![Demências: “Os desenvolvimentos da IA permitirão conhecer muito melhor as trajetórias dos sintomas e das doenças”. Neurologistas Belina Nunes e Álvaro Machado](/assets/img/blank.png)
A perda do “eu” é um dos principais receios associados à demência. Seremos, então, náufragos em nós mesmos e da maravilha que reside na singularidade de cada cérebro. Porque é dele que iremos falar, gostaria que nos apresentassem este órgão e os porquês associados ao seu definhar natural.
É um lugar-comum a afirmação de que cada um de nós é único. Isso deve-se essencialmente à diversidade dos nossos cérebros, os quais a partir da estrutura em tudo idêntica, de células, químicos e ligações nervosas, irá construindo desde cedo uma personalidade distinta, a nossa, única. Somos o resultado da genética herdada e de toda a miríade incontável de experiências e perceções que chegam aos nossos cérebros. E por isso a perda do Eu com a demência é temida, significando que perdemos a nossa representação, única, no mundo.
A abrirem o vosso livro sublinham que este não traz “soluções instantâneas, qual pilula mágica capaz de transformar um cérebro com as suas redes neuronais desagregadas e em morte acelerada num cérebro saudável”. O que nos propõe este vosso livro?
Acima de tudo pretendemos dar o nosso contributo para alargar o conhecimento acerca das demências com o principal foco na doença de Alzheimer, causa principal de demência. Tentamos neste livro trazer os avanços recentes da investigação quer em termos da classificação da doença de Alzheimer, os meios de diagnóstico, os fatores de risco e de prevenção bem como os tratamentos atuais e que se esperam para breve. Cremos por isso que o livro poderá ter utilidade não apenas para o público em geral, mas também para os profissionais de saúde envolvidos no acompanhamento destes doentes.
Em breves palavras o que se entende por demência e porque não é esta, per si, sinónimo de doença de Alzheimer? Como se classificam as demências e quais as mais comuns?
Demência em termos muito simples significa a perda das capacidades cognitivas e funcionais (dependentes da cognição) adquiridas. Exclui-se assim do termo demência, os défices de aprendizagem, em que não são atingidas as capacidades cognitivas plenas. Pese embora o facto de um indivíduo com défice de aprendizagem, o designado atraso de desenvolvimento, poder perder mais tarde as capacidades cognitivas que adquiriu, e, portanto, vir a sofrer de demência.
A doença de Alzheimer é a causa principal de demência, a mais frequente em praticamente todas as populações mundiais, e em particular nos grupos mais idosos da população.
A doença de Alzheimer é a causa principal de demência, a mais frequente em praticamente todas as populações mundiais, e em particular nos grupos mais idosos da população. Mas não é a única causa. Outra causa comum é a demência vascular, causada por enfartes cerebrais únicos ou múltiplos e que se associam com frequência às alterações patológicas especificas da doença de Alzheimer. Existem outras causas de demência como a demência com corpos de Lewy, a degenerescência fronto-temporal, a demência associada á doença de Parkinson, entres outras.
No livro focamos a atenção principalmente na doença de Alzheimer visto ser a mais frequente e a que tem apresentado maiores avanços no diagnóstico e no tratamento nos tempos recentes e que por isso abre uma janela para a prevenção, diagnóstico precoce e, esperamos, para um tratamento mais eficaz.
![Neurologista Belina Nunes Neurologista Belina Nunes](/assets/img/blank.png)
O nosso cérebro “mirra” com a idade, assim escrevem no livro. Que sinais nos alertam para o facto de este minguar não ser natural, antes fruto de demência?
Esta é uma questão muito importante quer para o próprio, para a família e médicos. A regra mais simples para distinguir entre o envelhecimento normal e o patológico, significando este a possibilidade de existir um processo demencial é a implicação funcional das queixas do doente. Em qualquer idade teremos falhas de memória, uma vez ou outra. Quando, independentemente da idade, as falhas de memória implicam perda da capacidade de gerir o dia a dia ou a atividade profissional aconselhamos a procurar orientação médica.
Quando, independentemente da idade, as falhas de memória implicam perda da capacidade de gerir o dia-a-dia ou a atividade profissional aconselhamos a procurar orientação médica.
Uma questão importante e frequente na prática clínica diz respeito aos doentes deprimidos em que as falhas de memória são mais comuns. No entanto é preciso distinguir entre falhas de memória que comprometem a atividade diária de modo significativo e que poderão já não representar depressão, mas sim um processo de declínio cognitivo. Isto é principalmente importante nas demências com início em idades mais jovens (diz-se início precoce abaixo dos 65 anos) nos quais é ainda mais crucial o diagnóstico o mais cedo possível de modo a orientar melhor o tratamento e a vida futura.
