Pôr um creme hidratante adequado, sem perfume, específico para atópicos, “tem de se tornar um hábito de vida e entrar na rotina”. À semelhança de outras regras de autocuidado, “como escovar os dentes”.
HealthNews (HN) – O número de doentes com dermatite atópica tem aumentado de forma significativa. Viver com eczema atópico é viver com uma doença à flor da pele?
Ana Filipa Duarte (AFD) – A dermatite atópica está de facto a aumentar, sobretudo nos países desenvolvidos e nas zonas urbanas. Pensa-se que o contexto ambiental, nomeadamente a poluição, os alimentos processados, conservantes e outros químicos, estejam associados a este quadro epidemiológico.
A dermatite atópica é muito prevalente nas crianças, em idades precoces, por vezes com poucos meses de vida. Entre os primeiros meses de vida e até aos cinco, seis anos, regista-se o maior pico de incidência, mas também pode surgir em adolescentes e adultos, tendo vindo a verificar-se um aumento na população idosa.
A dermatite atópica que, por definição, é uma dermatose inflamatória crónica, recidivante, com muito prurido (comichão), pode ter graus de gravidade e de atingimento cutâneo muito diferentes, desde eczema localizado e prurido ligeiro a formas graves e generalizadas, que requerem medicação sistémica.
HN – A dermatite atópica tem forte impacto no dia-a-dia dos doentes. A “dor” sentida por parte dos doentes vai para além da dor física?
AFD – Sim, vai muito para além do impacto cutâneo, da dor física e do prurido. A dermatite atópica tem um impacto psicossocial importante, bem como na qualidade de vida do paciente e dos seus conviventes mais próximos.
HN – Como é que a dermatite atópica afeta a qualidade de vida dos doentes?
AFD – Focando-me um pouco na população pediátrica, é complicado para o próprio porque são crianças pequeninas que sentem imenso prurido e desconforto, e também para as famílias, que têm de se ajustar a viver com alguém que está permanentemente desconfortável, com prurido, que não tolera estar num ambiente com pó, pelo de animais, nem consegue vestir, por exemplo, uma camisola de lã porque se sente muito desconfortável.
Quando o prurido se mantém durante a noite e interfere com o sono, reflete-se em muitas outras situações. Por exemplo, nos bebés, traduz-se em irritabilidade durante o dia. Nas crianças, interfere frequentemente com o rendimento escolar porque dormiram mal ou porque estão com prurido e não conseguem estar tão concentradas. Nos adultos, ou nos pais que não dormem bem de noite, a privação do sono pode ter impacto na concentração, na atenção e no desempenho profissional..
Por outro lado, o impacto da dermatite atópica na auto-estima das pessoas é geral mas nos adolescentes, por regra, atinge uma dimensão maior. Nesta faixa etária, o aspeto visual tem uma grande importância e, muitas vezes, é preciso não só apoio dermatológico mas também psicológico.
Nos casos graves e muito graves, a qualidade de vida está absolutamente comprometida, mas o tratamento tem vindo a registar algumas evoluções nos últimos anos, com medicamentos biotecnológicos e inibidores de enzimas Janus Kinase (JAK).
Contudo, antes de avançarmos para o tratamento, a prevenção é fundamental. O paciente atópico tem de aprender, desde muito pequenino, assim como os pais ou os cuidadores, a conviver e a gerir bem a doença para ter a melhor qualidade de vida possível. Isso tem implicações a vários níveis, desde os cuidados de higiene, aos ambientes que frequenta, à roupa que veste, à alimentação ou aos produtos que aplica na pele.
Há pequenas coisas que ajudam muito a melhorar a qualidade de vida dos doentes e, muitas vezes, a prevenir a evolução da doença para um quadro mais severo. Costumo dizer aos pais dos bebés atópicos que pôr um creme hidratante adequado, sem perfume, específico para atópicos, é como se fosse um medicamento para aquela criança. Todos os dias, desde o primeiro dia.
Tem de se tornar um hábito de vida e entrar na rotina. Como escovar os dentes.
Porque o que está “errado”, digamos assim, na pele de uma criança com dermatite atópica é a própria barreira cutânea, que é mais frágil e permeável a agentes irritativos. Portanto, temos de a proteger o melhor possível, para prevenir que tenha contacto com aquilo que a inflama ou que desencadeia a dermatite. Se estiver bem hidratada, está mais protegida e estaremos a prevenir a evolução da doença. Claro que isso não acontece em todos os pacientes. Há casos e casos mas, na generalidade, pequenos hábitos de vida podem fazer uma grande diferença.
