
Durante décadas, ouvimos a mesma receita para perder peso: cortar nos hidratos de carbono, fazer mais exercício e ver os quilos desaparecerem. Mas e se tudo isto estivesse errado? Herman Pontzer, investigador na área do metabolismo humano e professor associado na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, revela no livro Burn (edição Contraponto) aquilo que entende ser uma descoberta desconcertante: fazer exercício não é a chave para emagrecer. Na realidade, o que importa mesmo é a forma como o nosso corpo gasta — e sobretudo conserva — energia.
Através de estudos realizados junto de tribos de caçadores-recoletores na Tanzânia, Pontzer apresenta-nos o seu ponto de vista: independentemente do nível de atividade física, o nosso corpo queima aproximadamente o mesmo número de calorias todos os dias — cerca de 3000. De acordo com a hipótese formulada em Burn “esta descoberta põe em causa muitos dos princípios que sustentam o vasto e lucrativo mercado das dietas e do fitness”.
"O corpo humano é uma máquina eficiente — adapta-se para manter o gasto energético estável, mesmo quando aumentamos o exercício", explica Pontzer.
De acordo com o autor, ao contrário do que se pensava, fazer mais desporto não significa necessariamente gastar mais energia. Em vez disso, o organismo compensa o esforço extra reduzindo o consumo de energia noutras funções essenciais, como o sistema imunitário ou a função reprodutora. Esta adaptação, que em tempos pré-históricos ajudava os humanos a sobreviver em ambientes de escassez, transforma-se hoje num obstáculo invisível que nos condena à obesidade e às doenças metabólicas.
O livro Burn desmonta o mito da "caloria queimada" através do exercício e coloca a tónica na dieta como única estratégia eficaz para a perda de peso a longo prazo. “Comer menos — e comer melhor — é o verdadeiro segredo para controlar o peso e melhorar a saúde”, lemos na apresentação da obra.
Pontzer, cuja investigação combina trabalho de campo com tribos tradicionais, estudo de chimpanzés selvagens e análise de atletas de elite como Michael Phelps, pinta um quadro de como a evolução moldou a nossa biologia energética. Mostra-nos que somos "símios gordos" altamente adaptados, mas que vivem num mundo moderno para o qual o nosso metabolismo primitivo não estava preparado.
Ao longo de Burn, o autor guia-nos pela complexidade do metabolismo humano, explicando como a energia é produzida, gasta e armazenada no corpo. Fá-lo procurando contornar o jargão científico e com exemplos práticos.
"Não é a falta de exercício que nos engorda. É o excesso de comida num corpo que foi desenhado para a escassez", resume o investigador.
Em tempos de epidemia de obesidade e doenças associadas, como a diabetes tipo 2, hipertensão e problemas cardíacos, compreender como realmente funciona o nosso metabolismo é mais do que uma curiosidade científica: é uma questão de sobrevivência, retiramos da leitura de Burn.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
Desmistificar o metabolismo
Se vamos falar sobre a mais recente ciência do metabolismo humano temos de compreender o que ele é e como funciona – e essa compreensão terá de ser melhor do que aquilo que o biólogo comum sabe acerca das ondas de rádio. Sem sucedâneos, sem demasiado jargão e sem tretas. Comecemos pelo início.
Metabolismo é um termo abrangente que cobre todo o trabalho que as células fazem. O grosso deste trabalho consiste em fazer passar moléculas através das membranas celulares (as suas paredes) e converter um tipo de molécula em outro. O nosso corpo é um reservatório ambulante de milhares de moléculas em constante interação – enzimas, hormonas, neurotransmissores, ADN, etc. – e quase nenhuma vem diretamente da nossa dieta numa forma que seja utilizável. O que as células fazem é recolher constantemente nutrientes e outras moléculas úteis que circulam na corrente sanguínea para serem usadas como combustível ou como blocos de construção, converter essas moléculas em outras coisas e depois expulsar o que construíram através das paredes, para que seja usado em outras partes do corpo. As células nos ovários recolhem moléculas de colesterol, criam estrogénio com elas e depois expulsam o estrogénio – uma molécula que afeta todo o corpo – para a corrente sanguínea. Os nervos e os neurónios estão constantemente a recolher e a expulsar iões (moléculas com carga positiva ou negativa), de modo a manter uma carga interna negativa. Orientadas pelo ADN, as células pancreáticas criam insulina, bem como uma longa lista de enzimas digestivas, a partir de aminoácidos. E a lista continua.