Concentremo-nos na doença de Alzheimer. Não obstante o desconhecimento do mecanismo exato por detrás desta doença, referem no vosso livro que é importante saber identificar os fatores de risco que lhe são subjacentes. Querem identificar estes fatores? Neste contexto, há fatores de risco sobre os quais temos controlo?
São vários os fatores de risco já identificados. Alguns não são suscetíveis de intervenção, como a idade, o género feminino ou alguns fatores genéticos. A maioria dos fatores restantes são modificáveis, pelo que poderemos ter controlo sobre os mesmos, ainda que, em alguns casos, necessariamente limitado. São eles: a escolaridade, a perda de audição, a hipertensão arterial, a diabetes, a obesidade, o sedentarismo, o uso de tabaco, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, a depressão, os traumatismos cranianos, a poluição atmosférica, as perturbações do sono e a doença periodontal.
![quando a memória falha quando a memória falha](/assets/img/blank.png)
Como forma de complementar a pergunta anterior, como podemos manter um cérebro saudável ao envelhecermos?
Podemos contribuir para a saúde do cérebro mantendo-nos cognitivamente ativos, praticando exercício físico regular de média-alta intensidade, evitando tabaco e bebidas alcoólicas, promovendo refeições equilibradas, respeitando o descanso noturno, evitando ambientes poluídos e tendo consultas regulares, de modo a tratarem-se adequadamente doenças como a diabetes ou a hipertensão.
Em particular e no que concerne à alimentação, quais as dietas com mais benefícios para um bom desempenho cognitivo?
Das dietas que têm provado ser cognitivamente mais benéficas, aquela que nos é mais familiar e, portanto, menos impacto terá a sua adoção plena, é a dieta mediterrânica, rica em peixe, vegetais, fruta e frutos secos, sementes e azeite, moderada em produtos lácteos, pão e vinho tinto e pobre em carnes, sobretudo vermelhas.
Podemos contribuir para a saúde do cérebro mantendo-nos cognitivamente ativos, praticando exercício físico regular de média-alta intensidade, evitando tabaco e bebidas alcoólicas.
Em Portugal contamos com boas ou razoáveis políticas de saúde dirigidas à prevenção das demências? Na realidade, assistimos nos países ocidentais a bons resultados no impacto individual e global da doença de Alzheimer.
Não existem verdadeiras políticas de saúde para prevenção específica das demências. Há fatores diversos que têm contribuído para um declínio, em Portugal e na maioria dos países ocidentais, da incidência, ou seja, do número de novos doentes por ano, da doença de Alzheimer. A saber, entre estes fatores, temos o enorme avanço na escolarização dos portugueses nas últimas décadas, a diminuição muito significativa do consumo de tabaco, o tratamento de fatores de risco partilhados com as doenças cérebro e cardiovasculares [hipertensão, diabetes, obesidade] e uma maior consciencialização do papel da alimentação equilibrada e da prática de exercício físico.
![Neurologista Álvaro Machado. Neurologista Álvaro Machado.](/assets/img/blank.png)
O vosso livro também aborda a questão da relação dos familiares próximos do doente de Alzheimer. Esta é uma questão sensível. Não raro, assistimos à tentativa de ocultação ou de minimização da doença. Qual é a atitude mais correta a adotar face ao doente com Alzheimer?
Sendo uma questão sensível, como diz, deve sempre privilegiar-se a autonomia do indivíduo, na doença e antes desta. Mas há fatores que modulam o comportamento a adotar: se existiu manifestação prévia do doente como querendo ou não saber, se é possível avaliar o risco (de depressão ou comportamentos autolesivos) da transmissão clara do diagnóstico, se há dano patrimonial previsível com a ocultação, se há ensaios clínicos em curso que possam interessar ao doente. A regra deve ser que o doente tem direito a saber e, apenas excecionalmente, pode justificar-se que a comunicação seja adiada ou a informação seja transmitida de forma mitigada.
A fecharem o vosso livro escrevem que “os próximos tempos irão trazer, estamos certos, avanços incríveis (…) relacionados com a possibilidade de diagnóstico precoce”. Querem, sucintamente, dar-nos notícia de alguns destes “avanços incríveis”?
Já não estamos longe de ser possível, por exemplo, de forma confiável, identificar a patologia da doença de Alzheimer, em doentes assintomáticos ou paucissintomáticos, com um simples teste sanguíneo. Também os desenvolvimentos da IA permitirão, com o tratamento maciço de dados de múltiplas proveniências, conhecer muito melhor as diversas trajetórias dos sintomas e das doenças. Chegaremos ao momento em que será provavelmente a IA a determinar qual a melhor molécula a ser testada na doença. Já esteve tudo mais longe.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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