Na introdução ao seu livro Luis Rojas Marcos, médico psiquiatra espanhol, há décadas sediado em Nova Iorque, partilha com o leitor as circunstâncias e observações que forjaram na sua mente a decisão de escrever a obra Estar Bem, Aqui e Agora (edição HarperCollins). Não destitui essas razões do mundo diferente que encontramos desde 2020, com a pandemia de COVID-19, acentuado pela sombra da guerra. Desta forma vivemos “uma nova vida ‘normal’ imbuída de incerteza e vulnerabilidade”. O especialista sublinha um fator especialmente inquietante que agudizou o sentimento de indefensabilidade, a “falta de preparação dos sistemas de saúde a nível mundial”. Luis Rojas Marco foi testemunha presencial de experiências dolorosas nos hospitais públicos de Nova Iorque, onde trabalha. Também assistiu a altruísmo e solidariedade. Para o médico nascido em Sevilha em 1943, a COVID-19, “um inimigo impalpável em forma de vírus, nos arrebatou a capacidade de prever o futuro”. Um contexto em que estar-bem “converteu-se numa necessidade vital, numa prioridade do nosso dia a dia”. O que o autor nos propõe no seu livro é reconquistarmos essa ideia de futuro, melhorando o nosso bem-estar físico e emocional. Pretexto para uma conversa com Luis Rojas Marcos.

Dedica o primeiro capítulo de seu livro ao motivo que o levou a escrever esta obra. Relaciona-o com a pandemia de COVID-19. Quer compartilhar com os leitores?

A pandemia impôs-nos uma nova vida imbuída de incerteza e de vulnerabilidade. Além disso, a falta de informação fiável de especialistas e líderes de opinião minou a confiança desde o início da pandemia. A insegurança tirou-nos a capacidade de antecipar o futuro e a reação instintiva foi concentrarmo-nos no presente, no aqui e agora. Em 2022, o exército russo invadiu a Ucrânia, reavivando assim a incerteza global.

Sobre o autor

Nasceu em Sevilha em 1943 onde se licenciou em Medicina. Em 1968, emigrou para Nova Iorque. Especializou-se em Psiquiatria. Em 1992, foi nomeado Comissioner ou máximo responsável pelos Serviços de Saúde Mental de Nova Iorque. De 1995 a 2002 dirigiu o vasto sistema de saúde pública e hospitais nova-iorquinos.  Viveu de perto os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e liderou o atendimento médico e psicológico às vítimas. De 2012 a 2021, conciliou o seu trabalho académico com a gestão como diretor executivo da organização Physicians Affiliated of New York (PAGNY), formada por 4.000 profissionais de saúde que prestam os seus serviços em hospitais públicos e prisões municipais. Precisamente nesta posição, no início de 2020 Rojas Marcos enfrentou os efeitos devastadores da pandemia do coronavírus. Professor de Psiquiatria na Universidade de Nova Iorque, Luis Rojas Marcos concilia a sua atividade docente com a prática psiquiátrica e a colaboração com instituições dedicadas a questões sociais e de saúde pública.

Viveu a pandemia de COVID-19 nos hospitais de Nova Iorque. O que mais o marcou nesses meses de tanta dor?

Um fator perturbador que agravou a confusão e o sentimento de desamparo foi a falta de preparação dos sistemas de saúde em todo o mundo, incluindo Nova Iorque. Por exemplo, escutámos ao longo de meses mensagens como “não precisa usar máscara”, quando, a verdade, é que não havia máscaras suficientes. Nos hospitais de Nova Iorque, como era de se esperar, testemunhei experiências muito dolorosas, mas o que mais me marcou foram as inúmeras demonstrações carinhosas de altruísmo solidário. Todos os dias vi como a solidariedade, além de beneficiar os seus destinatários, protege-nos do pânico e favorece a nossa própria sobrevivência.

Diz-nos que é difícil encontrar uma definição daquilo a que chamamos bem-estar. Porquê? É devido à natureza subjetiva do estado a que chamamos bem-estar?

Assim é. A subjetividade desempenha um papel muito importante no que consideramos bem-estar. E isso explica-se porque o nosso bem-estar pessoal depende de nossa personalidade, das circunstâncias e também das experiências vividas. Isso explica o facto de sentirmos o nosso bem-estar de formas tão pessoais quanto diferentes. Por exemplo, nem o rendimento, nem o número de horas que dormimos são testes objetivos de bem-estar. O que conta é o grau de satisfação que esse rendimento e essas horas de sono nos proporcionam. Nos hospitais ouço dos pacientes referirem como coisas simples, tal como respirar sem aflição, comer sem se engasgar, movimentar-se sem dor ou coçar-se livremente, se tornam experiências de bem-estar.

O nosso bem-estar pessoal depende de nossa personalidade, das circunstâncias e também das experiências vividas. Isso explica o facto de sentirmos o nosso bem-estar de formas tão pessoais quanto diferentes.

Existe uma relação direta entre personalidade extrovertida ou introvertida e bem-estar?

A nossa personalidade influencia o nosso bem-estar subjetivo. Indivíduos extrovertidos são faladores e sociáveis. Estes tendem a comunicar os seus sentimentos, estão inclinados a agir e a explorar novos horizontes. Os introvertidos concentram-se no seu mundo interior, gostam de reflexão e de analisar ideias e emoções. Em situações sociais são mais reservados. A extroversão é uma importante fonte de emoções positivas. Conversar, seja para compartilhar, para desabafar ou para encorajar, contribui para a qualidade e o número de anos de vida. Curiosamente, as mulheres são geralmente mais extrovertidas do que os homens. Ao mesmo tempo, a esperança de vida das mulheres no mundo é, em média, cinco anos mais longa do que a dos homens. Não resisto a concluir que as mulheres vivem mais porque falam mais.

