HealthNews (HN) – O que espera do atual executivo e, sobretudo, do Ministério da Saúde relativamente às políticas de saúde oral?

José Frias Bulhosa (JFB) – Há alguns aspetos que considero que são prioritários. Um que é essencial é a criação de uma carreira de medicina dentária no SNS, carreira essa que permita uma adequada valorização da medicina dentária no setor público e para o próprio desenvolvimento do setor público através do desenvolvimento de serviços de saúde oral no SNS. Isto claramente que vai reduzir a rotatividade dos profissionais, facultando até a fixação em alguns locais tradicionalmente mais distantes, mais difíceis de contratar esses profissionais. Desde 1979, continuamos a não ter a valorização devida da medicina dentária por parte do setor público, que é um setor que até é responsável por um elevado número de formandos nessa área. Não é por falta de recursos que isso não é possível.

Aquilo que espero também do atual executivo é continuar a implementar e otimizar a oferta disponível de recursos de saúde oral no SNS, aumentando o acesso dos portugueses a cuidados básicos, mas também essenciais para a saúde geral dos indivíduos. Há gabinetes que neste momento estão instalados, mas ainda estão subotimizados. Há gabinetes que não têm equipas, há gabinetes que têm equipas que se calhar conseguimos rentabilizar melhor. Se houver aqui vontade política para isso, eu creio que estes dois aspetos seriam muito importantes, vindos da atual equipa governamental.

HN – Num artigo de opinião publicado no Jornal Público, em dezembro de 2023, refere: “O Dr. Manuel Pizarro, atual ministro da Saúde, foi somente o 19.º ministro responsável pela pasta da Saúde que não se mostrou competente na resolução da adequada integração dos médicos dentistas no SNS”. O que é que tem faltado nos sucessivos governos? Um médico dentista como ministro da Saúde? Como se explica o desleixo com a saúde oral que persiste em Portugal?

JFB – Atualmente já não é o Dr. Manuel Pizarro, estamos neste momento com o 20.º ministro responsável – ministra neste caso – pela pasta da Saúde e, na realidade, eu não vejo que haja qualquer necessidade de que haja um médico dentista como ministro, para que o SNS valorize os profissionais que já tem nos seus quadros ou contratados no SNS. Para a medicina dentária, pela sua especificidade, seja na sua dimensão técnica e científica, seja até pelo perfil de formação do médico dentista nas competências médicas e cirúrgicas durante a sua formação e, depois, durante toda a sua atividade, na realidade o que tem faltado é estabelecer como interlocutores os médicos dentistas em todas as políticas de saúde oral. E quando eu falo em todas as políticas de saúde oral, é em toda a sua extensão e aplicação. Nós temos tido, desde a criação do SNS (se calhar até anteriormente), um conjunto de vontades e decisões políticas em que os principais interlocutores não são ouvidos, não são chamados, não são considerados. Isso se calhar é que é essencial. Isto se calhar pode até identificar o tal desleixo que aqui perguntou com a saúde oral em Portugal. Temos políticas de saúde oral que, depois, ficam um pouco aquém do ponto de vista técnico e científico daquilo que é uma medicina dentária moderna, e isso tem resultado em sucessivos relatórios internacionais a reportar essa pior condição dos portugueses, como será o exemplo do último relatório da OCDE/European Observatory on Health Systems and Policies (2023).

HN – A literacia em saúde da população em geral também é insuficiente, agravando o panorama da saúde oral em Portugal?

JFB – Eu diria que bastante. Por vezes a comunicação que é feita nos principais canais de divulgação, na minha opinião, não é adequada, ou então tem um enviesamento para um determinado tipo de setor, para um determinado tipo de tratamentos. Por vezes há quase uma indução artificial das necessidades de saúde oral, que não são as necessidades básicas e essenciais. Isso é um dos aspetos e pode levar até a uma deseducação da população. Segundo aspeto: as políticas têm que ser estabelecidas com base na intersetorialidade dos programas, incluindo as escolas, a segurança social, o desporto, o trabalho e outras áreas. Não vale a pena termos um programa que vai promover a escovagem de dentes na escola sem demonstrarmos porque é que a escovagem deve ser na escola, quando é que deve ser feita, em que condições é que deve ser feita. Para algumas crianças e jovens, pode ser a única oportunidade que têm de aprender sobre saúde oral e ter os cuidados básicos.

