HealthNews (HN) – A anemia é, infelizmente, uma alteração comum. Inclusivamente, afeta praticamente todos os doentes em hemodiálise. Quais os mecanismos subjacentes à anemia na doença renal crónica e de que forma perturba estes doentes?
Jorge Malheiro – Sim, a anemia é muito frequente na doença renal crónica. Aliás, é frequente desde formas razoavelmente precoces da doença renal crónica. A doença renal crónica deve ser graduada em cinco estádios de gravidade, sendo o grau 1 a forma mais ligeira e o grau 5 a forma mais grave. Quando me pergunta sobre os doentes em hemodiálise, por exemplo, esses estão, por definição, no estádio 5 (designamos estádio 5 D porque estão em diálise). Mas a verdade é que a anemia surge também em alguns doentes em estádio 3, já é bastante prevalente (podemos chegar perto dos 50%) em estádio 4 e, de facto, em estádio 5 é quase universal. Claro que temos que ter aqui a noção de que os cutoffs da definição da anemia são razoavelmente elevados: são cerca de 13 g/dl para os homens e 12 g/dl para as mulheres, o que significa que, de facto, uma elevada percentagem da população com doença renal crónica tem anemia, o que não é o mesmo que dizer que toda essa população tem indicação terapêutica específica de correção do valor da hemoglobina. São coisas diferentes.
O mecanismo principal relaciona-se com a perda da função renal. À medida que o rim deteriora, uma das ações intrínsecas ao rim, que é a produção da eritropoietina – que é feita por células presentes na medula renal, que é a zona de maior profundidade do rim –, começa a decrescer. Essa hormona tem um papel essencial, é como se fosse o combustível para que a fábrica da hemoglobina, que é a medula óssea, continue a trabalhar. Se começa a haver falta de combustível, que neste caso significa falta de eritropoietina, obviamente que a fábrica trabalha cada vez mais devagar, ao ponto de o valor da hemoglobina não ser mantido em valores de normalidade, os tais 12/13, ou atingir valores francamente baixos, abaixo de 10, por exemplo.
O mecanismo principal é esse. Naturalmente que existem alguns mecanismos acessórios que também estão associados à anemia, mas aí vai depender da fase e do tipo de doença renal crónica que o doente tem. Por exemplo, no doente renal crónico pré-diálise, nós sabemos que aquele com diabetes tem anemia mais precocemente que os restantes. Por outro lado, um doente renal poliquístico – uma doença genética que é uma causa muito importante de doença renal terminal (cerca de 7% da população com doença renal terminal tem esta doença que é hereditária) – tem anemia muito mais tardiamente; muitas vezes só na fase pré-diálise é que têm uma anemia mais significativa.
Por isso, há mecanismos distintos, o que faz com que em doentes no mesmo grau de função a probabilidade de ter anemia seja também diferente. Quando falamos de doentes em diálise, obviamente, temos que considerar que o doente só tem uma função renal residual; assim, a falta de eritropoietina é inequívoca, mas, adicionalmente, há outros fatores que contribuem para a anemia: o fator inflamatório, que é frequente em doentes em diálise, particularmente em hemodiálise, por vários fatores, pela interação com o filtro da máquina de diálise, pela presença nalguns doentes de um cateter, que é um dispositivo exógeno que condiciona uma resposta inflamatória que é contínua, e essa resposta inflamatória persistente condiciona também a redução da produção da hemoglobina. Um outro fator muito importante no doente em hemodiálise são as perdas que acontecem no próprio circuito extracorporal. Repare que os doentes em hemodiálise são tratados através de um circuito extracorporal em que o sangue sai do corpo do doente, vai por um conjunto de linhas para passar por um filtro, para depois ser devolvido. Nesse trajeto fora do corpo do doente, naturalmente há perdas que, não sendo muito significativas em cada sessão de diálise, se pensarmos na quantidade de sessões que o doente faz, não são assim tão inocentes, não são assim tão excepcionais e acabam por contribuir também.
Por último, também existem doenças que se associam à doença renal crónica. Novamente, são mais frequentes nos doentes em diálise. É o caso do hiperparatiroidismo, onde há um excesso de uma hormona chamada paratormona e que está provado que também deprime a medula na produção da eritropoietina, e é mais um fator contribuidor para a anemia. Além disto tudo, que tem mais a ver com depressores da eritropoiese medular, temos que pensar que existem fatores que não envolvem a “fábrica” de hemoglobina mas que atingem vitaminas e elementos que lhe são essenciais, e aí falo principalmente de ferro, vitamina B12 e ácido fólico. A carência destes elementos pode ser produzida por falta de aporte alimentar, dieta inadequada, dificuldade na absorção a nível do tubo digestivo por alguma doença ou alteração, ou por perdas continuadas de sangue, como o caso do doente que tem uma hemorragia digestiva. Este cenário, embora não seja específico da doença renal crónica – porque não é –, é prevalente no doente renal crónico.
