“Operam-se cerca 5.500 doentes cardíacos por ano e, em números redondos, existem mais de 1.500 doentes em lista de espera para cirurgia cardíaca”, disse o especialista do Hospital Santa Cruz, em Lisboa, no Fórum Equidade e Acessibilidade na era Covid-19, promovido pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia.

Neste universo de 1.500 doentes, precisou, “a percentagem daqueles que ultrapassam o tempo máximo de resposta garantido é superior a 80%, ou seja, aquilo que foi determinado em Diário da República sobre os tempos de resposta clinicamente aceitáveis de facto não está a ser cumprido”.

Para Miguel Sousa Uva, é preciso fazer-se uma “reflexão de fundo” para corrigir esta situação.

“Acho que temos que refletir como podemos corrigir este drama, porque os doentes não só morrem - nós regularmente telefonamos ao doente para o convocar e respondem ‘o meu pai já faleceu’ -, mas sofrem e chegam pior à cirurgia”, salientou.

Para o especialista, são necessárias reformas de fundo na gestão e microgestão. Além da literacia em saúde, tem de haver literacia em gestão, que tem de ser transversal, bem como “uma melhor interligação entre os conselhos de administração e os diretores de serviço”.

Presente no fórum, o antigo ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, disse não se sentir confortável se existirem em Portugal 1.500 pessoas com indicação clínica para cirurgia e não serem operados dentro do tempo recomendado pelo médico.

Nestas situações, defendeu o médico e professor “o Estado deve pedir ajuda fora” e quem paga essa ajuda é a unidade que não consegue realizar a cirurgia.

Na sua perspetiva, “é inconstitucional, é imoral, é clinicamente inaceitável” que alguém que tenha “uma intervenção clínica, que paga impostos, que tem indicação do médico para ser operado”, não o seja a tempo e horas quando há o dispositivo SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia).

“Isto num estado normal de direito teria consequências”, afirmou, sublinhando que o SIGIC “não é uma coisa para destruir o SNS”.

Adalberto Campos Fernandes explicou que se o hospital não consegue fazer a cirurgia dentro do tempo recomendado tem de recorrer a outra entidade pública ou privada, qualificada para aquele fim. “Mas isso tem sido muito difícil. É uma batalha estritamente ideológica”, lamentou.

Questionado pela agência Lusa sobre esta situação, o coordenador do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares da Direção-Geral da Saúde (DGS), Filipe Macedo, defendeu que o doente deve ser operado no tempo de resposta necessário para “um bom desfecho da sua cirurgia”.

“É um problema que localmente as administrações hospitalares juntamente com as ARS [Administrações Regionais de Saúde] devem tratar, para contratualizar com quem de direito e resolver o problema desses doentes que não podem atempadamente ser tratados nos hospitais públicos”, disse o cardiologista do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto.

Por outro lado, há doentes que não querem ser operados fora do hospital onde estão a ser acompanhados.

Nesse sentido, defendeu Filipe Macedo, “é muito importante” que os médicos expliquem aos doentes que “o retardar uma operação é muito pior”.

“É um facto que os doentes têm muita confiança no Serviço Nacional de Saúde e têm uma relação fortíssima com o médico assistente, mas se este lhe explicar as reais vantagens de ser operado num outro hospital com qualidade semelhante ao de hospital público isso seria uma forma de ultrapassar os receios normais do doente”, sustentou.