É frequente dizermos a propósito de terceiros que são hiperativos, também nos queixamos de falta de atenção devido aos muitos estímulos que recebemos e padecemos de falta de concentração. Isto equivale a afirmar que sofremos de Perturbação de PHDA? Quer explicar-nos do que se trata quando falamos de PHDA?

Não são sinónimos. Sentir agitação, falta de atenção ou concentração devido ao excesso de estímulos externos não equivale necessariamente a um diagnóstico de PHDA. Este diagnóstico tem uma origem multifatorial, sendo que a componente genética é a principal explicação para a sua existência.

Embora a hiperestimulação e a sobrecarga cognitiva contemporâneas possam mimetizar sintomas como dificuldade em manter a atenção, relaxar ou cumprir horários, no caso da PHDA, estes sinais não resultam exclusivamente de fatores externos. Existe uma base neurobiológica, uma desregulação química subjacente, à qual o contexto funciona como um catalisador significativo para a manifestação dos sintomas e estes surgem de forma contínua e transversal em múltiplos contextos da vida.

Enquanto a sobrecarga cognitiva representa a resposta do corpo à incapacidade de processar e gerir múltiplos estímulos simultaneamente, na PHDA a desregulação é intrínseca e está presente desde as primeiras fases do desenvolvimento.

Na introdução ao seu livro escreve que este não se destina apenas a quem sofre de PHDA. A quem se destina esta sua obra?

Como o título sugere, destina-se a todas as pessoas que se sentem sempre a mil. Seja pela exposição excessiva a estímulos, que dão origem a uma sobrecarga cognitiva, pela desregulação química biológica e neurodesenvolvimental, como no caso da PHDA, ou ambas.

Não temos capacidade cognitiva, emocional ou mesmo temporal para dar resposta a todas estas exigências.

Escreve que “vivemos na era da hiperestimulação”. Desta decorre um estado de agitação mental e física. Algo que identificamos, embora não consigamos deter. Até que ponto esta sociedade do hiperconsumo está a prejudicar o nosso equilíbrio emocional e cognitivo? 

Pode-se comparar este fenómeno a um copo de água: ao enchê-lo além da sua capacidade, transborda e deixa de conseguir conter mais líquido. O mesmo acontece connosco. Apesar da sua incrível complexidade do nosso cérebro, este também tem limites. Se há milhares de anos a sobrevivência dependia da caça, da procriação e da defesa de perigos reais, hoje as exigências que enfrentamos são incomensuravelmente superiores à nossa capacidade de resposta.

Rita Gama Ferreira é psicóloga clínica, especializada na avaliação e intervenção de adultos com PHDA. Diagnosticada com esta perturbação, traz uma perspetiva  empática ao trabalho que desenvolve, combinando o estudo do tema com a sua própria vivência.
Lidera uma equipa multidisciplinar de mais de 25 profissionais, que inclui psicólogos, psiquiatras e nutricionistas. Criou também um curso de PHDA no adulto, dirigido a psicólogos, e colabora em formações de colegas na mesma área.
Comunica com os seus leitores na página de Instagram @rita.a.psicologa, onde se dedica a psicoeducar e a sensibilizar o público para a PHDA.

E não é preciso recorrer às redes sociais ou aos videojogos para ilustrar este ponto, porque estes são “apenas” fatores adicionais. Antes, enfrentamos uma pressão constante para trabalhar e ser os melhores, manter relações amorosas com plena disponibilidade emocional, ter muitos amigos e estar sempre presente, ser pais ou mães exemplares e regular bem as nossas emoções para o bem-estar dos filhos. Além disto, espera-se que façamos exercício, tenhamos uma alimentação perfeita e que consigamos gerir todos estes aspetos com sucesso.

O problema é que não temos capacidade cognitiva, emocional ou mesmo temporal para dar resposta a todas estas exigências. Este desequilíbrio reflete-se numa sobrecarga mental e física que mina o nosso equilíbrio emocional e cognitivo, deixando-nos num estado de constante agitação, sem espaço para recuperar ou reorganizar as prioridades.

Sublinha no seu livro a seguinte expressão: “Estaremos a deixar de saber ser gente?” Estaremos? E como se manifesta este divórcio?