A medicina dentária modernizou-se, a cárie dentária já não é um buraquinho negro. Na realidade, a identificação das lesões de cárie dentária são manchas brancas, já não temos que estar à espera, como eu costumo dizer, do buraquinho negro para se tratar esse problema. Temos que atuar muito mais precocemente. Os idosos muitas vezes nem sabem que têm direito ao cheque-dentista. Portanto, temos que arranjar outras estratégias de fazer chegar à população esta informação, e aqui a comunicação social e a própria área da saúde têm muita responsabilidade. Um outro aspeto que gostava de trazer aqui é: criar e desenvolver programas de literacia focados nas novas tecnologias. Isto é importante para nós alcançarmos nova população e um melhor acesso, assentes, naturalmente, naquela atualização de conhecimentos que eu acabei de referir: uma atualização de uma medicina dentária minimamente invasiva, moderna e mais digital. E a atualização que a medicina dentária moderna deve oferecer às vezes não são implantes, branqueamentos, botox, etc. Temos coisas muito mais simples e económicas para a saúde geral de um indivíduo.

HN – Foi designado Coordenador Nacional da Saúde Oral pela Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS). O Conselho Técnico que dirige foi constituído para operacionalizar as recomendações do “Relatório Saúde Oral em Portugal”. É um grupo multidisciplinar, com experiência em zonas geográficas distintas. Como estão organizados, que objetivos traçaram e o que é que está a ser feito desde fevereiro passado?

JFB – Nós estamos, efetivamente, nomeados há pouco tempo, num período de mudança governamental e até da própria Direção Executiva, e isto, naturalmente, pode trazer alguma indefinição, por vezes, às políticas e aos rumos que foram traçados. Mas, até ao momento, toda a informação que temos, eu e a restante Coordenação, é para continuar a implementar o Relatório da Saúde Oral 2.0 nas suas recomendações e naquilo para o qual estamos nomeados. E, portanto, esse é um dos objetivos principais e que temos vindo a cumprir. Por outro lado, já temos várias reuniões da própria coordenação e, também, com as 39 ULS. Já tivemos duas reuniões gerais, a primeira presencial, a segunda à distância, para nos darmos a conhecer e para nos disponibilizarmos junto das 39 ULS para a criação e desenvolvimento dos serviços de saúde oral. Nesse sentido, já desenvolvemos e foi aprovado um manual de orientação para as ULS saberem como podem criar ou dinamizar os serviços de saúde oral. Algumas ULS poderão estar numa fase de maior desenvolvimento, de melhor organização; haverá outras onde a novidade da própria instituição ULS poderá criar alguma dificuldade, alguma complicação. De repente, há aqui áreas novas, há organização nova, há estruturas que têm que se articular de uma forma diferente daquilo que faziam no passado, e, portanto, o nosso objetivo é sermos um parceiro dessas ULS, num patamar de coordenação dessa direção dos serviços.

Ao final de um mês e qualquer coisa de nomeação tínhamos um governo novo, em abril passado o pedido, que foi aceite, de demissão do diretor executivo e da sua equipa, portanto estamos numa fase, também, de definir as políticas, se continuam ou se serão alteradas e em que dimensão. Acreditamos que esse relatório é um relatório transversal da reforma que era necessária e urgente há muitos anos. Resulta de um grupo de trabalho em que estiveram representadas as várias profissões e houve um consenso, consenso esse que agora devia até ser transversal às orientações políticas, porque é uma necessidade dos portugueses. Nós, no último relatório da OCDE, estamos identificados como o terceiro país com pior acesso a cuidados de saúde oral, e a cuidados de uma forma integrada, seja no setor público, privado ou social, portanto, a cuidados generalizados da população portuguesa à saúde oral. Temos que melhorar esse indicador, até para uma imagem que queremos de um país moderno e desenvolvido na área da saúde.

HN – Essas metas são exequíveis e suficientemente ambiciosas?

JFB – As metas elencadas estão identificadas e desenvolvidas no tal manual orientador. Todos os atores que trabalham na saúde pública oral devem ter conhecimento e devem ler este manual, que é um manual simples. Estamos a falar de algo que tem 16 páginas, tem uns quadros orientadores do que deve ser o equipamento nos gabinetes, como é que deve ser prevista a gestão, como é que deve ser feita a monitorização, etc. E, portanto, reforço aqui a importância deste manual.

Nós, neste momento, temos identificado um ponto focal em cada ULS, que está a ser a ponte entre a Coordenação Nacional da Saúde Oral e cada uma das ULS/conselhos de administração das ULS. Esta proximidade, se calhar, facilita muito toda a comunicação em relação àquilo que eram as metas que estavam estabelecidas.

