Isabel e Mário são colegas de trabalho. Daqueles que não se adoram nem se odeiam, toleram-se. O trabalho corre bem porque não se podem chatear, sob pena de quebrarem o vínculo que os une à cusquice alheia. Passam o dia num profundo interesse pela vida do outro, fazendo-o de forma aparentemente desinteressada. É um falso distanciamento que os mantém unidos e os permite alcovitar.

Vivem a vida de terceiros com a intensidade com que deveriam viver a sua e tratam-se na terceira pessoa para demonstrar uma superioridade cavalgada com a imposição do outro. Agem sem conformidade com o que dizem e ainda se conseguem contradizer constantemente. Chamam-lhes "portugueses de gema", algo que estes desmentem por não se quererem misturar com "essa gentalha". Nada fazem para melhorar a sua vida e evoluem, não através dos seus sucessos, mas  através do desaire dos outros.

- Viu aquela polémica que deu perto da hora de jantar, com a Maria Leal?

- Não, não vejo televisão. A essa hora estava a comprar sumos detox numa loja nova que abriu, a "100%Bio 100%Cool 100%Naturelovers". Bem melhor do que a "Hashtag natureza bioliving bodypump lifestylecoolness". Pode ser mais cara, é verdade, mas a qualidade paga-se.

- Ah! Mas estava a falar-lhe da Maria Leal. Disseram que a cantora destruiu uma herança avaliada em mais de um milhão de euros.

- E a quem lhe chamou cantora, não aconteceu nada?

- Não, não. Aconteceu foi ao rapaz que casou com ela. Ficou na miséria o, agora, pobre rapaz.

- Na miséria fico eu com o preço dos alimentos sem glúten. Sou celíaca, sabe disso?

- É? Mas não faz um mês que fomos à Cervejaria do Paulo comer um prego no pão com aquela cerveja artesanal, lembra-se? Que era puro malte?

- Lembro, pois. Fiquei celíaca depois disso.

- Depois? Como assim? Foi ao médico?

- Não. Senti-me foi melhor ao comer alimentos sem glúten.

- Ah! Mas isso assim até parece redutor para quem realmente padece da doença. Não sei... Não parece, sei lá, uma moda?

- Não. Li na 100%Cool um artigo sobre as 50 modas do século e essa não consta na lista. É mesmo orgânico, sabe?

- Imagino. Só lho disse porque vi uma notícia no telejornal que falava nisso e pensei que tivesse visto.

- Eu? Não, já lhe disse que não vejo televisão. É uma perda de tempo, sabe? É tempo desperdiçado, que posso usar em algo mais importante, como aproveitar o mundo, sentir as vibrações da Terra e ligar-me ao cosmos. Sabe do que estou a falar, coisinho? Não sabe?

- Sei. Quer dizer, percebo o que diz. Vi um documentário riquíssimo na BBC que falava nisso. Basicamente dava a ideia de que, tudo o que der ao Universo, ele retribui-lhe em dobro, acabando por ser tudo uma transferência de energias.

- Pois, isso não sei porque também nem sequer sou assinante da revista. Acho isso muito old school, está a ver? Comprei aquela porque, sei lá, toda a gente comprou e toda a gente falou. Se saiu depois, não vi. E sinceramente, já gastei as poupanças todas com as aulas de pádel.

- Pádel?

- Sim. É tipo ténis mas dentro de um tupperware. Ainda só fui uma vez e nem treinei, mas dá fotografias incríveis, mesmo sem filtro. Apetece-me é levar a criada para limpar aqueles vidros. Nem me consigo concentrar, credo. Vou focar-me nisso depois do Encontro Internacional de Yoga.

- Pratica?

HELLO? Claro que não. Fiz umas aulas que ganhei num passatempo do blogue do “Tremoço Mais Salgado". Eram oito aulas, fui a duas. Pesquise no meu Insta com o hashtag "3moço". Fui tirar a selfie e não fui mais, aquilo ainda cansa.

- É estranho. Da última vez que falámos, andava no ginásio.

- E ando. Ao Yoga só fui porque era grátis. Quando ganho algo, não quero saber o que é. Ou aceito e experimento, ou aceito e não vou. Sabe que há uma linha muito ténue entre aceitar coisas gratuitas e ser esbanjador.

