
Em entrevista exclusiva ao Healthnews, o Dr. Miguel Breda, especialista em Otorrinolaringologia da Lusíadas Saúde Braga e Hospital Braga (ULSB), revela a estreita ligação entre a saúde auditiva e neurológica. O especialista alerta para os riscos da perda auditiva não tratada, especialmente em jovens, e destaca a importância da intervenção precoce na prevenção de doenças como demência e Parkinson. Miguel Breda enfatiza que cuidar da audição é essencial para a saúde cerebral e global.
Healthnews (HN) – Qual é, atualmente, o entendimento da comunidade médica sobre a relação entre a perda auditiva e o desenvolvimento de doenças neurológicas, como o Parkinson ou o declínio cognitivo? Que mecanismos podem explicar esta ligação?
Miguel Breda (MB) – Atualmente, a comunidade médica reconhece uma relação significativa entre a perda auditiva e o declínio cognitivo, incluindo doenças como Alzheimer, demência e Parkinson. Estudos epidemiológicos e neurocientíficos demonstram que a perda auditiva é um fator de risco modificável para doenças neurológicas. No caso da demência, por exemplo, a Lancet Commission on Dementia Prevention, Intervention, and Care (2020) estima que até 8% dos casos podem estar associados a perda auditiva tratável. A relação com a doença de Parkinson é também objeto de investigação, havendo evidências de que alterações no sistema auditivo central podem refletir processos neurodegenerativos comuns a esta patologia. Entre os mecanismos que explicam esta ligação, destaca-se a sobrecarga cognitiva, uma vez que a dificuldade em processar os sons exige um esforço acrescido do cérebro, desviando recursos de outras funções cognitivas, como a memória. O isolamento social e a depressão, frequentemente associados à perda auditiva, também contribuem para o agravamento do declínio cognitivo. Por outro lado, a falta de estímulo auditivo leva a uma atrofia progressiva do córtex auditivo, afetando circuitos cerebrais envolvidos na cognição e na memória. Este conjunto de fatores reforça a importância da deteção e intervenção precoces em casos de perda auditiva, de modo a minimizar o seu impacto na saúde neurológica.
HN – Estudos sugerem que a perda auditiva não tratada pode acelerar o declínio cognitivo. De que forma é que a dificuldade em ouvir impacta estruturas ou funções cerebrais, contribuindo para este risco? Fatores como isolamento social ou sobrecarga cognitiva têm um papel relevante?
MB – A perda auditiva não tratada pode ter um impacto profundo no funcionamento cerebral, acelerando processos de declínio cognitivo. A dificuldade em ouvir coloca uma carga adicional no cérebro, que precisa de investir em mais recursos para decifrar a informação sonora, em detrimento de outras funções essenciais, como a memória e a aprendizagem. Esta sobrecarga cognitiva é um mecanismo central na ligação entre audição e cognição. Além disso, a falta de estímulo auditivo leva à reorganização cerebral, resultando em atrofia das áreas auditivas e redistribuição funcional para outras regiões sensoriais, como a visão e o tato. Este fenómeno afeta a eficiência global do processamento cerebral. Outro fator relevante é o isolamento social: pessoas com perda auditiva tendem a evitar interações sociais, o que contribui para maior solidão, depressão e, consequentemente, maior risco de declínio cognitivo. Estes fatores, em conjunto, tornam a perda auditiva um fator de risco independente e significativo para o desenvolvimento de demência e outras condições neurológicas.
HN – A OMS alerta que mais de 1 milhão de jovens estão em risco de perda auditiva precoce devido à exposição excessiva ao ruído. Que implicações isto pode ter, a longo prazo, na saúde neurológica desta geração? Como é que esta realidade deve influenciar políticas de prevenção?