A quantidade de trabalho metabólico que está neste momento a acontecer no seu corpo é avassaladora. Todo este trabalho precisa de energia. Com efeito, trabalho é energia. Usamos as mesmas unidades para medir o trabalho e a energia e podemos falar sobre eles alternadamente. Se atirarmos uma bola de basebol, a sua energia cinética ao abandonar a nossa mão é, por definição, exatamente igual à quantidade de trabalho levado a cabo para a fazer acelerar. O calor é outra forma comum de energia. Se aquecermos uma caneca de leite no micro‑ondas para o nosso filho, o aumento de temperatura diz‑nos quanta energia eletromagnética foi capturada pelo leite. A energia libertada pela combustão de gasolina é igual ao trabalho feito para deslocar o carro pela estrada, mais o calor gerado pelo motor. A energia consumida é sempre igual à combinação de trabalho feito e de calor ganho, quer estejamos a falar do corpo, de um carro ou de um smartphone. Todos seguimos as mesmas leis da física.
A energia também pode ser armazenada em coisas que têm o potencial de fazer trabalho ou de criar calor, como a gasolina num tanque de combustível. Um elástico esticado ou a mola de uma ratoeira pronta a ser acionada têm energia de deformação elástica. Uma bola de bowling equilibrada precariamente numa prateleira, estando prestes a cair ao chão, tem energia potencial. As ligações que mantêm as moléculas unidas podem armazenar energia química, a qual é libertada quando as moléculas se separam. Quando, durante a detonação, as moléculas em 453 g de nitroglicerina (fórmula química: 4C3H5N3O9) se separam em nitrogénio (N2), água (H2O), monóxido de carbono (CO) e oxigénio (O2), isso liberta violentamente energia suficiente (730 kcal) para lançar um homem de 75 kg a 4 km de altitude (o que seria trabalho), ou para o vaporizar (o que seria calor), ou uma combinação dos dois. Isto leva‑nos ao nosso último pormenor acerca da energia: ela pode ser convertida nas suas muitas formas – energia cinética, calor, trabalho, energia química, etc. –, mas não pode ser perdida.

Calorias e joules são as duas unidades padrão que se usam para medir energia, seja ela a energia química armazenada na comida, o calor do lume ou o trabalho feito por uma máquina. As calorias são comuns nos Estados Unidos quando falamos sobre comida, mas conseguimos confundir o seu uso padrão. Definimos uma caloria como sendo a energia necessária para aumentar a temperatura de 1 ml de água (um quinto de uma colher de chá) em 1 ºC.27 Trata‑se de uma quantidade minúscula de energia – demasiado pequena para ser uma unidade de medida útil quando falamos sobre comida (é como se tivéssemos sinais de trânsito a indicarem as distâncias em centímetros). Em vez disso, quando falamos sobre «calorias» na comida, referimo‑nos, na verdade, a quilocalorias, ou 1000 calorias. De acordo com o rótulo nutricional na caixa, uma chávena de Cheerios secos tem 100 calorias, mas o que na verdade queremos dizer é 100 quilocalorias, ou 100 mil calorias.
