
Raquel Varela, historiadora e autora do livro "Do Medo à Esperança" / Direitos Reservados
"Os quadros mais notórios e frequentes são a depressão, a doença psicossomática e os conflitos laborais, com pesados custos para o indivíduo e para a sociedade. Nos dias de hoje, a morbilidade por exaustão no trabalho inunda as consultas médicas e psicológicas", refere o psiquiatra Coimbra de Matos no livro "Do Medo à Esperança", recentemente lançado em Lisboa.

"Do Medo à Esperança" é transcrição de uma longa conversa, mantida durante os primeiros meses de 2016, entre o psiquiatra António Coimbra de Matos, 87 anos, e a historiadora Raquel Varela, 37 anos, sobre o estado geral em que se encontra a sociedade portuguesa contemporânea. "Nós constatámos que a sociedade portuguesa é uma sociedade com graves depressões individuais. O número de depressões está a aumentar e o estado de desmoralização nos locais de trabalho, profundamente competitivos e torturadores, está também a aumentar", diz Raquel Varela. O SAPO Lifestyle esteve à conversa com os autores.
SAPO Lifestyle: Os portugueses têm medo de quê?
António Coimbra de Matos: Da crueldade do Homem (como todos os intramundanos).
Raquel Varela: Quem vive do trabalho tem medo de perder o emprego; quem vive ociosamente tem medo de ter que trabalhar; quem quer trabalhar tem medo de não ter trabalho; quem vive de rendas tem medo de ser taxado; os estivadores têm medo dos patrões; os patrões têm medo dos estivadores; quem tem 100 000 euros no banco tem medo de um banco falir; quem está desempregado num bairro social tem medo de não ter comer amanhã; quem tem créditos bancários e uma vida média razoável tem medo de sair do Euro. Todos têm medo da mãe (risos) e todos têm, quer saibam ou não, medo da solidão, medo de não ter a quem amar, medo de não ser amado.
António Coimbra de Matos: Numa sociedade desigual todos têm medo.
SAPO Lifestyle: Existem profissões tendencialmente associadas a doenças. Um atleta por exemplo poderá ter mais problemas musculares. Mas que profissões podem desencadear doenças silenciosas do foro mental sem que ninguém se aperceba?
António Coimbra de Matos: As de filho, discípulo e dependente.
Raquel Varela: (Risos) Bem disse que a culpa era da mãe!
António Coimbra de Matos: E do filho se não se empoderar.
Trabalha-se cada vez pior, porque não há divisão das responsabilidades, mas uma hierarquia de comando
SAPO Lifestyle: Como é que descreveria o método de trabalho dos portugueses? Existem características em comum?
António Coimbra de Matos: Submissão e revolta. Excesso de inibição, escassez de criatividade. Exige-se mais participação nos projetos, escolhas e sobretudo decisões.
Raquel Varela: A divisão do trabalho coloca as pessoas a fazer sem pensar. Nas empresas há uns que pensam, definem a estrutura de trabalho, objetivos e uma ampla a maioria que executa. Trabalha-se mal assim, cada vez pior porque não há divisão das responsabilidades, mas uma hierarquia de comando. Esta divisão é a essência da “alienação”, do desinteresse pelo trabalho. A falta de resistência é o caminho aberto à depressão/solidão.
SAPO Lifestyle: Como é que os portugueses vêm a figura do chefe?
António Coimbra de Matos: Patrão e dono.
Raquel Varela: Muitos nem acham que têm patrões. Acham que são donos da empresa onde são meros trabalhadores. Vestem a camisola que tem o fedor alheio. Tecnicamente chama-se falta de consciência, numa conversa privada chama-se estupidez...
António Coimbra de Matos: Só se deve vestir a camisola própria ou da/o parceira/o.
SAPO Lifestyle: O conceito “amor” e o valor que se lhe atribui varia de cultura para cultura. Ou o amor é universal?
António Coimbra de Matos: Varia na forma, a natureza é universal – vínculo afetivo privilegiado.
Raquel Varela: Sim, concordo.
SAPO Lifestyle: Às tantas no livro lê-se que os portugueses sofrem de inibição de ação. Porquê e como? É histórico? É uma herança da ditadura?
António Coimbra de Matos: 300 anos de Inquisição e Aliança clero e poder político-económico.
Raquel Varela: (risos) ... É isso, mas eu diria com um interregno em 74 e 75 – dividimos responsabilidades, fomos mais felizes, acreditámos no futuro, perdemos o medo. Como definiu um estivador da Madeira a revolução para o Padre Martins “Oh Sr. Padre! Agora já pode tomar um fôlego!”.
António Coimbra de Matos: E olhar para as mulheres. Se não, o corpo encolhe e o espírito apodrece.
SAPO Lifestyle: O medo está ligado ao fascínio? Existe alguma espécie de relação entre ambos?
António Coimbra de Matos: A ligação é colateral: a excessiva idealização do objeto pode condicionar uma inferiorização do sujeito. A pessoa atrai a pessoa na razão direta das feromonas e inversa do cubo do perfume usado.
Raquel Varela: Não sei responder.
SAPO Lifestyle: É possível aprender a não ter medo? Como?
António Coimbra de Matos: Reconhecendo que a estupidez humana é infinita e genérica. Conhecendo e reconhecendo – voltar a conhecer, refletir. Pensamento pensante e não a ruminação do já pensado. O Homem pensa, o boi rumina.
Raquel Varela: Sim, conhecendo. Não temos medo se conhecermos o caminho, não temos medo de alguém se a conhecemos e confiamos; não temos medo de estudar se sabemos como estudar. Temos medo do desconhecido. Mas tudo o que é conhecido começou por ser desconhecido – as pessoas saudáveis não têm medo do novo, nem têm medo do erro. Pior do que nos desiludirmos com os outros é não apostar nas pessoas, um amor falhado é a aprendizagem para o novo amor.
SAPO Lifestyle: E a ter esperança? Também se aprende?
António Coimbra de Matos: Tendo ambição. A esperança conquista-se, não se espera.
Raquel Varela: Acrescento só que, como o medo, tudo parte do conhecimento e estudo, dos problemas e soluções. Conhecer, conhecer, conhecer, perguntar. E não ter medo de falhar.
SAPO Lifestyle: Qual é o seu maior medo? E a sua maior esperança?
António Coimbra de Matos: Não ter tempo para fazer o que me falta fazer. Transmitir um legado cultural válido. Good, giving, game, - bom, generoso, corajoso.
Raquel Varela: O maior não digo. O segundo maior é tornar-me naquilo que vejo ser dominante como valores relacionais e morais na sociedade: cobardia, falta de frontalidade, canalhice, cinismo, ou seja, que a competição em que vivo, como todos, me transforme nos seres tão pusilânimes que pululam na nossa sociedade. A esperança encontra-se quando nos aproximamos e construímos relações – de amor, de afeto, de bairro, de trabalho – perto de quem é são e corajoso, são eles que nos salvam.
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