Aquilo que também desejamos e que já estamos a fazer é a monitorização da atividade, inclusivamente da parte comunitária. Vou-lhe dar um exemplo. Muito provavelmente, o programa que começou nas escolas em setembro/outubro do ano passado vai terminar agora em junho. Se nós tivermos escolas em que isso não vai acontecer, ou porque não há recursos, ou porque não há condições, ou porque não há outros fatores, estamos a ter diferenças na execução deste programa. E, portanto, este programa tem que ser monitorizado de forma que não cheguemos a novembro e digamos assim: foram emitidos x cheques-dentista, foram utilizados y cheques-dentista. Primeiro, aquilo que nós queremos é que aquilo que foi emitido e utilizado seja um valor muito próximo, e não nas dimensões que temos e que foram identificadas pelo relatório final. Segundo, tentar perceber porque é que não foram utilizados ou porque é que as escolas não tiveram uma cobertura adequada, porque é que umas fazem a escovagem no âmbito escolar e outras não – a escova às vezes até é disponibilizada na escola, mas depois mandam aquilo para casa, e não é isso que diz o programa. E, portanto, que estratégias é que depois cada uma das unidades de saúde pública que é gestora do programa tem para ir além daquilo que geralmente vemos nos relatórios finais do ano, e que ficamos sempre muito incomodados com aqueles números – e esses números repetem-se ano após ano.

Queremos otimizar isso e, portanto, tem de haver uma monitorização da parte comunitária, mas também da parte clínica, quer dos cuidados de saúde primários, quer dos cuidados hospitalares. Se nós temos equipas, se temos equipamento e se estão todas as coisas a funcionar, qual é o número de consultas que fazemos, qual é a qualidade do serviço que fazemos, quantos utentes é que conseguimos tratar? E termos a noção de que, nos cuidados de saúde primários e nos cuidados hospitalares, às vezes temos utentes que podem precisar de 20 consultas para remediar uma situação. Isto tem que ser valorizado e tem que ser padronizado, que também foi uma coisa que nós fizemos. Nós descobrimos locais que faziam consultas de x em x tempo, outros faziam consultas de y em y tempo. Tem que haver aqui um padrão. Há sítios em que se pode fazer este ou aquele tratamento e outros em que não será possível. Quer dizer, alguém tem que começar a olhar para isto e dizer assim: não, então nós não estamos a dar tudo igual aos portugueses. Isto tem que ser devidamente monitorizado e melhorado. Há condições para isso e isso vai-nos aumentar a eficiência dos serviços. Na Coordenação Nacional de Saúde Oral estamos neste preciso momento a trabalhar afincadamente em desenvolver um conjunto de indicadores de acesso, produção e de qualidade precisamente para monitorizar todo este processo a nível comunitário e clínico, seja nos cuidados de saúde primários, seja nos cuidados hospitalares. E esta monitorização, eventualmente até futura contratualização, de carteiras de serviços ou carteiras adicionais de serviços, vai permitir que os serviços de saúde oral tenham objetivos e que saibam que alguém está a monitorizar e a avaliar esses objetivos. Isso é bom para a qualidade e prestígio do SNS.

Nós temos números de produção que nos preocupam muito; temos dezenas ou centenas de horas de higienistas orais ou de médicos de família a tratar assuntos meramente administrativos ou burocráticos. Isto não pode continuar a acontecer. Temos que otimizar esses recursos e tentar perceber porque é que isso acontecia e ninguém reparava. Nós temos algumas queixas de equipamentos que estão com pequenas avarias há um, dois, três anos. Tínhamos que questionar os ACES sobre o que é que foi feito, e neste momento vamos passar essa questão para as ULS. De uma forma geral, eu diria que ainda há diferenças significativas de ARS para ARS, até pelo número de gabinetes, pela qualidade dos equipamentos que temos nesses gabinetes e, depois, pela forma como esses gabinetes vão tendo também algo de medidas de prevenção para que não haja avarias, não falte material e sejam rentabilizadas as agendas dos profissionais.

As metas do relatório, na minha opinião, são exequíveis se as ULS adotarem um ritmo e uma eficiência que a saúde oral estava a ter em algumas ARS. Como eu acabei de dizer, não era igual em todas as ARS. Este paradigma também tem que mudar. E aqui também chamar a atenção que é essencial que os conselhos de administração das 39 ULS percebam a importância de estes serviços de saúde oral serem disponibilizados e serem efetivos no controlo da doença geral – nem é só da doença oral. Um doente diabético que não tenha o seu estado de saúde oral controlado vai-nos custar mais, vai ter mais dificuldades em controlar essa doença, pode ser alvo de mais amputações, de mais medicação, de mais crises de saúde, crises agudas e até situações crónicas, pelo facto de não ter a saúde oral controlada. Nós podemos correr o risco de haver um transplante que falha porque houve uma infeção oral que não foi debelada, controlada e eliminada a tempo. Isso fica-nos muito mais caro em termos de saúde do que fazermos a prevenção, mesmo que seja uma prevenção secundária.

