Num mundo onde prepondera o culto da imagem, o excesso de peso e a obesidade são encarados com estigma e incompreensão. Em vez de empatia, há julgamentos. Ao invés de soluções sustentáveis para a perda de peso, multiplicam-se dietas restritivas e promessas vazias muitas vezes ao sabor das redes sociais. É neste cenário que surge o novo livro da médica endocrinologista Eva Lau, especialista com experiência clínica e académica. Em Não Basta Fechar a Boca (edição Contraponto), a doutorada em Metabolismo, desconstrói mitos e propõe uma abordagem realista, científica e humana à perda de peso.

Mais do que um guia alimentar, a autora, formada em Medicina pela Universidade de Coimbra, assume que o livro que oferece aos escaparates é uma ferramenta de mudança. Nele, Eva Lau ensina a compreender o apetite, a evitar o temido “efeito ioiô”, a traçar objetivos alcançáveis e a assumir o controlo do próprio percurso, independentemente da herança genética.

A investigação de Eva Lau tem-se centrado na relação entre a microbiota intestinal e o metabolismo, demonstrando como uma dieta rica em gordura pode alterar a flora intestinal, aumentando a resistência à insulina e o risco de diabetes tipo 2.

O título do seu livro - assim como a imagem que o acompanha - é provocador: Não Basta Fechar a Boca! O título de um livro expressa-lhe a intenção. No caso vigente porque quis trazer esta expressão para a capa do seu livro?

Porque é exatamente o que tantas pessoas já ouviram — e continuam a ouvir. “É só fechar a boca” é uma frase que carrega julgamento, simplifica uma doença complexa e ignora a ciência. Escolhi esse título para provocar reflexão: se fosse só fechar a boca, ninguém viveria com obesidade. A imagem da boca com o fecho mostra como muitas vezes se tenta silenciar o sofrimento, a fome real e emocional, a complexidade do corpo. Este livro é sobre abrir espaço para uma conversa mais honesta, humana e informada.

Porque são os alimentos ultraprocessados pré-mastigados e porque nos estão a matar?  
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Porque continuará esta ideia simplista, a de que basta fechar a boca para perdemos peso, a ocupar tanto do espaço mediático e social?

Porque é mais fácil acreditar em soluções simples do que lidar com uma realidade complexa. E porque, durante anos, a obesidade foi vista apenas como resultado de comportamentos, sem considerar a biologia, a genética, as emoções ou o ambiente. Os media também procuram frases de impacto, antes de procurarem olhares e explicações mais profundas. Mas isso tem um custo: cria culpa, vergonha e, pior, afasta as pessoas do tratamento certo.

A obesidade continua a ser encarada, muitas vezes, como uma “falha moral”, exclusivamente culpa da pessoa com obesidade, incapaz de se disciplinar ou refrear a compulsão por comida. Estamos a estigmatizar estas pessoas? De que forma esse estigma influencia, concretamente, o comportamento alimentar e a saúde mental dos pacientes?

Infelizmente, sim. O estigma da obesidade ainda está muito presente — na linguagem, nas consultas, nas redes sociais, até no olhar. E esse estigma tem consequências reais: aumenta a ansiedade, a depressão, a autoexclusão e, sobretudo, agrava a doença. Muitas pessoas evitam ir ao médico ou fazer exames por vergonha do peso. E pior: o estigma pode levar ao “comer emocional”, à culpa, ao isolamento. Tratar a obesidade começa por tratar as pessoas com respeito.

O estigma da obesidade ainda está muito presente — na linguagem, nas consultas, nas redes sociais, até no olhar.

Num momento em que vemos influencers a promover dietas milagrosas e produtos de emagrecimento, como é que o cidadão comum pode distinguir entre ciência e charlatanismo/agenda pessoal?

Desconfiar de tudo o que promete resultados rápidos e sem esforço. A ciência não fala em milagres, fala em processos, em mudanças sustentadas. Uma boa dica é perguntar: isto está baseado em evidência científica? Quem está a recomendar tem formação em saúde? E, sobretudo, será que esta solução considera a pessoa como um todo — corpo, mente e contexto?

A obesidade é uma doença crónica e complexa, com raízes genéticas, hormonais, emocionais e ambientais. Não se resolve com soluções simplistas ou modas passageiras. Se a promessa ignora essa complexidade, é provável que seja mais marketing do que medicina.

“Se fosse só fechar a boca, ninguém viveria com obesidade” – Eva Lau, médica endocrinologista
“Se fosse só fechar a boca, ninguém viveria com obesidade” – Eva Lau, médica endocrinologista créditos: Contraponto

O livro desmistifica o papel da genética na obesidade. Pode explicar-nos até que ponto a “herança genética” é determinante — e onde entra a responsabilidade individual?