- Percebo perfeitamente. Eu também ando no ginásio. Naquele caríssimo, perto do Parque das Nações.

- Também ando nesse. Mas ainda não paguei mensalidade. O primeiro mês foi à experiência, o segundo foi gratuito porque levei um amigo e o terceiro idem, porque tenho dez mil seguidores no Insta e promovi o ginásio. Pode ir ver a minha publicação com o hashtagPeanutButterJellyTime. Está o máximo! Levei umas calças oferecidas pela Gangas & Malhas, o top era da Topa's, as meias da Socks de Nisa, os ténis da Corre Corre Bandido, o elástico do cabelo da Sadomaso e a roupa interior da Fisga Passarinho.

- Incrível. Eles oferecem inscrições se levarmos um amigo?

- Sim. Até estive a pensar levar só amigos com quem já me tivesse envolvido. Para simplificar, sabe? É que só tive relações com um corpo, o problema é que foi com o corpo de bombeiros.

(Risos)

- A Isabel é demais. Como é que consegue ser assim? Tão super?

- Sei lá. Acho que é do desporto. Além de emagrecer, deixa-me toda para cima, toda vencedora e capaz de conquistar o mundo.

- Por falar em emagrecer, comecei agora uma dieta. A dieta dos três passos.

- Esqueça isso. Com três passos ninguém emagrece. Tem que dar mais passos, correr e mexer-se mais, como é óbvio.

- Só diz isso porque tem esse corpo invejável. Ainda que com ajudas.

- Ajudas?

- Sim. Não toma aquelas coisas todas que mandou vir da internet? Acha isso seguro?

- Claro que é. Foi com o código promocional do actor José Antunes da Mota, aquele que está a gravar a novela "Sangue do Coração". Claro que é de confiança ou acha que tomava coisas assim à toa? Poupe-me. E se estou a fazer injectável é porque sabe perfeitamente que não tolero comprimidos.

- Injectável? Isso já me parece um exagero, se quer que lhe diga.

- Exagero? Já lhe disse mil vezes que não sou exagerada. Ai homem, relaxe e aproveite a vida. Anda sempre tenso. Olhe, logo vou com umas amigas espairecer a cabeça. Vamos a um sunset num rooftop, beber um gin, quer vir?

- Não gosto de gin.

- Eu também não. Detesto aliás. Quem é que falou em beber gin? Vamos lá, tira uma foto e vai-se embora.

- Ah, pensei que o conceito fosse outro. Mas não sei... ando cansado. Esta semana queria ter ido correr e fiquei pelo sofá. Até vi o programa ao qual foi um professor dizer que obrigar uma criança a dar um beijo aos avós é uma violência. Se bem que depois houve uma devassa da sua vida privada nas redes sociais e nos media. Viu isso? Estavam a considerar coercivo obrigar uma criança a beijar os avós.

- Não vi, já lhe disse que não vejo televisão. Olhe, pagar tantos impostos também é coercivo e o estado não quer saber. Como é? Conto consigo logo?

- Não devo ir. Mas convide a Valentina que ela gosta dessas coisas.

- A Valentina? Nem morta. Desde que se meteu na minha vida, nunca mais falámos.

- Meteu-se na sua vida?

- Claro. Andou a coscuvilhar tudo. E, de qualquer forma, ela também não podia ir. Vai passar o fim de semana à serra.

- Como é que sabe, se não se falam?

- Vi no Facebook. Eu só acho estranho é que vá passar o fim de semana fora quando ainda há uma semana veio das Maldivas.

- Como sabe?

- Vi no Foursquare. Não tenho culpa que ela publique a vida dela toda. Agora, se acho suspeito tanto dinheiro para férias, depois de ter comprado um carro novo no início do ano... acho, não lhe vou mentir.

- Carro?

- Sim. Pode confirmar no Instagram dela.

- Mas não acha que isso também é coscuvilhar a vida dela?

- Ai, você cansa-me a beleza, homem! Saio daqui cansada de o ver sempre a complicar tudo. Já me tirou a vontade de ir ao sunset no rooftop, segurar num gin. Sabe o que é que me apetecia? Chegar a casa, tomar um bom banho e mandar vir sushi para casa. Melhor só se houvesse uma nova Casa dos Segredos.

- Então mas como é que conhece a Casa dos Segredos? Não disse que não via televisão?

- E não vejo. Foi zapping.