
A premissa passa por acompanhar os doentes mentais graves no seu ambiente, possibilitando que não tenham de se deslocar a Coimbra, com consultas nas instalações do centro de saúde de Figueiró dos Vinhos e equipas multidisciplinares de Treino Assertivo Comunitário, responsáveis pelo apoio e medicação de 51 pacientes e contactos com os seus familiares, instituições de solidariedade social, mas também empresas e autarquias. Um projeto que representa um verdadeiro "hospital para todos", segundo o presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
José Machadeiro, enfermeiro especializado em saúde mental com 30 anos de profissão, guia a reportagem da agência Lusa na visita que faz a alguns dos 20 doentes que acompanha, duas vezes por semana, às terças e sextas-feiras: primeira paragem na Cerci Penela, a 30 quilómetros de Figueiró dos Vinhos, já no distrito de Coimbra, onde o espera António M. , 20 e poucos anos, que sofre de problemas mentais e tem um historial de consumo abusivo de álcool.
O quadro clínico do jovem, já de si complicado, é agravado pela situação familiar, mãe alcoólica e doente de Alzheimer e pai preso por homicídio. António foi encontrado em casa "completamente só e desnutrido", foi referenciado à Unidade de Saúde Mental Comunitária por uma tia e uma prima, esteve internado em Coimbra e, agora, é acompanhado na Cerci Penela onde passa os dias, retornando a casa, nos arredores de Figueiró dos Vinhos, todas as noites, na companhia da mãe, também utente de um centro de dia.
António M. encontra-se com José Machadeiro e a assistente social Lisete Lourenço numa sala da Cerci, acompanhado de responsáveis da instituição de apoio a cidadãos com deficiência mental.
José Machadeiro quer saber como andam as tomas de medicação e especialmente, os banhos acordados com o paciente "dia sim, dia não", mas António M., cabeça baixa e sorriso aberto, replica que o esquentador "só dá para cinco minutos". Lá assume que vai cumprir o acordo feito com o enfermeiro, porque não quer voltar a ser internado: já fez amigos em Penela, onde ocupa o tempo na carpintaria e em atividades relacionadas com a reciclagem.
O enfermeiro pergunta ainda como está António M. a lidar com a "pinguita". O rapaz responde que durante a semana não bebeu, um objetivo aplaudido pelos profissionais que recordam que o doente "chegava a andar 10 quilómetros a pé para ir a um café comprar álcool e bebia aguardente logo de manhã".
"Estás de parabéns", diz o enfermeiro. "Sinto-me bem, com mais apoio, mais feliz", responde António M., que quando foi referenciado "não sabia autogerir a sua vida" e vai continuar a necessitar da supervisão da equipa.
Na despedida, o enfermeiro José lembra a António M. que pode ligar-lhe para o telemóvel, quando quiser. "Sim, para matar saudades", brinca o rapaz.
Quem assistisse à reunião preparatória dessa manhã - onde a equipa de dois psiquiatras, três enfermeiros especializados em saúde mental, duas assistentes sociais e uma psicóloga analisa os casos do dia, avalia a progressão dos doentes, pondera tratamentos e também a necessidade de internamento de um paciente que se recusa a ser medicado - não teria percebido, de imediato, a proximidade que José Machadeiro tem para com os doentes que acompanha.
"Eles são a minha família alargada, é preciso muita sensibilidade e empatia para lidar com eles, mas é recompensador. Têm o meu número de telemóvel pessoal, mas só ligam mesmo quando precisam, são muito respeitadores", argumentou o enfermeiro.
Na última visita que fez, José foi a casa de 12 doentes num único dia, cerca de 350 quilómetros cumpridos, maioritariamente em estradas de montanha, vias nacionais e municipais que ligam povoações num interior quase esquecido, visitas de acompanhamento, a uns, outros para cumprir a medicação injetável a que estão sujeitos.
Hoje, mais 22 quilómetros até uma povoação entre Avelar e Ansião, já em Leiria, onde mora outros dos doentes acompanhados por José, com um historial de esquizofrenia e consumo de álcool.
"Anda muito compensado, agora, que voltou a ser medicado com regularidade", frisa Lisete Lourenço. No passado, o homem de 49 anos chegou a "partir um café todo", foi sujeito a mais de um mês de internamento compulsivo para tratamento, por ordem judicial, mas hoje recebe a equipa com um sorriso que não larga durante a visita.
Fala da família - mulher e filha que com ele vivem, numa moradia bem cuidada - do emprego na área da construção que entretanto arranjou e mantém, mas ao qual faltou hoje, por ser "dia da injeção".
"Bebidas, zero, nada", garante, recebendo de imediato os parabéns da equipa. "Agora estou bem, sim senhor, estou muito contente. Fiz um acordo com eles e vou cumprir, é para levar a fundo", afirma à Lusa, secundado por José Machadeiro que lembra que no âmbito do Treino Assertivo Comunitário, a equipa "não pode obrigar os doentes a nada".
Uma dezena de quilómetros depois, numa casa florida no fim de um estradão de terra, às portas de Ansião, vive Luís, um caso que preocupa sobremaneira a equipa, pela condição "degradante" do sótão que o doente mental, 35 anos e um longo historial de toxicodependência, ocupa.
Luís vive com uma tia, que lhe dá guarida no sótão inacabado, paredes de tijolo, chão de cimento e telhas à mostra, uma cama e alguns móveis, espaço que limpou com afinco antes da chegada dos profissionais do CHUC.
"Está um luxo", espanta-se Lisete Lourenço, antes de sublinhar que o jovem "precisa de conforto e cuidados" e tem vaga para ser acolhido numa instituição da Figueira da Foz, que acolhe jovens toxicodependentes, "mas não quer ir".
"Gosto de estar aqui, ao pé da minha tia", resume o jovem, embora proibido de aceder ao resto da casa, à custa de "anos de tropelias" a que submeteu os familiares, derivado, nomeadamente, da doença mental de que padece agravada pelo consumo de drogas.
"Agora não tenho medo, mas já tive. Ele não olha por aquilo que tem mas também não tem ninguém, tem-me a mim", refere a tia, que por mais de uma vez perdoou o sobrinho, órfão de pai.
"Ele não aceitava a doença. Quando anda equilibrado é uma joia de rapaz, mas quando não toma a medicação é conflituoso. Se não fossem eles? São os meus anjos da guarda", argumenta, referindo-se à equipa da Unidade de Saúde Mental Comunitária.
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