O cancro é uma das principais causas de morte no mundo. O que é urgente fazer para dar solução a este problema multifatorial?

Com o aumento da longevidade, é expectável que a incidência do cancro aumente, sobretudo quando enfrentamos ao mesmo tempo uma crescente escassez de  profissionais de saúde. Uma maior aposta na prevenção e na deteção precoce do cancro é imperativa. Para isso, urge aumentar a resposta do sistema recorrendo a soluções digitais que acelerem o processo, contribuindo para a sustentabilidade e simplificando o percurso do utente.

Uma boa literacia em saúde desempenha um papel crucial ao promover comportamentos saudáveis e alertar para os fatores de risco, sendo a predisposição genética o fator de maior risco. Cerca de 10% de todos os casos de cancro têm origem hereditária e, uma vez que surgem em idades precoces, representam uma carga socioeconómica significativa para o sistema.

A centralização dos dados em oncologia, num registo de qualidade, é fundamental para monitorizar as respostas e melhorar a investigação realizada. É essencial investir na formação de técnicos responsáveis pela introdução dos dados, garantindo assim a fiabilidade e utilidade dessas informações.

Quais são as principais lacunas na gestão do cancro em Portugal?

Atualmente, uma das maiores lacunas que enfrentamos é a ausência de dados sobre o cancro hereditário no Registo Oncológico Nacional. Existe uma sub-identificação dos portadores de alterações genéticas, estimando-se que apenas 20% a 30% dos portadores estejam identificados na Europa. Adicionalmente, os tempos de espera para aconselhamento genético, obtenção dos resultados dos testes e cirurgias preventivas são inaceitavelmente longos. As pessoas ficam doentes enquanto aguardam a sua prevenção. Existe uma tremenda falta de recursos, com a prevenção a representar apenas 1% a 2% do orçamento do Estado, e a falta de literacia genética na sociedade médica e civil é elevada, reforçando a necessidade de uma plataforma como a EVITA Platform.

Quanto às doenças hereditárias em geral, observamos uma resposta muito fraca em relação ao diagnóstico. Na maioria dos casos, o primeiro ponto de contacto é o médico de Medicina Geral e Familiar, sabendo-se que há uma enorme falta de literacia genética entre estes profissionais.

Focando-nos especificamente na gestão do cancro hereditário, destacamos a fraca resposta no diagnóstico precoce pré-implementacional. A procriação medicamente assistida está centralizada no Norte, num único centro que realiza este procedimento através do SNS. Assim, é crucial criar mais centros, pois este é um direito básico de todos os portadores de mutação: o direito de não querer transmitir a mutação à sua descendência. No entanto, mais uma vez, enfrentamos tempos de espera excessivamente longos, e nem todos têm acesso a esta informação valiosa.

O cancro hereditário e genético não são a mesma coisa. Quais as suas semelhanças e diferenças?

Todos os cancros são considerados "genéticos" uma vez que surgem devido a alterações genéticas esporádicas adquiridas ao longo da vida, resultantes da exposição a fatores de risco. Com o aumento da longevidade, estamos mais expostos a esses fatores de risco associados ao cancro esporádico.

No caso do cancro hereditário, quando herdamos alterações genéticas de um dos nossos pais, a pessoa já nasce com um "defeito" no sistema complexo de defesa do organismo contra o cancro. Por esse motivo, este tipo de cancro tende a surgir em idades mais jovens. Esta particularidade faz com que o cancro hereditário seja uma doença consideravelmente mais dispendiosa para o sistema, uma vez que afeta a fertilidade e a produtividade.

Em Portugal, mesmo não havendo registos existe, em média, alguma noção de quantos casos no total de casos de cancro são de origem hereditária/genética?

Em cerca de 10% dos casos, o aparecimento de cancro está relacionado com determinadas alterações genéticas herdadas dos pais. Segundo a Organização Mundial de Saúde e de acordo com os dados mais recentes da Globocan, em 2022, a estimativa de novos casos de cancro em Portugal terá sido de cerca de 70.000. Assim, tendo em conta as estatísticas mais recentes, pode estimar-se que anualmente o número de novos casos de cancro hereditário rondará aproximadamente os 7.000.

Mesmo que um doente saiba que tem gene percursor de cancro que atitudes preventivas pode ter?

O conhecimento da predisposição genética com risco para cancro hereditário é crucial para a prevenção e/ou deteção precoce do mesmo. Como surge em idade jovem, antes da idade para integrar rastreios populacionais, o portador de alteração genética tem a oportunidade de beneficiar de uma vigilância específica para a sua condição. Em alguns casos, existe a opção de prevenção química, e ainda há a possibilidade de recorrer a cirurgias preventivas. Importa salientar que qualquer uma destas abordagens não dispensa a adoção de um estilo de vida saudável, como é óbvio.

Uma vez identificada a predisposição genética, torna-se possível prevenir futuros cancros primários no portador e nos restantes familiares que partilhem a mesma alteração genética.

Em casos de síndromes mais graves, é viável recorrer a um teste genético pré-implantação, que consiste numa fertilização in vitro com seleção do embrião livre de mutação ao terceiro dia, evitando assim a transmissão da mutação genética para os filhos.

