Em entrevista exclusiva ao nosso jornal, Rui Pinto, professor da Faculdade de Farmácia da ULisboa e Diretor Nacional da Ordem dos Farmacêuticos responde a questões sobre a importância dos testes de diagnóstico in vitro (DIV) num contexto em que, muito embora o paradigma de cuidados de saúde deva assentar na prevenção, os DIV, informam mais de 70% dos diagnósticos médicos. A verdade é que os DIV são subutilizados, sendo o seu uso muitas vezes vedado, seja por normas de autoridades de saúde pública, seja pela introdução de mecanismos que restringem a sua utilização (incentivos à não prescrição e a sua não comparticipação). Na entrevista exclusiva, Rui Pinto lembra que nenhuma outra utilização da tecnologia médica fornece, como o DIV, a um custo tão baixo, tanta informação desde a medicina profilática à medicina corretiva.
HealthNews (HN) – Os cuidados de saúde devem-se centrar na prevenção defende-se em uníssono, mas os testes de diagnóstico in vitro são subutilizados. A sua utilização é muitas vezes vedada, seja por normas da autoridade de saúde pública, seja por introdução de mecanismos que restringem a sua utilização. Como é que se explica este quadro?
Rui Pinto (RP) – Fala-se cada vez mais na evidência como suporte para o diagnóstico, prognóstico e monotorização de uma determinada patologia e também na prevenção de futuras situações que possam acontecer. O nosso sistema nacional de saúde tem caminhado nesse sentido.
HN – Mas não é isso o que acontece no terreno, onde os DIV são subutilizados
RP – A questão é que o sistema português tem algumas particularidades relativamente aos de outros países. No caso dos dispositivos médicos de diagnóstico in vitro, o SNS apoia-se muito nos laboratórios de Hospitais públicos ou privados também conhecidos por laboratórios convencionados. Existem estudos que mostram que cerca de 70% dos diagnósticos são suportados pelos resultados de testes in vitro. Sendo assim, era desejável que não houvesse uma diferenciação entre ter uma prescrição que só permite recorrer a um hospital do SNS e ter outras que me permitem ir quer ao privado quer ao hospital público. Existem muitas análises clínicas que são importantes para o diagnóstico e para a monitorização do doente que só posso fazer, enquanto utente do SNS, se for ao hospital. O Estado, com o argumento da racionalização de recursos, limita muitas vezes o acesso às análises. Existe um portfólio oficial de perto de 300 análises que nós, enquanto utentes do SNS podemos ir fazer a qualquer laboratório, seja público ou privado. Já a grande maioria das restantes análises não podemos fazer fora do SNS, sem custos para os utentes.
HN- E essas perto de 300 análises são comparticipadas?
RP- São. E atualmente até já não se paga taxa moderadora. Posso ir com a prescrição do SNS a um laboratório privado, ainda que as análises comparticipadas sejam em número muito reduzido relativamente àquilo que é o universo das análises clínicas. Ora, se as análises clínicas são importantes para o diagnóstico, questiona-se o porquê desta limitação
HN – E como é que na prática são limitadas?
RP – Quando vou a uma unidade de cuidados de saúde primários, por exemplo, o médico, quando prescreve as análises, sabe quais são as que estão dentro do quadro da convenção (aquelas que não são pagas pelo utente) e aquelas que estão fora da convenção e que por isso só podem ser feitas sem custos para o utente num laboratório público. Essa listagem reduzida acaba, na minha ótica, por limitar a capacidade do próprio clínico ir mais além na prestação de um serviço de qualidade ao doente. Existem hoje análises que são fundamentais para o seguimento de uma determinada doença.
HN – Um exemplo….
RP – Um exemplo é o de um biomarcador (análise) associado à doença inflamatória intestinal, uma condição que afeta mais de 25 mil portugueses. Um dos melhores marcadores inflamatórios para acompanhar essa doença é a calprotectina fecal, utilizado para avaliar a eficácia do tratamento ou o aparecimento de recidivas. Ora, é uma análise que, curiosamente, não é comparticipada pelo Estado. Ou seja, o utente que quiser fazer essa análise, ou vai a um serviço público ou, se tiver de ir a um serviço privado, vai ter que desembolsar o valor associado à sua determinação.
HN – Como se justifica essa situação?
RP – Provavelmente o que acontece é que o Estado e, obviamente, alguns organismos dentro do Ministério da Saúde não olharam ainda com a devida atenção para a atual listagem de análises convencionadas, no sentido de a atualizar. Percebo que os decisores políticos e sobretudo quem tutela o Ministério da Saúde têm que ter sempre em conta os custos, a despesa. Agora, também tenho a perceção, e já participei nalguns estudos, que me dizem que às vezes se olha para a questão dos custos das análises clínicas da maneira não adequada.
HN – Como assim?
RP – O que eu quero dizer com isto é que quando o utente faz uma análise num hospital ou num laboratório privado, o Estado paga um determinado valor se a análise for feita no privado, mas também paga se a mesma análise for realizada num hospital público. Há custos associados à realização da análise que o Estado tem que suportar.