HN – Quais são os maiores desafios à implementação do plano até 2026? E como é que os poderemos ultrapassar?

JFB – Primeiro aspeto que acho que é essencial, e como lhe disse atrás há aqui um amplo acordo de todos os parceiros que estiveram no grupo de trabalho deste relatório, é criar políticas a longo prazo e com orientações estáveis ao longo do tempo, e não fazer políticas para o próximo mês ou para o próximo ano. Tem que haver alguma estabilidade neste processo, até para os resultados serem mais sustentáveis. Nós tivemos políticas, desde 2009, com o Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral, que foram sendo desenvolvidas, mas se calhar não tivemos uma avaliação periódica daquilo que se desejava ou, pelo menos, essa avaliação não foi pública.

Depois, outra dimensão importante para estes desafios é a modernização. Nós temos que modernizar os serviços, ter serviços assentes numa intervenção minimamente invasiva, mais eficientes, estarem de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável identificados pela ONU, e pode até ser a saúde oral que traz mais destes objetivos à organização da saúde em Portugal. Além disso, focarmo-nos muito na articulação de serviços. Eu não posso ter eternamente o doente que está a ser acompanhado, por exemplo, no hospital a quem seja solicitado deslocar-se ao médico de família para ter uma nova referenciação. Primeiro, estamos a sobrecarregar uma especialidade com bastante trabalho, que é a Medicina Geral e Familiar. As higienistas que trabalham no gabinete onde eu trabalho, se precisarem de encaminhar um utente para a minha consulta, precisam da mediação do médico de família. Não tem lógica nenhuma. E o mesmo se passa em sentido contrário. E, portanto, esta fluidez que nós precisamos dos serviços é no sentido de facilitar o acesso, e o mesmo se passa noutros setores. No cheque-dentista tem que ir aqui, acolá, além para receber e é só nestas condições e é naqueles dias. Quer dizer, isto tem que ser uma coisa mais dinâmica. Aliás, houve uma portaria, que saiu salvo erro em inícios de dezembro, que falava na desmaterialização deste cheque-dentista e que todos os beneficiários podiam receber um conjunto de códigos para os exames, para as análises, para as receitas, etc. Portanto, escusamos de estar aqui a gastar papel. Volto outra vez aos 17 objetivos sustentáveis para o planeta. E, portanto, naturalmente que esta articulação de serviços é essencial. Mesmo que haja um responsável mais focado nos cuidados de saúde primários ou nos cuidados de saúde hospitalares, de vez em quando têm que se encontrar, têm que se reunir. Aliás, identificámos para os serviços de saúde oral a criação de um conselho técnico onde todas as profissões estivessem representadas precisamente para haver esta articulação.

Como quarto ponto colocava aqui o aumento do acesso aos cuidados de saúde oral no SNS. Isto é essencial para a população. Há ainda um grupo muito grande que nem sequer sabe que há já cuidados de saúde oral na sua ULS. Neste momento, praticamente todas as ULS têm um gabinete, e também desejamos otimizar a referenciação quando não têm estomatologia ou cirurgia maxilofacial nos seus hospitais.

Por último, esclarecer melhor o cidadão para que ele próprio possa gerir a sua saúde oral. Eu acho isto essencial. Às vezes são pequenas mensagens, por exemplo, numa sala de espera, em alguns ecrãs de algumas autarquias. Pequenas informações do género: o cheque-dentista só pode ser emitido até ao dia 31 de agosto. São informações muito simples em que muitas das vezes podemos facilitar aquilo que há bocado falávamos da literacia. Há locais em que a medicina dentária existe na unidade de saúde, a higiene oral existe na unidade de saúde e há população que se calhar consulta n vezes o seu médico de família, o seu enfermeiro de família, utiliza os serviços daquela unidade de saúde e nem desconfia que existe saúde oral. Temos que, também, informar. Este seria, no meu entender, um dos maiores desafios para o plano que está desenhado até 2026: focarmo-nos neste maior esclarecimento do cidadão.

Entrevista de Rita Antunes

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