O crescimento deixa-nos estafados. Há toda uma vitalidade, quanto mais precoce é a fase da vida, que se vai perdendo no seu desenrolar. Vamos ficando entediados com o tempo e desinvestimos no esforço, como se a inércia nos vencesse pelo cansaço.
Habituámo-nos a exigir o repouso, investindo em ideias que nos poupem o físico. Por isso temos o mundo a transbordar de trotinetas e de bicicletas eléctricas. Não poluentes (claro!), como se as que não têm motor o fossem. São meios de transportes tão preguiçosos que nem nos obrigam a deixá-los no lugar de origem. É cómodo, mais ainda quando nos permite dizer que fomos de bicicleta para o trabalho, como se este suposto exercício já queimasse calorias.
Chegamos a casa e estacionamos à porta, no passeio. Depois dos quilómetros que fizemos sentados, vem a fome e optamos pela Uber Eats para nos trazer o jantar enquanto simulamos a morte no sofá. Chateamo-nos porque o estafeta nos obriga a ir à porta, enquanto resmungamos e retorquimos: "para isto, ia lá eu".
Usamos escadas rolantes que nos transportam a alma morta para o andar de cima, permitindo-nos ficar um piso mais perto do céu
Tentamos mudar rotinas e no dia seguinte decidimos ir às compras. Lembramo-nos da mais-valia de podermos escolher os produtos no conforto da mesma casa, no mesmo sofá que esperou pelo jantar do dia anterior. Chateamo-nos, uma vez mais, com quem nos traz as compras a casa e nos obriga a ir à porta. Voltamos a tentar mudar hábitos e prometemos que, na semana seguinte, vamos fisicamente às compras. Lembramo-nos é que podemos escolhê-las online e, para evitar que nos chateemos com o estafeta, chamamos um Cabify que nos apanha em casa e nos transporta ao hipermercado para levantarmos os sacos com os produtos que escolhemos previamente no domicílio. Agora sim, podemos colocar todos os ingredientes na Bimby e esperar que ela tenha a competência que o estafeta da Uber Eats perdeu, já que não me obriga a abrir portas ao som de campainhas.
Optamos por alugar um filme na box porque o cinema é longe. Protelamos viagens porque, se subscrevemos um serviço de televisão com mil canais que nos permitem conhecer o mundo à distância de um botão, o mínimo é dar-lhe uso.
Usamos escadas rolantes que nos transportam a alma morta para o andar de cima, permitindo-nos ficar um piso mais perto do céu. Usamos elevadores, porque achamos que são um privilégio para as pessoas com mobilidade reduzida, pais com carrinhos de bebé e para nós - pessoas que se acham no direito de perpetuar o colesterol dado que, anos de sedentarismo fazem-nos ter apreço pela gordura que ajudamos a acumular.
Sim, é que funerais ao domicílio já existem, porque o que não falta é idosos a morrer em casa, fruto de uma sociedade sem memória
Lemos apenas os títulos das notícias pela incúria de lhes absorvermos o conteúdo. Somos capazes de ler um título sobre a preguiça e ficamos-lhe pelo cabeçalho, dado o cansaço em abri-la. É que nem para nos indignarmos precisamos de sair de casa, preferindo o conforto de uma rede social. Como se tivéssemos perdido a capacidade de luta em prol do bem estar.
Temos feito a vida a partir de casa, o que me faz achar que a chuva destes dias não é mais do que Deus a tentar investir em baptizados ao domicílio. Sim, é que funerais ao domicílio já existem, porque o que não falta é idosos a morrer em casa, fruto de uma sociedade sem memória.
O conforto mata-nos. A primazia que lhe damos faz com que, se tivermos um AVC ou um enfarte agudo do miocárdio, reclamemos de imediato com a vida, insinuando que esta foi tudo menos justa.
Tudo se resume ao tempo. Queremos tecnologias que nos simplifiquem a vida e que nos façam poder ganhá-lo. Acontece o mesmo numa doença incurável, durante a qual se quer ganhar isso mesmo: tempo. O tempo é um luxo e há muito que nos apercebemos disso. O estranho é que parece que não há nada mais ostentador do que desperdiçar o tempo ganho com uma inútil e desinteressada inércia.
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