Podemos identificar os ingredientes que nos fazem sentir bem? Dedica um longo capítulo de seu livro a esses aspetos

Para conhecer os fatores que contribuem para estarmos bem, devemos perguntar e ouvir e não nos basearmos em teorias pré-concebidas. Entre os ingredientes mais frequentes estão o bem-estar físico e emocional, a tranquilidade, práticas prazerosas, atividades estimulantes e experiências pelas quais nos sentimos gratos e solidários. Relacionamentos gratificantes também estão associados a que nos sintamos bem. As condições económicas influenciam quando se traduzem em segurança e satisfação de necessidades importantes. Recordo com frequência o episódio que Charles Darwin relata no seu trabalho sobre emoções. Diz-nos o naturalista do século XIX que um dia perguntou a um menino de cerca de quatro anos o que significava para ele sentir-se bem. O menino respondeu: “Ria, converse e dê beijos”.

Basicamente, como podemos medir o bem-estar?

Ao longo dos anos aprendi que a melhor forma de medir o bem-estar subjetivo das pessoas é perguntar: “dê-me a lista das áreas da sua vida que contribuem para o seu bem-estar, avalie cada área de 0 a 10 e depois especifique o seu plano para cultivá-los e protegê-los”.

Entre todos os aspetos que identifica como causadores de desconforto, quais acha que são os que predominam nas nossas sociedades ocidentais?

A causa do mal-estar que predomina na nossa sociedade é a incerteza que prejudica a nossa noção do futuro. Quanto mais incapazes nos sentimos de planear o amanhã, mais espaço deixamos aberto para que o stress e a ansiedade abalem a nossa segurança e a confiança. A desvantagem da vigilância contínua é que ela nos impede de relaxar, interfere na nossa capacidade de nos relacionarmos, funcionarmos e desfrutarmos. Planear o nosso programa de vida é um ingrediente fundamental para a nossa paz de espírito. Precisamente quanto mais incerto se assemelha o nosso futuro ou o dos nossos entes queridos, mais vulneráveis ​​nos sentimos e menos confiamos no mundo que nos rodeia.

Luis Rojas Marcos
Luis Rojas Marcos no decorrer da apresentação do seu livro em Portugal. créditos: HarperCollins

Entre os fatores que identifica para que estejamos bem, cita “preservar a memória autobiográfica positiva”. Pode explicar-nos do que se trata?

As lembranças que guardamos na memória ajudam-nos a formular as nossas decisões e a direcionar o nosso dia a dia. Uma visão favorável do passado predispõe-nos a enfrentar com confiança os desafios que se cruzam no nosso caminho. Pelo contrário, as memórias negativas de ontem impregnam o presente de desconfiança. Evocar com palavras os desafios passados ​​que superamos também nos protege da deceção e serve de estímulo a resistirmos: “Se conseguiu uma vitória naquela prova, vai conseguir alcançar sucesso também nesta”.

Também nos fala sobre o exercício da solidariedade. É um caminho para o bem-estar?

A solidariedade é uma força natural que nos une e promove sentimentos de segurança e esperança, amortece o stress e protege o nosso bem-estar. Todos beneficiamos das expressões de empatia e de incentivo que recebemos de quem nos ouve. É um facto que nos momentos difíceis quem se sente compreendido e apoiado supera melhor as adversidades, mas é igualmente verdade que quem realiza um trabalho solidário também sai beneficiado. Está provado que as pessoas que ajudam os outros em momentos de adversidade têm maior probabilidade de superar a situação, porque ao concentrarem a sua atenção na ajuda ao próximo deixam menos espaços abertos para que a confusão e o pânico os invadam.

A solidariedade é uma força natural que nos une e promove sentimentos de segurança e esperança, amortece o stress e protege o nosso bem-estar.

Estamos preparados para saber enfrentar situações dolorosas e de muito stress?

No mundo da saúde, usamos a palavra resiliência para nos referirmos à mistura de resistência e flexibilidade que nos permite resistir e superar os contratempos que se atravessam no nosso caminho e alteram o nosso equilíbrio vital. Ingredientes desta capacidade incluem a motivação para avaliar as situações que nos stressam e agendar as etapas necessárias para resolvê-las. Uma dose de confiança ajuda-nos a agir com determinação e esperança. Em tempos difíceis é aconselhável aceitar apoio e procurar a ajuda de especialistas. E não esqueçamos que muitas vezes as mensagens que mais nos protegem do desamparo e do fatalismo chegam dos nossos solilóquios ou das nossas vozes internas.

Para escrever o seu livro recebeu inúmeras definições de bem-estar. Alguma delas o tocou particularmente?

Recordo-me que várias pessoas fizeram alusão à letra da música, acho que foi composta pelo pianista argentino Rodolfo Sciammarella, que dizia o seguinte: “Existem três coisas na vida: saúde, dinheiro e amor. Quem as tem, dê graças a Deus, porque com elas vive-se livre de preocupações…”

Viveu de muito perto o 11 de setembro de 2001. No seu livro relata-nos essa experiência e de como reagiu quando lhe perguntaram se estava bem. Respondeu sempre: “Estou bem”. Porquê?

Na verdade, lembro-me que nos dias que se seguiram ao ataque de 11 de setembro, em Nova Iorque, a minha resposta automática às insistentes perguntas diárias de “como está”, foram sempre um “estou bem”, a fim de manter guardadas as memórias traumáticas daquele dia. Também procurava poupar os meus interlocutores a uma dolorosa reação de compaixão. Acho que é compreensível, dada a possibilidade de respostas à gentil pergunta, “está bem?”, poderem levar a uma troca emocionalmente difícil. Desta forma, vamos tentar responder com um diplomático “estou bem, obrigado”.