O doente renal crónico tem, assim, dois grandes fatores para produzir anemia: a falta da eritropoietina, que é intrínseca à perda da sua função renal, e, porque são doentes tendencialmente idosos, com comorbilidades, com multimedicação, têm muitas vezes défices de ferro ou de vitaminas.
A condição específica de cada doente, na sua doença renal crónica, faz variar os sintomas. Na pré-diálise, o doente, dependendo também do grau de atividade física que está habituado a ter, vai sentir uma astenia fácil: o doente que se cansa facilmente. Essa astenia marcada pode depois agravar-se para, por exemplo, uma sensação de frio anormal, uma perda de apetite, até um humor depressivo; por outro lado, pode também condicionar alterações de sono e a palidez torna-se mais aparente.
No caso do doente em diálise, a diálise já produz sintomas. Deixa o doente mais cansado, por isso às vezes é difícil distinguir o sintoma da anemia do sintoma apenas da doença renal avançada. Mas ainda assim eu diria que, mais uma vez, uma astenia marcada, uma perda de vitalidade para as atividades habituais são sempre fatores a ter em conta como sendo sintomas da anemia. E está provado que a sua presença reduz a qualidade de vida dos doentes, porque o doente perde a capacidade para um conjunto de atividades ou perde interesse, por exemplo. Esse aspeto deve ser tido sempre em conta para que cada doente receba o melhor tratamento, com um objetivo mais individualizado. É um aspeto muito importante. Os sintomas são diferentes e por isso também os nossos propósitos (intervenções terapêuticas) serão distintos.
HN – É possível prevenir a anemia?
JM – Em larga medida, eu diria que não. É possível mitigar o grau de anemia, dependendo do estádio da doença renal crónica. Isto é, acho que é possível o doente em estádio 3, por exemplo, através de uma adequada suplementação, se necessário, de vitaminas e ferro, ficar estável; mas quando o doente avança para estádios 4 e 5, mesmo com toda a suplementação, a anemia acaba por se instalar, porque o que falta é algo que é endógeno e que não há maneira de suplementar a não ser de forma terapêutica, com fármacos. Há intervenções de mitigação do efeito, mas não diria que há propriamente uma prevenção. Todo o doente que tem uma anemia deve investigar perdas hemáticas, deve avaliar o tubo digestivo para saber se tem uma úlcera, se tem um pólipo sangrante, as mulheres devem estar atentas às perdas ginecológicas. Tudo isso deve ser tido em conta e naturalmente a sua correção vai ajudar ao controlo da anemia, mas no limite não há uma prevenção quando olhamos para o espectro total da doença renal e incluímos os doentes em fase mais avançada.
HN – O valor de hemoglobina deve ser avaliado periodicamente? Que complicações podem advir da não identificação de anemia nestes doentes?
JM – A vigilância da hemoglobina analítica, e vamos falar no contexto da doença renal crónica, tem indicação para ser feita basicamente ao mesmo ritmo que por exemplo a creatinina, que é um marcador de doença renal. Isso faz com que a hemoglobina seja pedida nas fases mais ligeiras da doença renal, na avaliação anual da doença renal crónica, e depois, à medida que caminhamos para uma doença renal crónica mais avançada, propõe-se uma avaliação semestral, trimestral e às vezes de dois em dois meses. Na hemodiálise, por exemplo, é política ser avaliada mensalmente. Ainda assim, a periodicidade ajusta-se à fase em que o doente está na sua doença renal crónica. Obviamente que hoje em dia há uma política muito proativa de controlar a hemoglobina e corrigi-la, o que não quer dizer que tenhamos alvos de tratamento muito elevados para valores de hemoglobina. São coisas diferentes. Existe indicação para tratar, mas é para manter os doentes em valores de hemoglobina à volta dos 10/11,5, e não almejamos a sua normalização. Não quer dizer que não possa haver suplementação de ferro, vitaminas, etc., mas estamos a falar de terapêuticas de correção da hemoglobina – agentes estimuladores da eritropoiese.
Naturalmente, o tratamento da anemia, de acordo com os alvos referidos, se por algum motivo não for feito é deletério para o doente. É deletério porque há sintomas que se vão instalando, e os sintomas da anemia acabam por ser muito aparentes e incapacitantes a certa altura, para além de que um doente com uma hemoglobina mal controlada durante tempos prolongados vai ter maior probabilidade de ter mais complicações, complicações cardiovasculares, por exemplo. Doentes que têm doença coronária podem ter um enfarte ou, de uma forma mais ligeira, podem ter com mais frequência crises de angina. Se o doente estiver muito anémico, provavelmente, vai ter mais facilmente sintomas de claudicação intermitente, que significa que o sangue chega com alguma dificuldade às extremidades dos membros inferiores e conduz a uma dor que obriga o doente a parar. Se o doente tiver uma doença cerebrovascular, tiver alguma dificuldade na perfusão cerebral e estiver muito anémico, pode ter alguns sintomas como cefaleias, tonturas ou alguma confusão mental.
HN – Como deve ser feito o tratamento da anemia em doentes com doença renal crónica?