MB – A exposição excessiva ao ruído em jovens, especialmente através de auscultadores, concertos e ambientes urbanos, é uma preocupação crescente para a saúde pública. A perda auditiva precoce causada por esta exposição excessiva tem implicações significativas a longo prazo, tanto na saúde auditiva como na saúde neurológica desta geração. A privação auditiva crónica, mesmo que gradual, pode desencadear processos de reorganização cerebral que afetam a memória, a linguagem e outras funções cognitivas, predispondo a um declínio cognitivo prematuro. Estudos sugerem que a perda auditiva não tratada em idades jovens pode aumentar o risco de demência em fases mais tardias da vida. Para além disso, a perda auditiva precoce está associada a maior incidência de depressão, ansiedade e dificuldades académicas, comprometendo a saúde mental e o desenvolvimento social destes jovens. Esta realidade deve conduzir à adoção de políticas de prevenção robustas, incluindo regulamentação do volume máximo de dispositivos eletrónicos, campanhas de sensibilização em escolas e universidades, monitorização da poluição sonora em espaços públicos e transportes, bem como programas de rastreio auditivo regular e intervenção precoce. A proteção auditiva em ambientes profissionais ruidosos, especialmente entre jovens trabalhadores, também deve ser uma prioridade.
HN – O uso de aparelhos auditivos é apontado como uma forma de atenuar o impacto da perda auditiva na cognição. Por que razão a intervenção precoce (como a reabilitação auditiva) é decisiva para reduzir riscos como a demência?
MB – A intervenção precoce é crucial porque permite preservar a estimulação auditiva e, consequentemente, manter a integridade das vias auditivas e das áreas cerebrais responsáveis pelo processamento do som. Quanto mais tempo o cérebro passa privado de estímulo auditivo, maior é a probabilidade de ocorrer reorganização cerebral, atrofia cortical e alterações funcionais que afetam a memória e a linguagem. A utilização precoce de aparelhos auditivos ou implantes cocleares contribui para manter a conectividade neuronal e reduzir a sobrecarga cognitiva associada à dificuldade de comunicação. Além disso, a reabilitação auditiva precoce promove a participação social, prevenindo o isolamento e a depressão, fatores que também estão fortemente associados ao risco de demência. Em suma, tratar precocemente a perda auditiva não só melhora a comunicação e a qualidade de vida, como constitui uma estratégia de proteção neurológica a longo prazo.
HN – A perda auditiva é frequentemente subvalorizada, ao contrário de doenças como o Parkinson. Como podem os otorrinolaringologistas colaborar com neurologistas ou outros especialistas para integrar a avaliação auditiva em estratégias de deteção precoce de patologias neurológicas?
MB – A colaboração entre otorrinolaringologistas, neurologistas, geriatria e médicos de família é essencial para promover uma abordagem integrada à saúde neurológica e auditiva. Uma das estratégias recomendadas é a implementação de protocolos de rastreio auditivo sistemático em consultas de neurologia, geriatria e medicina interna, sobretudo em pacientes com sinais precoces de declínio cognitivo ou doença de Parkinson. A audiometria tonal e os testes de discriminação da fala podem fornecer informações valiosas sobre alterações auditivas que podem coexistir com patologias neurológicas. Adicionalmente, é fundamental sensibilizar neurologistas e outros especialistas para a importância da saúde auditiva, reforçando que a perda auditiva não é um mero efeito do envelhecimento, mas sim um fator de risco modificável. A formação contínua dos profissionais de saúde nesta área, aliada à criação de linhas de investigação conjuntas que explorem a relação entre audição e cognição, permite melhorar a deteção precoce e promover intervenções preventivas mais eficazes.
HN – No âmbito do Dia Mundial da Audição, que mensagem considera crucial transmitir à população sobre a importância de encarar a saúde auditiva não apenas como uma questão de audição, mas como um pilar da saúde global, incluindo cerebral?
MB – A mensagem fundamental a transmitir é que cuidar da audição é cuidar do cérebro e da saúde global. Ouvir bem é viver melhor. A perda auditiva não é uma consequência inevitável do envelhecimento e pode ser tratada em qualquer idade, com benefícios significativos para a saúde cognitiva, mental e social. A população deve compreender que a audição é essencial para manter a memória ativa, facilitar a comunicação e prevenir o isolamento social. Jovens e adultos devem proteger a sua audição desde cedo, ao reduzir a exposição a ruído excessivo e realizando rastreios auditivos regulares. Tratar a perda auditiva precocemente não só melhora a qualidade de vida, como protege o cérebro do declínio cognitivo e de doenças como a demência. A saúde auditiva é, portanto, um pilar fundamental da saúde pública e deve ser encarada com a mesma seriedade de outras condições crónicas.
Crédito da imagem: João Dias ICVS/EM
Entrevista MMM
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