Uma das maiores riquezas do Homem é a palavra. Inúmeras foram as vezes em que dei comigo a pensar no poder de uma folha em branco e de tudo o que dela pode advir com as diferentes combinações de vocábulos. Boas e más acções nascem de uma folha em branco, auferindo poderes antagónicos, na medida em que pode começar uma guerra ou terminá-la. Nem Jesus conseguiu ser tão poderoso e consensual como um pedaço de papel. Uma folha pode ter o brilhantismo d'Os Lusíadas ou a mediocridade de uma crónica como esta.

Sentirmo-nos livres para usar a palavra faz com que, muitas vezes, esbardalhemos o discurso. Pior do que dar um erro ortográfico é dar abortos ortográficos, que são um subtipo do erro condenado à nascença.

Dizermos a alguém, de forma imperativa, "tussa" é completamente diferente de dizer "tusa"

A adição ou omissão de letras pode ser um erro ou um aborto ortográfico, caso altere o discurso - o que pode ter consequências drásticas na vida de cada um. Dizermos a alguém, de forma imperativa, "tussa" é completamente diferente de dizer "tusa". Se numa apelamos a uma contracção espasmódica da cavidade torácica com o intuito de obter uma violenta expulsão de ar dos pulmões, noutra estamos a apelar ao desejo e ao ímpeto sexual, o que no dia-a-dia é chato. Convenhamos que é antagónico, tal qual uma folha de papel, pedir a alguém para expulsar uma coisa e acabar por entrar outra. Os ingleses, nisso, sempre estiveram à nossa frente, porque desde cedo souberam a diferença de ter mais um "s". Se o sexo tivesse mais um "ass", passava de uma relação amorosa a uma experiência sexual a três. Se dobrar o "s" faz diferença, dobrar no "ass" também o faz - que o digam as celebridades do futebol que, muito possivelmente, só queriam promover a gastronomia portuguesa no estrangeiro, alegadamente oferecendo uma dobrada mas, na volta, preferiram oferecê-lo inteiro.

A dicção e a escrita, em paralelo, são também importantes para os erros ou abortos ortográficos. Aliás, não é só a letra "s" que se encontra envolta em polémica. O mesmo se passa com a consoante "r". Convenhamos que "areia nas calças" é diferente de "arreia nas calças". Esta duplicação do "r" marca a diferença entre trazer ou deixar nas calças.

A palavra é tão importante que nos deixa desconfortáveis em usá-la em toda a sua plenitude, sentindo-nos comprometidos em usar o palavrão. Em boa verdade, ele só existe porque o convencionamos como tal - o que percebo e não condeno. Se o palavrão fosse permitido não era libertador. Aliás, se pensarmos bem, o nível de brejeirice é proporcional ao seu poder de libertação. Proferir uma asneira na devida altura devia dar livre trânsito ao palavrão para sair do calão e ser elevado ao estado de arte. Há expressões que ditas sem uma asneira são insossas, perdem o significado e levam a que terceiros gozem com o interlocutor. Falar correctamente num momento de dor, tira-lhe significado. Rebaixa-o, banaliza-o e ausenta-o de importância. Os palavrões são históricos e acredito que tenham nascido da nomenclatura do pé. Para mim, os dedos dos pés, da parte medial para a lateral, são nomeados de primeiro dedo, segundo dedo, terceiro dedo, quarto dedo e fod*-se. Sim, leram bem. O dedo mais pequenino do pé foi, para mim, o responsável por todo um dicionário de calão. E chama-se fod*-se porque só nos lembramos do nome dele quando andamos descalços e encontramos a quina de uma mesa, da cama ou do sofá. A partir daí, a história encarregou-se de nomear outros palavrões, maioritariamente relacionados com o sexo. Há um pudor em falar da sexualidade e atribuímos palavrões a tudo o que está relacionado com ele, talvez para ainda abordarmos menos o assunto. O palavrão reforça o tabu do sexo na mesma medida em que o sexo reforça o tabu do palavrão. O problema é cultural, levando-nos a proferir tão poucas asneiras que nem o sabemos fazer bem. Quando dizemos a alguém "és um br*che", temos o intuito de afirmar que uma determinada pessoa não presta, é reles e não vale nada. Em boa verdade (e levando a expressão à letra) o que acabámos de fazer foi dizer a essa pessoa que ela é, de facto, uma pessoa de quem gostamos muito. O mesmo acontece quando dizemos a alguém "é pá, és tão c*na". Se aqui queremos dizer que a pessoa roça um nível de estupidez absurdo, saibam que acabaram de dizer "é pá, és tão bonito que acabei de ter sentimentos pecaminosos contigo". Dizendo a alguém que "está f*dido", não lhe estamos a desejar mal, mas sim todo o bem do mundo. Por outro lado, se dissermos a um grande amigo, após ele ter dito uma piada incrível "este gajo é do car*lho", estamos a dizer que, francamente, é uma pessoa pela qual não temos um carinho por aí além, existindo até alguma repulsa.

Durante 15 dias deve mandar toda a gente para a real p*ta que os pariu, de manhã e à noite. Leva também aqui uma prescrição de um "f*da-se" e três "car*lhos" para usar em SOS, para dormir melhor

O palavrão deve ser valorizado e deve haver um investimento da nossa parte em usá-lo correctamente. Há um sentimento de libertação tão grande que chega a ser mais terapêutico que muita medicação crónica. Devia, inclusive, ser sujeito a prescrição médica:

- O que é que tenho, doutor?
- É com muita pena minha que lhe comunico que sofre de SPC.
- SPC? O que é isso? É grave?
- É o síndrome de privação de caralh*das. É grave se, a longo prazo, não tratar.
- E o que é que posso fazer?
- Durante 15 dias deve mandar toda a gente para a real p*ta que os pariu, de manhã e à noite. Leva também aqui uma prescrição de um "f*da-se" e três "car*lhos" para usar em SOS, para dormir melhor.

Com tanta liberdade na palavra e após apregoar tanto o calão, chega a ser antagónico ter escrito tantos palavrões numa folha em branco e não haver um que eu próprio não tenha censurado com um asterisco.