JM – Dependente da fase do doente, mas para simplificar vamos dizer que até um valor à volta de 10 gramas por decilitro há indicação para suplementar ferro ou vitaminas, se estiverem em falta, e, obviamente, excluir e rastrear e corrigir qualquer fator de hemorragia. Quando atingimos valores à volta dos 10, aí há indicação para tratamento, e esse tratamento passa por estimuladores da eritropoiese, em que existem dois grupos: um que é claramente gold standard, em uso há mais de 3 décadas, que consiste em produzir eritropoietina em laboratório e administrar à pessoa (basicamente, são injeções de eritropoietina); e mais recentemente surgiu uma nova classe dos inibidires da HIF em que nós administramos o fármaco que induz mecanismos para que o rim responda com produção de eritropoietina, formada endogenamente, pelo próprio corpo.
HN – Que outras complicações estão associadas à doença renal crónica?
JM – A doença renal crónica associa-se com maior risco cardiovascular e outros eventos desfavoráveis. Nós sabemos que um doente renal crónico tende a ter mais doença cardiovascular, por vários mecanismos. Há maior probabilidade de doença cardíaca, doença cerebrovascular, doença vascular periférica, e por isso o doente deve ser tratado de forma agressiva, e há guidelines para isso, no controlo de todos os fatores de risco que seja possível controlar. Isto é, a diabetes, se existir, tem que estar o mais controlada do ponto de vista glicémico; a hipertensão deve ser o melhor controlada possível; o excesso de colesterol deve ser tratado e corrigido; pode haver indicação para uma profilaxia com aspirina em alguns doentes (não é em todos); o doente deve manter uma dieta adequada, com preferência por proteínas de origem vegetal, ter uma alimentação diversificada e evitar alimentos processados, e deve ter – e isso é um dos aspetos mais difíceis de implementar em Portugal – uma pobreza em sal. O máximo de sal que o doente renal crónico deve consumir por dia são cerca de cinco gramas.
Mas obviamente que a complicação mais temida é o doente necessitar de diálise, e a grande luta é tentar impedi-lo. Penso que hoje em dia há a possibilidade de haver intervenções terapêuticas que permitam reduzir de forma significativa o número de doentes em que isto acontece. Isto é, há tratamento para a doença renal crónica e esse tratamento previne que uma percentagem significativa de doentes atinja o estádio da falência renal. Para tal, tem que haver uma procura precoce da doença. Esse é o grande calcanhar de Aquiles da doença renal crónica. Ela ainda não está em evidência como outras doenças, não está na mente das pessoas e até mesmo dos colegas da Medicina Geral e Familiar. Mas a verdade é que, agora, com estas novas terapêuticas modificadoras de prognóstico, está comprovado que temos que identificar a doença renal crónica mais precocemente, e para isso temos que mudar a nossa forma de atuar. Sintomas não vão existir, porque não há sintomas significativos na doença renal crónica dita ligeira. Por isso, a única forma é, em grupos de risco, fazer um diagnóstico precoce da doença renal. E esse diagnóstico precoce tem que ser despoletado pelo médico que acompanha o doente, o médico dos cuidados de saúde primários. E é muito fácil fazê-lo: basicamente, esse diagnóstico é feito a partir de uma avaliação da creatinina, que é uma análise de sangue, e uma análise da albuminúria, de urina. As duas juntas permitem na quase totalidade dos casos saber se o doente tem ou não doença renal crónica e estadiá-la. Por isso o que tem que acontecer é haver interesse por parte de todos os responsáveis envolvidos nesta matéria de a procurar. Assim, temos que ter muito claro que há populações de risco, onde tem que haver diagnóstico precoce e este ser feito com os exames que há pouco referi pelo menos anualmente. Que população é esta? São os diabéticos, como é óbvio, mas não só: os hipertensos, os obesos, os doentes com insuficiência cardíaca, os doentes que têm patologia urológica crónica, doentes que têm doenças sistémicas, doenças autoimunes, doenças infeciosas como é o caso do HIV, doentes que tenham história familiar de doença renal. E há também fatores que têm a ver com a exposição laboral ao mercúrio, ao chumbo e aos pesticidas, por exemplo. E, finalmente, lembraria apenas que na população acima dos 65 anos faz sentido esta avaliação anual para excluir a presença de doença renal crónica, já que existe um fator biológico envolvido – os rins têm uma função ótima que é alcançada por volta da terceira década de vida e a partir daí há uma perda paulatina da função renal.
HN – Em Portugal, o que é mais urgente fazer pelas pessoas com doença renal crónica?
JM – O mais importante neste momento é diagnosticar todas as pessoas com doença renal crónica o mais precocemente possível. Nós sabemos que cerca de 10% da população portuguesa tem doença renal crónica, tendo 70 a 80% deles indicação terapêutica com fármacos modificadores de prognóstico, isto é, fármacos que vão diminuir o risco de a doença renal crónica evoluir para maior gravidade, ao ponto de pôr o doente em risco, por exemplo, de diálise. Se esse diagnóstico está largamente por fazer, naturalmente que é o mais premente.
Entrevista de Rita Antunes
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