Uma semana depois da celebração do 45º aniversário do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e depois dos momentos de homenagem que mereceram o seu destaque, é hora de fazer uma reflexão acerca do estado da arte desta grande conquista da Democracia em Portugal – o seu presente e a expetativa de futuro, perspetivando os investimentos que deverão ser realizados para que os fins possam ser, realmente, atingidos.
De entre as várias personalidades que se pronunciaram sobre este importante acontecimento, talvez em nenhum discurso as questões relacionadas com as doenças crónicas evitáveis, decorrentes de uma alimentação inadequada, excesso de peso e práticas de estilo de vida não saudáveis tenham ficado esquecidas. A necessidade de um investimento sério e responsável na promoção da saúde da população, com vista à prevenção de doenças incapacitantes e geradoras de perda de anos de qualidade de vida e morte precoce foram ainda apontadas, na generalidade, como a base fundamental e emergente para um SNS sustentável.
Falar no SNS é falar de um sentimento e não nego que, para mim, é um sentimento profundo e muito especial, porque o SNS é parte da minha história profissional. Seguindo o princípio de que um sistema que funciona não se faz sentir, o SNS devia, em teoria, ser um sistema invisível, não pela sua omissão, mas na medida em que funcionaria em pleno, cumprindo os princípios que levaram à sua criação há 45 anos, por António Arnaut: cuidados de saúde para todos. Numa frase, assim devia ser o SNS – universal.
Nos últimos tempos, ouvimos falar, na iminente rutura do SNS e na necessidade premente de se unirem esforços no sentido de o reabilitar e salvar. Fala-se de um SNS doente, talvez sem se refletir na verdadeira essência que essa afirmação encerra.
Sou e sempre serei SNS. Nele fiz o meu percurso profissional e nele conheci a realidade e o potencial da Nutrição no serviço público de saúde do nosso país. Rapidamente encontrei nele formas de expansão da atuação do nutricionista, só não possíveis até hoje, por problemas de visão, de gestão e de vontade.
O nutricionista é o profissional qualificado para a identificação do risco nutricional. Se em determinadas fases, o processo pode ser feito por qualquer profissional, só o nutricionista reúne competências e conhecimentos para classificar o risco e o grau de desnutrição de um indivíduo. Mas a identificação do risco nutricional não resolve o grave problema de desnutrição do nosso país, com a agravante de que, depois de identificado, existe a obrigação formal de intervir, adequada e precocemente – não deixar ninguém para trás e tratar todos de igual forma.
Ma para isso é necessário que, em primeiro lugar, existam nutricionistas em número e distribuição suficiente. Em segundo, é preciso que se criem condições para que os nutricionistas possam avaliar, identificar e tratar. Todos de igual forma, com acesso a atos que lhes são atribuídos num ato da profissão, mas que continuam não reconhecidos de forma transversal entre todos os profissionais.
Conhecemos despachos que visam a identificação de risco nutricional alargada a todos os níveis de cuidados, no entanto, o SNS continua a não possuir os recursos necessários, nomeadamente, os pivots desse processo – os nutricionistas -, em número suficiente para a execução e implementação dessas medidas que o próprio Estado cria e recomenda.
Sendo a obesidade reconhecida como uma doença grave e multifatorial, com números crescentes no nosso país nos últimos anos, não poupando crianças e jovens, assistimos à criação de um despacho que visa a abordagem integrada na perspetiva da prevenção e do tratamento desta doença, sem que se acautelasse a contratação de nutricionistas, que permitisse a operacionalização deste documento. Em consequência, temos um sistema processual criado, na teoria, já que no terreno, não existem meios suficientes para o operacionalizar.
Um nutricionista no SNS é o profissional que executa, mas é também aquele que planeia, que gere, que supervisiona, que faz atividade e consultadoria nas várias áreas de atuação – da clínica à saúde pública, da alimentação coletiva à investigação.
Ao Estado compete a defesa da Saúde da população, o que passa pela identificação das necessidades do terreno, pelo reconhecimento das estratégias a implementar que visam a efetividade das normas e práticas criadas e pela criação de condições para que o sistema funcione e cumpra o seu primário e fundamental papel: zelar e garantir a saúde da população, com direitos salvaguardados, onde deve estar consagrado o direito a cuidados nutricionais.
O SNS permanecerá doente, se não lhe entregarmos os profissionais necessários para que a rede de articulação profissional fique garantida. O SNS não sobreviverá, enquanto não tivermos a capacidade de identificar de forma precoce a desnutrição, enquanto não formos suficientes para conseguir tratá-la, enquanto doentes crónicos não tiverem acesso em tempo útil à prescrição de terapêutica nutricional dirigida às necessidades individuais, enquanto a doença aguda não for acompanhada de perto por um nutricionista que lhe permita, no momento certo, intervir, promovendo e otimizando o processo de recuperação da doença e a reabilitação física e emocional.
E nesta sequência, não poderia deixar de falar na saúde mental. Inexoravelmente relacionada com o estado nutricional, mas infelizmente uma relação ainda pouco citada e valorizada.
O bullying associado à obesidade, as depressões relacionadas com patologias do foro alimentar, os casos de suicídio, violência e agressão, principalmente entre jovens, decorrentes de estigmas e situações recorrentes de violência física e psicológica associadas ao excesso de peso, são exemplos dramáticos e reais que coexistem na nossa sociedade, muitas vezes, apenas identificados e, ainda assim, nem sempre devidamente valorizados. Tratar o problema implica tratar a causa, muito mais do que reagir às suas consequências ou resultados. Tratar o problema exige que se reconheça o que o motivou, tantas e tantas vezes, situações do foro alimentar e nutricional, que carecem de um seguimento regular e assíduo, com acesso a nutricionistas disponíveis às exigentes necessidades destas situações.
Nestes quase 25 anos de experiência profissional no SNS, passaram por mim múltiplas situações como esta. Um nutricionista no SNS ultrapassa a execução de procedimentos e vai além do profissional. Assume um papel de proteção, segurança e de uma responsabilidade bem maior do que aquela que se estuda nos livros. O nutricionista promove, previne e trata. A sua atuação é transversal a todas as faixas etárias e tem um papel reconhecido em todas as fases do ciclo de vida, que começam na preparação da gravidez, passam para a infância e terminam na última idade, inclusive, nos cuidados de conforto, quando o fim de vida se aproxima.
O SNS compreende cerca de 500 nutricionistas nos seus quadros de pessoal, distribuídos entre cuidados hospitalares e cuidados de saúde primários, agora integrados nas 39 unidades locais de saúde do país. 500 profissionais para 10 milhões de habitantes!
De outra forma, um nutricionista disponível para cada 20 mil utentes, para formar, educar, promover saúde pela alimentação, prevenir doenças crónicas e tratar doenças incapacitantes e geradoras de grandes custos para a economia e para a saúde.
Será que sabemos do que estamos a falar? Será este o caminho a seguir? Ou será que, finalmente, e em nome de todos e do SNS que pretendemos salvar, veremos coragem para investir em saúde através de quem a trata: os profissionais?
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