HealthNews (HN)- As últimas reuniões que decorreram no mês de julho fracassaram após o Governo ter apresentado um documento ao qual a FNAM apelidou de “inaceitável”. Quais foram as medidas propostas que acenderam a faísca e impediram o fim do braço de ferro entre sindicatos e tutela?
Joana Bordalo e Sá (JBS)- Em julho já tínhamos avisado a tutela de quais seriam as nossas exigências para que houvesse um acordo. O Governo conhecia bem as nossas linhas vermelhas e mesmo assim no dia 30 apresentou-nos um documento absolutamente inaceitável com perda de direitos para os médicos.
HN- O regime de dedicação plena tem sido um dos principais pontos de discórdia nestas negociações. Qual foi o modelo proposto?
JBS- Em primeiro lugar é preciso frisar que o modelo de dedicação plena não é algo que a FNAM defenda… O que nós defendemos é uma dedicação exclusiva e que seja opcional e devidamente majorada. No entanto, o Governo entende que, nos cuidados de saúde primários, quem estiver numa USF obrigatoriamente teria de passar para este regime de dedicação plena. Nos hospitais teriam de passar todos os médicos que estejam a trabalhar num Centro de Responsabilidade Integrado.
HN- E o que acontece aos médicos não exercem atividade numa USF?
JBS- Os médicos que trabalham nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados preveem que adiram de forma voluntária.
HN- Está previsto que o mesmo aconteça no caso dos médicos hospitalares, correto?
JBS- Sim. O problema para os que fazem urgência são: a manutenção das 18 horas de urgência do horário normal, não sobrando tempo para as consultas e cirurgias que os doentes tanto precisam; o aumento do trabalho suplementar para 300 horas (em vez das atuais 150 horas); o aumento da jornada diária de trabalho para 9 horas por dia e a alteração do tempo de descanso.
Por outro lado, para aqueles que não fazem urgência está previsto também que trabalhem 9 horas por dia, sendo que para estes está prevista a inclusão do trabalho ao sábado para atividade programada.
HN- Significa que o regime que foi proposto pela tutela cria desigualdades entre os médicos?
JBS- Exatamente. Para não mencionar que nem sequer salvaguardaram a saúde pública. Nada foi proposto para estes médicos.
Se formos olhar para os vencimentos base, seja em USF, UCSP ou a nível hospitalar este valor não é igual para todos. Nas USF, os suplementos previstos têm um problema. Aquilo que o Governo está a querer generalizar não é o atual modelo B, que é um bom modelo, querem é generalizar um outro em que o suplemento dos médicos pode ver-se prejudicado caso passem análises, receitas e exames a mais.
No caso dos médicos hospitalares, preveem um suplemento de 20%. Não é isso que nós queremos.
No fundo, mesmo quem se abraçasse este tipo de regime ia ter um vencimento base diferente consoante a área profissional; nem querer é consoante a especialidade.
HN- E quem não quiser “abraçar” este regime?
JBS- Pois. A esses foi proposto um aumento em média de 1,6% do salário base.
HN- Aos olhos da FNAM, esta proposta terá de ser limitada ou alterada em que pontos?
JBS- Em primeiro lugar, a valorização salarial tem de ser para todos e tem de compensar a perda do poder de compra dos últimos dez anos. Portanto, nós propomos que haja um aumento de cerca de 30% para todos os médicos, de forma a dignificar a nossa profissão.
No novo regime de dedicação plena, a remuneração base terá de ser igual para qualquer médico independentemente da sua especialidade. No caso dos colegas das USF, os suplementos não podem ser prejudicados pelo número de análises e exames que são passados aos doentes. No caso dos médicos hospitalares, a inclusão do trabalho ao sábado, para aqueles que não fazem urgência, é absolutamente inaceitável. Para os que fazem urgência, queremos que se volte às 12 horas.
No que toca às horas extra, as 300 horas que são propostas é um valor ilegal e inconstitucional. O código do trabalho, o máximo que prevê são as atuais 150, sendo que por acordo coletivo pode ir até as 200 horas.
HN- Esta proposta do Governo beneficia ou prejudica os utentes?
JBS- No nosso entender prejudica os utentes, quer a nível dos cuidados de saúde primários, quer nos cuidados hospitalares.
HN- Prejudica a que nível?
JBS- Nas USF, os médicos passam a estar limitados no número de análises e exames. Portanto, o modelo que querem implementar é “B” de barato.
A nível hospitalar, se os médicos continuarem a fazer 18 horas de urgência não sobra tempo para realizarem consultas e cirurgias. Por outro lado, se aumentar para as 9 horas diárias e se se alterarem os descansos vamos ter mais médicos em burnout e a sair do SNS.
HN- Há medidas que a FNAM considera passiveis de serem negociadas, ou são todas propostas a rebater?
JBS- Esta perda de direitos não são negociáveis. No entanto, é evidente que podemos negociar a questão do aumento salarial, mas garantindo sempre a igualdade entre os médicos. Não mencionei até agora, mas também queremos que o internato médico passe a fazer parte da carreira.
HN- Portugal quer contratar médicos brasileiros e o Governo está a oferecer um salário bruto de 2800 euros e “casa de função”. Como é que a FNAM olha para esta possibilidade?
JBS- A Federação Nacional dos Médicos não tem nenhum problema com a nacionalidade dos médicos. Isso tem de ficar claro. A questão que se coloca é que em Portugal não há falta de médicos, há falta deles no Serviço Nacional de Saúde. Portanto, há falta de competência do Ministério da Saúde que não consegue atrair médicos para o setor público.
Na questão dos médicos brasileiros, há um aspeto que é complicado. Estes médicos não vêm como especialistas… Vão ser equiparados a clínicos gerais. É preciso frisar que um médico de família é um médico que é especialista em Medicina Geral e Familiar. Por outro lado, estão-lhes a oferecer condições de um salário que é igual a um especialista e ainda lhes oferecem habitação. Isto não é aceitável.
HN- Agora que a FNAM já entregou oficialmente a contraproposta, e que houve uma forte adesão à greve convocada nos dias 1 e 2 de agosto, acredita que o governo cederá às vossas reivindicações?
JBS- O Governo não tem outra alterativa. Aquilo que nos está a ser proposto é pior do que aquilo que existe agora.
Entrevista de Vaishaly Camões
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