HN – A dermatite atópica pode surgir em qualquer idade. A doença afeta de igual forma crianças e adultos?
AFD – Cada caso é um caso. Por regra, nas crianças, se os diagnósticos forem precoces e não houver uma alergia grave associada, se conseguirem aprender a lidar com a doença e tiverem hábitos de vida adequados desde pequeninas, geralmente conseguem estabilizar. Em contrapartida, os quadros são normalmente mais graves nos adultos.
Nas crianças, os cuidados são muito globais e não muito complicados. Podem entrar na rotina facilmente. Por exemplo, o banho deve ser relativamente rápido, com um produto adequado para atópicos, sem perfume; a pele deve ser seca de forma suave e o hidratante aplicado logo após o banho, porque dessa forma é mais eficaz por ser melhor absorvido pela pele.
Nalgumas crianças mais velhas pode fazer sentido realizar testes de alergia e perceber, por exemplo, se devem evitar o contacto com animais, com o pêlo do cão, do gato, as gramíneas, os ácaros do pó, etc. Há crianças que podem ser alérgicas e tudo o que são fatores alérgicos ou irritativos, devem ser evitados.
Outro cuidado importante diz respeito à roupa. Sabemos que uma pele atópica é uma pele mais sensível e reativa. Se o doente tocar em determinados tecidos mais sintéticos ou mesmo em lã pura, começa logo a sentir uma sensação de picada e de desconforto. Por isso, deve preferir-se roupas de algodão, largas, e as cores claras junto da pele.
Também convém ter alguns cuidados alimentares. Não por reação alérgica (a maior parte dos doentes atópicos não tem alergia alimentar) mas quando estão com eczema, comidas mais condimentadas ou mais ácidas podem favorecer a perpetuação do eczema.
São cuidados simples mas que é importante divulgar junto dos pais das crianças para estas passarem melhor.
HN – Em muitos casos os tratamentos tópicos (cremes, pomadas, loções e outros produtos de aplicação na pele) não são suficientes. Nos casos mais graves como é feito o tratamento?
AFD – O paradigma do tratamento tem vindo a mudar com alguns anticorpos monoclonais, como o dupilumab e com os inibidores de JAK mas, infelizmente, ainda não estão amplamente acessíveis a toda a população. Contudo, existem outros medicamentos, mais antigos, amplamente estudados e com um perfil de segurança adequado, como os imunossupressores, que dão uma boa resposta mesmo no caso dos doentes que não respondem aos tratamentos tópicos.
Entretanto, noutras partes do mundo já existem inibidores de JAK tópicos, ou seja, em creme ou pomada. Espero que, com alguma brevidade, possam vir a ser utilizados em Portugal, pois se se confirmar a sua eficácia, evitam eventuais efeitos laterais da medicação sistémica. Todos os especialistas estão na expectativa porque há muita investigação em curso e alguns resultados parecem promissores.
HN – Todos os doentes têm acesso aos tratamentos mais eficazes e seguros?
AFD – Os fármacos biotecnológicos, nas formas oral e injetável, estão disponíveis no nosso país, de acordo com critérios de gravidade bem definidos mas, neste momento, só podem ser prescritos nos hospitais públicos. Esperamos que a prescrição possa chegar ao setor privado o mais brevemente possível, pois há muitos pacientes que procuram o setor privado e é preciso haver uma acessibilidade justa à medicação a toda a população que dela possa precisar.
Isto já aconteceu com outros fármacos biotecnológicos para outras doenças. Por exemplo, na psoríase, as inovações terapêuticas começaram por ser prescritas só nos hospitais públicos mas foram posteriormente alargadas ao privado.
Na dermatite atópica e noutras doenças ainda estamos a dar os primeiros passos porque é tudo muito mais recente. A maioria dos pacientes tem uma boa resposta às terapêuticas clássicas, no entanto, neste momento, um paciente que vá a um consultório privado, se o médico considerar que já fez tudo o que era possível fazer e precisa de passar ao passo seguinte, terá de ser encaminhado para o SNS que, todos sabemos, está muitas vezes sobrecarregado.
O acesso à medicação deverá ser mais justo, se a medicação puder ser prescrita quer pelo setor público, quer pelo setor privado, de forma criteriosa. Todos esperamos que esse acesso seja mais fácil no futuro, para o bem de todos os pacientes.
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