O conhecimento revela-se verdadeiramente poderoso neste contexto.

Considera que esta plataforma pode ser fundamental de que forma?

A EVITA Platform é uma iniciativa de cidadão para cidadão e, portanto, contribuirá para o bem-estar e saúde de todos. Os dados gerados na EVITA Platform e a sua análise conduzirão a resultados benéficos para o cidadão, comunidade médica e comunidade científica, permitindo aprofundar um tema que tanto carece de atualização.

Para a comunidade médica, a plataforma facilitará a telemonitorização de pacientes e o acesso a toda a informação clínica relevante do utilizador. Essa informação ficará centralizada num único local, possibilitando o acompanhamento do "percurso pessoal de saúde" do utilizador através de questionários e registos do seu estado físico/emocional. Para além disto, permitirá o recurso a videoconsultas, nomeadamente de Medicina Genética e Psicologia.

A comunidade científica também beneficiará com o desenvolvimento desta plataforma. Os investigadores, através de dados únicos gerados pela primeira vez em Portugal, poderão potenciar a investigação baseada em Portugal e desenvolver soluções concretas face às características específicas da população. O acesso a um repositório de informação organizada sobre o cancro permitirá, por exemplo, adequar as terapêuticas à estratificação da população portuguesa; colecionar "Real-World Data"; melhorar a farmacovigilância; possibilitar o desenvolvimento de "Patient-Reported Outcomes" e promover o recrutamento de voluntários para ensaios clínicos.

O projeto que apresentamos oferece soluções que podem até aliviar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Uma vez que qualquer pessoa poderá avaliar o seu risco individual para cancro por predisposição genética e aceder a videoconsultas de Medicina Genética e Psicologia, estamos a promover a pré-triagem de indivíduos com alto risco para cancro. Por outro lado, estamos a ajudar no processo de aconselhamento genético e na subsequente prevenção, mas também contribuímos para o eventual diagnóstico precoce e gestão da saúde de cada um.

Esta plataforma destina-se apenas a doentes? Ou pessoas com interesse no tema? Que informações podem obter estas pessoas a partir desta plataforma?

A EVITA Platform tem como objetivo beneficiar qualquer cidadão saudável preocupado com o seu risco individual para o cancro, assim como portadores de alterações genéticas com alto risco para o cancro hereditário e doentes oncológicos. Esta plataforma proporciona uma abordagem centrada no cidadão, sendo também acessível a profissionais de saúde e investigadores.

Garantindo a máxima proteção dos dados pessoais dos utilizadores, a EVITA Platform procura orientar as pessoas interessadas na eventual necessidade de realizarem aconselhamento genético através de um questionário específico com base na sua história individual e familiar de cancro. Permite também aos utilizadores armazenar todo o seu processo clínico na sua área pessoal e, em breve, terá à disposição videoconsultas de aconselhamento genético e psicologia.

Após a conclusão do seu registo, os utilizadores podem responder ao questionário de avaliação de risco individual para o cancro e obter o seu resultado. Também têm a possibilidade de armazenar o seu processo clínico na sua área pessoal, incluindo relatórios de exames ou resultados de análises. Para além disto, podem aceder a informações sobre ensaios clínicos a decorrer a nível nacional e europeu, explorar notícias sobre cancro (hereditário) ou eventos relacionados com a área da oncologia.

E para os profissionais de saúde, de que forma, poderá ser útil para eles?

Para a comunidade médica, a EVITA Platform irá facilitar, numa segunda fase, a telemedicina e o acesso a toda a informação clínica relevante do utilizador. Essa informação ficará centralizada num único local, ultrapassando a falta de interoperabilidade de sistemas. Também possibilitará o acompanhamento do "percurso pessoal de saúde" do utilizador através de questionários e registos do seu estado físico/emocional. A plataforma permitirá ainda o recurso a videoconsultas, nomeadamente de Medicina Genética e Psicologia.

Em termos de tratamento para estes tipos de cancro, como está Portugal? Na vanguarda da inovação ou estamos atrás de outros países da Europa?

Em Portugal, a qualidade dos cuidados prestados pelos profissionais de saúde é notável, considerando a falta crónica de recursos. No entanto, em relação ao acesso à inovação, enfrentamos tempos de espera significativamente mais longos do que a média europeia. Se conseguíssemos melhorar a prevenção do desperdício e das doenças, teríamos a capacidade de reinvestir mais na área da saúde.

O que é que cada um de nós deve fazer para diminuir ao máximo o risco de cancro, mesmo que seja hereditário?

As medidas concretas para diminuir o risco estão muito bem descritas no Código Europeu contra o Cancro.

No caso do cancro hereditário, é crucial conhecermos bem a nossa história familiar de cancro. Se houve familiares da mesma linhagem familiar que tiveram cancro em idade precoce, se houve mais casos de cancro ao longo de várias gerações, se houve familiares com mais de um cancro primário, como por exemplo, primeiro na mama e uns anos mais tarde nos ovários, isso pode justificar um aconselhamento genético. Existem vários subtipos de cancro que podem levantar a suspeita de síndrome de cancro hereditário. O cancro hereditário é bastante complexo e é precisamente por isso que precisamos da EVITA Platform.