Os traumatismos cranianos graves, uma das principais causas de dano cerebral adquirido (DCA), são quase sempre tratados no Serviço Nacional de Saúde (SNS). É no setor público que se salvam vidas, que se fazem as primeiras intervenções, que se inicia o longo processo de reabilitação. Mas à medida que o setor privado da saúde cresce em dimensão e influência, impõe-se uma pergunta: o que sabemos sobre o que se passa nos hospitais privados?
A resposta é desconcertante: muito pouco. Apesar do número crescente de unidades privadas, a informação sistematizada sobre os casos de DCA tratados nesses contextos é praticamente inexistente. Não há dados públicos, relatórios regulares ou sequer estimativas fiáveis.
Esta assimetria resulta do facto de o setor privado da saúde operar sem que haja obrigação legal de reportar casos, muito menos de partilhar dados anonimizados com o sistema nacional. É uma cegueira estatística que afeta não só o Estado, mas sobretudo as pessoas.
A ausência de informação não é uma falha técnica e para as famílias e cuidadores de pessoas com DCA, a falta de dados significa não poder tomar decisões informadas. Escolher um hospital, um centro de reabilitação ou um plano terapêutico torna-se um jogo de adivinhação. Como planear o acompanhamento de um familiar se não se conhece a taxa de sucesso dos tratamentos? Como confiar num sistema que esconde parte da realidade?
Lá fora, há exemplos que mostram que esta opacidade não é inevitável. Em países com sistemas de saúde mistos, como a França ou a Suécia, existe uma partilha regular de dados entre o setor público e o privado. A informação é tratada de forma segura, mas está acessível para fins de planeamento, investigação e avaliação de políticas. O resultado é mais transparência, mais justiça e melhores cuidados.
Em Portugal, continuamos sem saber quantos casos de DCA são tratados no setor privado, com que recursos, com que resultados. Esta ausência de dados impede o desenho de políticas equitativas e compromete o direito à saúde. É hora de reconhecer que a transparência é um dever, não uma opção.
É preciso, com urgência, regulamentar a obrigatoriedade de reporte de dados clínicos anonimizados por parte das unidades privadas. A reabilitação neurológica não pode ser uma área nebulosa, gerida à margem do escrutínio público. O Estado tem a responsabilidade de garantir que todos os intervenientes do sistema de saúde, públicos e privados, contribuem com informação clara, fiável e acessível.
As organizações como aquela a que eu estou ligada conhecem esta realidade por dentro, porque acompanhamos, orientamos e, muitas vezes, amparamos quem ficou sem apoio. A informação é poder e, no caso do DCA, pode transformar vidas.
Portugal precisa de abrir os olhos ao que se passa nos seus hospitais privados. Porque enquanto isso não acontecer, estaremos sempre a tratar apenas parte do problema e a deixar demasiadas pessoas para trás.
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