Por outro lado é importante notar que é o próprio Estado que define os preços a pagar aos convencionados. De facto, existem tabelas que fixam os preços das tais 300 análises clínicas. O problema é que em algumas situações as tabelas já se encontram desatualizadas, não só em temos de preço/custo, mas também em termos de nomenclatura científica incluindo novas análises/biomarcadores.
HN- A verdade é que quando olhamos para a situação no terreno e para o modelo de retribuição, constatamos estar perante um sistema perverso que recompensa os médicos mais pela atividade – doença crónica, doença aguda e acompanhamento de outras comorbilidades que afetam principalmente a população idosa – e que não paga pela prevenção, que toda a gente diz ser a bandeira da Saúde Pública.
RP – Sem dúvida alguma. Uma das grandes virtudes dos meios complementares de diagnóstico, onde se incluem os dispositivos médicos de diagnóstico in vitro – as análises clínicas se quisermos ser mais simplistas – está precisamente na prevenção. Devíamos promover a prevenção; a utilização de indicadores – e é aqui que entram as análises – que nos permitem prever o que pode aparecer no futuro. E ter sempre em vista que a nossa população está a envelhecer de forma acelerada. Somos o quinto país mais envelhecido do mundo e, em 2030/2040, a situação vai agudizar-se
HN – Mas temos a pressão dos custos….
RP – Hoje, o clínico, numa unidade de cuidados de saúde primários, sente-se pressionado porque é monitorizado através de indicadores financeiros. Somos um país com recursos limitados, que devem ser otimizados, mas aquilo que hoje nos parece ser uma grande despesa, provavelmente no futuro poder-se-á traduzir num investimento gerador de grandes poupanças para todos. Hoje em dia olha-se muito para o momento (“precisamos de reduzir rapidamente custos”, “onde é que vamos cortar”) e não pensamos em termos de médio/longo prazo; do que podemos poupar no futuro.
HN- Os estudos mostram que o impacto da testagem do HPV para o rastreio do cancro do colo do útero permite uma redução da incidência e mortalidade em 30 e 70%, respetivamente, e uma redução de custos de 24% para o SNS face à citologia, o método clássico de rastreio. No entanto, os números mostram que em 2020 foram realizadas menos 29 milhões de testes de diagnóstico do que em 2019, ou seja, uma redução de 30%, entre os quais menos 140 mil rastreios do colo útero e menos 125 mil pessoas que fizeram exames para deteção do cancro colorretal.
RP – Pode-se diagnosticar atempadamente uma infeção pelo HPV, nomeadamente um HPV de alto risco, recorrendo ao laboratório de anatomia patológica, à citologia, mas também recorrendo aos laboratórios de biologia molecular, que estiveram muito ativos durante a pandemia. Essa metodologia que envolve o estudo genético do vírus, o seu ADN, é também usada para identificar HPV de alto risco. Os nossos laboratórios muniram-se, durante a pandemia, de equipamentos para a identificação do SARS-CoV-2, por biologia molecular, que facilmente se podem adaptar para o HPV. Parece existir uma capacidade instalada que não está a ser utilizada.
HN – E esses testes são convencionados?
RP – Como estamos a falar de um teste de biologia molecular, não é comparticipado pelo Estado. É certo que estamos a falar de um teste muito associado a uma especialidade, a ginecologia, mas o rastreio poderia ser aberto a outras especialidades, se tivessem acesso a prescrever esta análise de uma maneira mais simples. Se um utente do SNS for a uma USF pedir para fazer o rastreio de HPV por biologia molecular, o médico, provavelmente, não vai ter essa análise para selecionar porque não é convencionada. Vai ter de referenciar para os cuidados secundários. Lá está, mais uma vez, se este rastreio for adequadamente realizado, os custos que vamos ter hoje vão ter reflexo com poupanças enormes no futuro. Ao não fazermos estes rastreios, vamos ter muitas pessoas que não vão ser diagnosticadas atempadamente. E quando forem diagnosticadas, pode já ser tarde de mais. Há um estudo que indica que o teste de HPV (DNA-HPV) como método primário de rastreio do cancro do colo do útero permite uma proteção para carcinoma invasivo 60% a 70% superior à citologia apresentando um valor preditivo negativo próximo dos 100%
Outra situação que também afeta milhares de portugueses são as úlceras pépticas e gastrites associadas à infeção pela bactéria Helicobacter pylori. Há um teste – foi inclusive publicada uma guideline em 2021 sobre este teste – que está estudado e validado, que permite o auxílio no diagnóstico antes de se ter de recorrer a uma endoscopia, que é sempre muito invasiva. É um teste respiratório ao Helicobacter pylori, não invasivo, em que é possível detetar a bactéria no estômago através da toma de uma solução constituída por um conjunto de componentes que depois são analisados no ar expirado da pessoa em causa. Trata-se de um teste muito utilizado em gastroenterologia e que não é comparticipado. Ora, muitas vezes, o sucesso da terapêutica antibiótica contra a Helicobacter pylori resulta da realização deste teste. O problema é que se trata de um teste que não é comparticipado, facto que limita muito o acesso. E podíamos entrar em muitos outros campos, como o da imunoalergologia, por exemplo.
