesmo não venha a desencadear alergia alimentar, tal não é verdade, podemos desenvolver alergia a qualquer alimento de novo em qualquer idade, mesmo que já o tolerássemos previamente. Relevante também é referir que na suspeita de alergia ou intolerância alimentar deve ser consultado o Imunoalergologista, para concretização de um diagnóstico correto, uma vez que cada vez mais se assiste a pessoas recorrer à internet e basearem atitudes e dietas em observações aí veiculadas, com graves prejuízos nutricionais.

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.