Então, porque não dizemos logo «quilocalorias», ou «kcal», em vez de usarmos e abusarmos do termo «caloria»? Curiosamente, em finais do século XIX, quando os cientistas estavam a decidir adotar «calorias» como unidade preferida de medição de energia alimentar, o influente e pioneiro nutricionista americano Wilbur Atwater decidiu manter uma convenção antiga e arcana e usar letra maiúscula, «Calorias», ao referir‑se a quilocalorias. Isso faz tanto sentido como usarmos «Metros» com maiúscula para nos referirmos a quilómetros. Desde então vemo-nos obrigados a usar esta designação confusa de calorias (ou Calorias) nos rótulos dos alimentos. Claro que isto é apenas mais uma entrada na longa e embaraçosa história das medições nos Estados Unidos. Um país que insiste em usar colheres de chá, polegadas e Fahrenheit tem problemas psicológicos profundos quanto a debater as suas unidades de medida. (Já agora, qualquer americano que ande a viajar pelo mundo civilizado e quiser converter os joules dos rótulos em calorias terá apenas de dividir os joules por 4.)
Uma vez que trabalho e energia são dois lados da mesma moeda, podemos pensar no trabalho que as células fazem e na energia que elas consomem como sendo duas formas de medir a mesma coisa. Podemos usar «metabolismo» e «gasto de energia» alternadamente. É por isso que os biólogos evolutivos como eu, bem como os médicos e os profissionais de saúde pública, são tão fixados nos gastos de energia, a forma como medimos o metabolismo. É a medida fundamental da atividade do corpo. A velocidade com que uma célula faz o seu trabalho determina o índicemetabólico, a energia usada por minuto. Se somarmos o trabalho de todas as células do corpo temos o índice metabólico do corpo, a energia que gastamos a cada minuto. O índice metabólico é a nossa orquestra celular a tocar em toda a sua magnitude, 37 biliões de músicos microscópicos a tocarem uma sinfonia complexa.

O sofisticado sistema metabólico que nos sustenta, e que todos damos como garantido, é uma verdadeira maravilha evolutiva. Foram precisos quase mil milhões de anos – incontáveis biliões de gerações, triliões de partidas falsas e becos sem saída – para que a estrutura básica dos mais simples sistemas metabólicos unicelulares atuais evoluísse neste planeta, uma eternidade de tentativas e (sobretudo) erros. Foram precisos outros 2 mil milhões de anos para que os mais simples organismos multicelulares, com os seus sistemas metabólicos integrados e divisões de tarefas, evoluíssem. Pelo caminho, a vida teve de enfrentar grandes desafios de química básica. Gorduras tiveram de se misturar com água. Foi preciso controlar o oxigénio, um produto químico que arde e mata. Os lípidos e os açúcares, com mais energia por cada grama do que a nitroglicerina, tiveram de ser queimados com todo o cuidado para fornecerem combustível sem rebentarem com os organismos ou os queimarem vivos.
E isso não é o mais estranho de tudo. Todo o trabalho que o nosso corpo faz é alimentado por formas de vida alienígena microscópicas chamadas mitocôndrias, as quais vivem no interior das nossas células. As mitocôndrias têm um ADN próprio e a sua própria história evolutiva com 2 mil milhões de anos – tendo até salvado a vida na Terra de um fim trágico. E o grosso do trabalho feito para digerir o que comemos e transformá‑lo em algo utilizável é levado a cabo por um vasto ecossistema que reside no nosso trato gastrointestinal. Esse microbioma é composto por biliões de bactérias que se instalam ao longo de todo o sistema digestivo, a longa passagem serpenteante que liga a boca ao rabo.
Somos todos quimeras ambulantes, parte humanos e parte outras coisas, que realizam o milagre diário de transformar comida morta em pessoas vivas. Provavelmente já terá ouvido essa história, mas o mais certo é que lhe tenham extirpado a magia e a apresentado a frio num manual. Mas vale bem a pena ouvi‑la novamente. Na pior das hipóteses, é a base essencial de que precisaremos para compreender como a dieta nos afeta a saúde e como o corpo queima energia – como a vida realmente funciona.
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