HN- Numa perspetiva de prevenção da doença, onde deveriam estar localizados os point of care?
RP – Relativamente aos point of care, é preciso olharmos para eles com algum cuidado e ver o seu interesse dentro daquilo que temos estado a discutir. Os point of care, são um tipo de testes que as pessoas geralmente associam a testes rápidos, de despiste, que podem dar uma orientação, no momento, ao médico. Atenção que os testes point of care não se aplicam a todo o portfólio de análises clínicas. Alguns podem ser feitos, outros não. Vamos supor que alguém se dirige a uma unidade de cuidados de saúde primários para avaliação. Está cansado e o médico quer saber se está com uma anemia. Poderia existir no centro de saúde um equipamento que pudesse dar ao médico uma indicação imediata da situação e ajudar a tomar decisões em tempo real, sem prejuízo de depois poder fazer os testes complementares e confirmatórios a nível laboratorial. Pensamos que este tipo de testes de point of care e desde que sejam bem utilizados podem ajudar o clínico a tomar uma decisão na altura, de urgência. Todos queremos que o utente tenha um acesso rápido ao seu diagnóstico e que seja um diagnóstico assertivo. Para isso é também necessário ter em atenção que a monitorização deste tipo de testes deve ser feita pelos Especialistas em Análises Clínicas/Patologia Clínica que estão associados ao laboratório que é responsável por estes equipamentos/testes. Depois, obviamente, pode-se fazer o acompanhamento mais calmo, mais dedicado, utilizando as análises clínicas convencionais. Aliás, já se faz isso. Nas farmácias já se fazem testes de despiste, da glicemia por exemplo. A questão aqui é que às vezes, o fazerem-se esses testes na farmácia não tem uma implicação para o utente: pode ir a uma farmácia fazer um teste de glicemia, e até obter um valor fora do normal, levando a que o farmacêutico o aconselhe a ir ao médico, ao seu centro de saúde, mas como não se sente mal, não vai. Era importante, neste caso, que o próprio sistema permitisse que o farmacêutico comunitário comunicasse com o SNS e este alertasse imediatamente o doente: “estamos à sua espera para vir ser acompanhado”. E a diabetes, afeta cerca de 13,5% da população portuguesa, ou seja, mais de um milhão de portuguese são diabéticos, e o mais grave é que, provavelmente, um terço deles nem sequer sabem que o são ou estão em risco de o ser.
HN- Li num artigo que um dos exames menos prescritos nos cuidados de saúde primários é o da sensibilização aos alérgenos, que normalmente os doentes são enviados para consulta hospitalar. Não seria de esperar o contrário, eles serem testados nos cuidados de saúde primários e em caso de alguma suspeita serem referenciados para os cuidados secundários?
RP – Nas alergias ou hipersensibilidades a muitos componentes – aquilo a que nós chamamos alergénios – muito provavelmente a questão está relacionada com a própria complexidade da especialidade de alergologia.
HN- A verdade é que o número de imunoalergologistas é substancialmente reduzido para as necessidades, portanto estar a enviar as pessoas para lá é estar a matar a prevenção à partida porque quando chegam ao momento da consulta já…
RP – Como nas alergias se trata de situações por vezes crónicas, que se mantêm, pode ajudar.
HN- Em termos de formação.
RP – Exatamente. Nesta área e outras (reumatologia, por exemplo) em que o médico com uma formação mais global pode não estar tão informado. Neste caso penso que se deve promover a elaboração de Normas ou Orientações que auxiliem a tomada de decisões na altura do diagnóstico com base em dados laboratoriais.
HN- Que conjunto de testes deveria ser obrigatório fazer nos cuidados de saúde primários, numa perspetiva de point of care?
RP- Esses testes estão mais ou menos identificados. Eu diria que e por exemplo, na área da endocrinologia e da diabetologia, precisamos da glicemia e da hemoglobina glicada; E aqui, mais uma vez, sublinho que estamos a falar de dispositivos médicos que têm de ser sujeitos a monitorização, a controlo, a manutenção por profissionais. É esse o espírito que está na lei do licenciamento dos laboratórios. Tudo isso pode existir desde que esteja associado a um laboratório, independentemente da sua figura jurídica – se é público se é privado – até pela segurança do próprio utente.
HN- Um dirigente da saúde afirmou recentemente que os diagnósticos precoces são vitais e merecem por isso mesmo uma atenção especial no PRR. Há sinais de que isso esteja a acontecer no terreno?
RP- Eu acho que aquilo tudo que nós já dissemos responde a isso. Há limitações à prescrição, há incentivos para que não se gaste tanto. Provavelmente não. Provavelmente há a necessidade de tentar ir mais longe, o que foi feito ainda não é suficiente.
Entrevista de Miguel Mauritti
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