A expressão “Estaremos a deixar de saber ser gente?” convida à reflexão sobre a desconexão progressiva entre o que somos como seres humanos e o ritmo desumanizador e irrealista que nos é imposto.

Por um lado, verifica-se uma perda de conexão com as necessidades mais básicas, como descansar, estar presente no momento ou estabelecer relações autênticas. O foco excessivo na produtividade, desempenho e aparência criou uma cultura onde o valor pessoal parece depender de metas externas, passando para segundo plano a capacidade de simplesmente existir.

Por outro lado, no plano coletivo, há uma fragmentação das relações humanas. A hiperconexão digital não preenche o vazio deixado pela falta de encontros reais e significativos. Estamos cada vez mais rodeados de pessoas, mas sentimos mais solidão.

Este desajuste também se reflete no corpo e na mente. Sintomas como ansiedade, exaustão crónica e desregulação emocional são respostas diretas a um estilo de vida que ignora os limites naturais do ser humano. Em vez de nos adaptarmos às nossas capacidades, parece que estamos a tentar transformar-nos em máquinas capazes de "dar resposta a tudo".

No fundo, o desafio está em redescobrir o que significa "ser gente" — dar prioridade às emoções, às relações, à criatividade e ao bem-estar, valores que nos tornam verdadeiramente humanos.

Da leitura da primeira parte do seu livro perpassa uma imagem crítica à forma como organizamos a nossa sociedade, como hierarquizamos as necessidades, como hipervalorizamos questões supérfluas, embora não procure, por exemplo, demonizar a tecnologia. Sente desalento por este tempo em que vivemos?

Não diria que sinto desalento, mas há, sem dúvida, uma preocupação com o rumo que estamos a tomar. Vivemos num tempo de avanços incríveis, com acesso a conhecimento e tecnologia como nunca antes. Contudo, parece que nos perdemos na forma de usar essas ferramentas. A obsessão pela produtividade, pela imagem e pelo consumo acaba por desviar a nossa atenção do que realmente importa: as relações humanas, o bem-estar emocional e o equilíbrio entre o fazer e o ser.

A crítica presente no livro não tem como objetivo demonizar a tecnologia ou o progresso, mas sim chamar a atenção para como os utilizamos e para as prioridades que estabelecemos. O impacto depende da forma como a integramos nas nossas vidas. Por isso, o foco não é o desalento, mas sim a possibilidade de refletir, reorganizar prioridades e criar um caminho que nos permita aproveitar o melhor deste tempo sem comprometer a nossa essência enquanto seres humanos.

Voltemos à PHDA. De que forma podemos saber que sofremos desta perturbação? Sabe-se, por exemplo, que diagnosticar PHDA em adulto é complexo. 

O diagnóstico da PHDA não abdica de uma avaliação criteriosa, conduzida por profissionais especializados. Esta perturbação manifesta-se de formas diferentes ao longo da vida, e os sintomas podem variar em intensidade e impacto.

O diagnóstico de PHDA em adultos é particularmente complexo devido a vários fatores, como o contexto, o sexo, o QI, a presença de outras perturbações, doenças físicas ou alterações de humor, além da possibilidade de os sintomas serem confundidos com outras questões. Os adultos acabam também por desenvolver mecanismos de compensação ao longo do tempo, o que pode mascarar ou diminuir a visibilidade dos sinais mais evidentes.

Atualmente, devido à crescente procura por diagnósticos, existem entidades que promovem avaliações neuropsicológicas ou tratamentos como o neurofeedback, cobrando valores elevados, mas sem evidência científica sólida. De acordo com as diretrizes clínicas, o diagnóstico de PHDA deve ser realizado por meio de uma entrevista clínica detalhada. Quanto ao tratamento, as abordagens recomendadas incluem medicação, terapia comportamental, e intervenções complementares quando necessário, como a nutrição ou a terapia ocupacional, sempre com base em evidências científicas reconhecidas.

O diagnóstico da PHDA não abdica de uma avaliação criteriosa, conduzida por profissionais especializados.

Há diferentes tipos de PHDA?