A genética não determina tudo, mas tem um peso importante — estudos mostram que entre 40 a 70% da nossa tendência para ganhar peso pode ser explicada por fatores genéticos. Isso significa que há pessoas que nascem com maior predisposição para acumular gordura, sentir mais fome, ter um metabolismo mais poupado. Isso não é uma desculpa, é ciência.

Mas a genética não é destino. O ambiente — alimentação, sono, stresse, nível de atividade — pode agravar ou suavizar essa predisposição. E é aí que entra a responsabilidade individual, mas também o apoio certo. Não se trata de culpar ninguém, mas de reconhecer o ponto de partida de cada pessoa e ajudá-la a avançar com as ferramentas adequadas. Porque todos merecem uma oportunidade justa de cuidar da própria saúde.

“Comer bem não tem de ser mais caro. Por isso, a capacitação em literacia alimentar é fulcral” - Helena Real, Secretária-Geral da APN
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Sublinha a importância de traçar objetivos realistas. Como médica, como lida com pacientes que chegam até si com expetativas moldadas de conseguirem um corpo perfeito em 30 dias?

Com empatia e conversa. Primeiro escuto — muitas vezes, essa expectativa vem da frustração acumulada, comparação com padrões irreais ou promessas falsas. Depois, explico: o objetivo não é o corpo perfeito, é a saúde possível. Focamo-nos em mudanças sustentáveis, que cabem no dia a dia. Pequenos progressos, como reduzir a fome emocional ou dormir melhor, já são vitórias. O peso pode mudar — mas a relação com o corpo também precisa de mudar. E isto vai-se reflectir em saúde e qualidade de vida.

Há uma crítica implícita no seu livro à cultura das dietas restritivas e do “efeito ioiô”. Por que razão estas abordagens continuam a ser prescritas, até por profissionais de saúde?

Durante muito tempo, a estratégia predominante para lidar com o excesso de peso foi simplesmente cortar calorias. Ainda hoje, essa ideia está muito enraizada, tanto no público como em alguns profissionais de saúde. O problema é que, ao seguir dietas muito restritivas, acabamos por colocar o corpo em modo de defesa: o corpo reduz o metabolismo, aumenta o apetite e torna cada quilo perdido mais difícil de manter. Este é o chamado “efeito ioiô” — o peso volta, muitas vezes com um bónus.

Além disso, esse ciclo de emagrecer e engordar repetidamente desgasta o corpo e a mente. Há perda de massa muscular, alterações hormonais e um sentimento de fracasso que mina a autoestima. Por isso, o foco precisa de mudar: em vez de soluções rápidas e punitivas, precisamos de estratégias sustentáveis, com flexibilidade, prazer em comer e suporte contínuo. Porque não se trata só de perder peso — trata-se de ganhar saúde e bem-estar, de forma duradoura.

Eva Lau
Eva Lau créditos: Contraponto

Há uma ideia muito forte no seu livro: a de que o apetite pode ser compreendido e gerido. Mas o apetite não é só biológico — é também emocional, social, até cultural. Como se trabalham estas questões em consulta?

Trabalho com a pessoa, não só com os números. O apetite tem raízes muito profundas: está ligado ao stresse, à história de vida, aos hábitos criados na infância. Em consulta, tento perceber o que ativa a fome, o que ela representa naquele momento, que papel a comida está a desempenhar — consolo, distração, rotina? Gerir o apetite vai muito além de contar calorias. É aprender a escutar o corpo, reconhecer padrões, construir uma relação mais consciente, mais tranquila e gentil com a comida. Porque quando compreendemos o porquê da fome, começamos a cuidar — e não apenas a controlar.

A genética não determina tudo, mas tem um peso importante — estudos mostram que entre 40 a 70% da nossa tendência para ganhar peso pode ser explicada por fatores genéticos.

Vivemos num país onde a alimentação saudável ainda é, muitas vezes, um privilégio. Que soluções realistas propõe para quem quer comer melhor, mas vive com restrições económicas ou em zonas com menos acesso a alimentos frescos?

É um desafio real — e estrutural. Mas há estratégias possíveis: planear refeições simples com alimentos básicos como leguminosas, ovos, vegetais da época; evitar produtos ultraprocessados, que às vezes são mais caros do que parecem, e reaproveitar sobras. Também é importante educar sobre leitura de rótulos e preparar refeições em casa sempre que possível. Comer saudável não precisa de ser gourmet — precisa de ser possível. E isso também passa por políticas públicas e educação alimentar desde cedo.

Se pudesse mudar uma única coisa na forma como falamos sobre obesidade nos media, o que seria? E porquê?

Trocava o julgamento pela escuta. A forma como falamos sobre obesidade tem de mudar: menos culpa, mais ciência; menos sensacionalismo, mais empatia. Quando tratamos a obesidade como uma piada ou um fracasso, afastamos as pessoas do cuidado. Mas quando ouvimos, explicamos e apoiamos, abrimos caminho para mudanças verdadeiras — e para um país mais saudável, em todos os sentidos.