1. Dos princípios
Quando há cerca de século e meio, na Europa mais industrializada, se deram os primeiros passos para o “contrato social” da universalidade do acesso aos cuidados de saúde, atingiu-se um novo patamar civilizacional para as sociedades humanas – uma fórmula solidária, segundo a qual cada um contribui de acordo com os seus rendimentos, enquanto pode, para receber segundo a suas necessidades, quando precisa. Em Portugal e noutros países com percursos socioeconómicos e culturais similares, a realização desse contrato social é da responsabilidade de um Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Há precisamente 10 anos, na sessão inaugural do primeiro Congresso da “Fundação para a Saúde – SNS” (SNS: Património de Todos), António Arnaut lembrou-nos que “o SNS é um património moral irrenunciável da nossa democracia porque é indispensável à cidadania, à dignidade individual e à justiça coletiva”.
No mesmo Congresso, perante uma ampla participação na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa, então Reitor daquela universidade,
afirmou: “Era mesmo disso que estávamos a precisar. De aprofundar a democracia… e o futuro? (citando António Sérgio) …o futuro existe como ideia. O que constitui uma nação não é uma causa eficiente: é sempre, sim, uma causa final – um projeto, um plano, uma ideia do que há de ser”.
Pouco tempo antes, do outro lado do Atlântico, Julian Tudor Hart, figura de referência no desenvolvimento do SNS inglês, exprimia com similar eloquência o significado do National Health Service (NHS): “O NHS é uma extensão da nossa cidadania, que materializa a nossa genuína preocupação de uns pelos outros”.
Mas a história não acaba aqui – é indispensável acrescentar que o cumprimento da promessa da realização desse contrato social, confronta-se, sempre, mas sempre, com inúmeras e significativas dificuldades. Isso quer dizer que não basta “pensar, construir e instalar” um SNS – é indispensável desenvolver os modelos e instrumentos de governação e governança capazes de o salvaguardar, fazê-lo evoluir e responder aos novos desafios que continuamente enfrenta.
2. Das dificuldades a superar
Como seria de esperar, nas duas últimas décadas, têm-se acumulado situações adversas no desenvolvimento do SNS: (a) insuficiências orçamentais face às necessidade existentes, agravadas pelas cativações dos orçamentos adotados, especialmente gravosas tendo em conta o envelhecimento da população portuguesa, (b) perda de profissionais de saúde para o setor privado, para a emigração e para a aposentação, associada às dificuldades de acesso aos cuidados de saúde, (c) inercia na modernização da administração pública indispensável para a flexibilização das respostas dos serviços de saúde (d) inovações tecnológicas cuja adoção levanta, frequentemente, dificuldades organizacionais e financeiras (e) agendas políticas e interesses económicos adversos ao desenvolvimento do SNS (f) situações estas agravadas por duas crises recentes (financeira e pandémica) muito significativas quanto ao seu impacto no sistema de saúde.
O que afinal surpreende é a extraordinária impreparação para fazer face a tanta adversidade previsível. É como se não existisse um contexto real, complexo e volúvel onde as coisas vão acontecendo. E sobre isso, o que hoje nos é dado assistir não poderia se mais eloquente: convergência óbvia de múltiplas ameaças ao bem-estar e à democracia – os efeitos há muito ignorados das alterações climáticas e do empobrecimento da biodiversidade, as tensões associadas às tentativas de transição energética, a guerra próxima e espantosamente tolerável, ruturas em cadeias de distribuição e pressões inflacionárias (e porventura recessivas), rápidos realinhamentos geoestratégicos em curso, onde imperam múltiplas formas de autoritarismo e de insensibilidade óbvia pelo sofrimento das pessoas. Tudo isto tem efeitos diretos e indiretos sobre os sistemas de saúde, que é necessário antecipar e gerir.
3. De uma década perdida – que ensinamentos?
Do essencial daquilo que se passou no “Congresso SNS: Património de Todos” de há 10 anos, acima referido, há que atribuir especial importância à ideia de que para realizar o contrato social que o SNS representa, haveria que desenvolver instrumentos de governação capazes de objetivar, pelo menos o seguinte:
(a) As aspirações de bem-estar dos portugueses;
(b) Os resultados esperados do desempenho do SNS;
(c) As garantias proporcionadas aos portugueses sobre o acesso, a qualidade e a segurança dos cuidados e serviços disponíveis;
(d) Os recursos necessários para assegurar as aspirações, os resultados e as garantias consideradas aceitáveis.
Trabalho por fazer!
Há 9 anos, a Fundação Calouste Gulbenkian publicou um estudo, muito detalhado e participado, sobre “Um Futuro para a Saúde” – todos temos um papel a desempenhar”. Entre muitos outros aspetos, o estudo presta especial atenção à necessidade de criar capacidades específicas relativas à gestão da mudança do sistema de saúde português e também à importância de estabelecer as indispensáveis provisões financeiras que essa gestão requer. O estudo foi apresentado a todos os partidos políticos na Assembleia da República.
Ficou esquecido!
Existe uma relação demasiado ténue entre o conhecimento e o desenho e implementação das políticas públicas no país.
Custa-nos gerir as mudanças necessárias. E esta não parece ser uma dificuldade específica de um governante ou de uma formação partidária em particular. O que parece obviamente faltar é um modelo e os instrumentos de governação e governança de que necessitamos para responder aos desafios do nosso tempo.
Necessitamos de um dispositivo identificável e capaz de análise, planeamento e direção estratégica para o sistema de saúde português e para o SNS.
Não o temos, ainda.
Só desta forma poderemos abordar efetivamente, de uma forma sistémica, a extraordinária complexidade dos sistemas de saúde, abandonando e improfícua gestão de “dossier a dossier”, a curto prazo.
Isto implica outra forma de gerir a informação e o conhecimento e a participação das pessoas. Num mundo de informação e conhecimento amplamente distribuídos há que abandonar a clássica “inteligência hierarquia”. É indispensável promover ativamente uma “inteligência colaborativa” que envolva as profissões e também as pessoas. E dar a estas a propriedade efetiva da sua informação de saúde e a responsabilidade de a gerir em parceria com os seus cuidadores.
Já é tempo para que isso aconteça de facto!
E finalmente o Estado. Só um Estado verdadeiramente empreendedor – não o velho “Estado marreta” – proporcionará aos portugueses a qualidade de serviços públicos de que necessitam.
Constantino Sakellarides
Professor Catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa.
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