Sim. A PHDA pode ser classificada em três apresentações. Passo a explicar: Predominantemente Desatenta, com sintomas de desatenção, como dificuldade em focar, cometer erros por descuido e desorganização, sem hiperatividade significativa. Também encontra a Predominantemente Hiperativa-Impulsiva, com sintomas de inquietação, falar excessivamente, dificuldade em esperar a vez e impulsividade, sem desatenção significativa. Finalmente, destaco a PHDA Combinada, substanciada em sintomas de desatenção e hiperatividade-impulsividade, como dificuldades em focar e impulsividade nas ações. Cada apresentação reflete a forma predominante da perturbação.

“Estou sempre a mil”. E se for Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção? À conversa com a psicóloga clínica Rita Gama Ferreira
“Estou sempre a mil”. E se for Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção? À conversa com a psicóloga clínica Rita Gama Ferreira créditos: Contraponto

Porque escreve no livro que “A PHDA não caminha sozinha”?

A PHDA não caminha sozinha porque, em cerca de 80% dos casos, está associada a outras perturbações mentais, sendo as mais prevalentes as perturbações de ansiedade e depressão. Também pode coexistir com outras perturbações do humor e da personalidade, assim como com perturbações alimentares. Adicionalmente, podem ocorrer problemas relacionados com o sono, consumo de substâncias ou adições, sendo o tabaco a mais prevalente. Os comportamentos de risco também são frequentes, variando desde compras impulsivas até comportamentos que comprometem a própria integridade física ou a de outras pessoas, onde podemos utilizar o exemplo da condução imprudente. Esta coocorrência pode ser explicada pelas experiências adversas vividas devido aos sintomas da PHDA ou pela desregulação química, especialmente da dopamina, embora outros neurotransmissores também possam estar envolvidos.

Leva para o seu livro alguns mitos em torno da PHDA e responde-lhes com factos. Um, entre estes mitos, prende-se com a medicação e a ideia de que esta basta para tratar a PHDA. O que deve coadjuvar a medicação?

A medicação é considerada o tratamento de primeira linha para a PHDA, mas a recomendação é que seja acompanhada de acompanhamento psicológico. Trabalhar a psicoeducação é essencial, não apenas para quem tem o diagnóstico, mas também para aqueles que convivem com pessoas com PHDA. O autocuidado é fundamental para atender às necessidades individuais, enquanto as adaptações e estratégias comportamentais podem ajudar a melhorar a gestão dos sintomas e o bem-estar diário.

Estas necessidades podem ser trabalhadas em contexto psicoterapêutico, e por isso, a combinação de medicação e terapia é, de facto, a melhor opção. Afinal, ninguém é o seu diagnóstico. Trabalhar a aceitação das próprias características e fomentar um discurso interno autocompassivo são passos importantes, visto que as pessoas com PHDA tendem a ter um discurso interno mais autocrítico, como demonstram os estudos científicos. As abordagens combinadas, facilitam um melhor equilíbrio emocional e uma gestão mais eficaz dos sintomas.

A medicação é considerada o tratamento de primeira linha para a PHDA, mas a recomendação é que seja acompanhada de acompanhamento psicológico.

Podemos entender o seu livro como um manual de psicoeducação? Se sim, pode dar-nos alguns exemplos?

O livro procura responder à pergunta crescente: "Temos todos (um bocadinho de) PHDA?" A resposta é clara: não. No entanto, oferece uma reflexão sobre como vivemos num mundo hiperestimulado, onde a busca por recompensas imediatas dificulta a paciência e a tolerância, gerando sintomas semelhantes aos da PHDA. Através deste livro, o leitor pode compreender o que é a PHDA, como é feito o diagnóstico, o impacto no dia a dia e como tratar ou intervir, além de explorar como se cruza com a hiperestimulação. Também são incluídas estratégias práticas para gerir dificuldades como organização, foco, produtividade, gestão do tempo, motivação e regulação emocional.

Quais as palavras que mais a satisfariam escutar vindas de alguém que tenha lido o seu livro? 

Que encontraram uma ferramenta que finalmente encaminha ao encontro de respostas para questões que existiam, muitas vezes, há uma vida.