“O acesso à saúde e à inovação são dois dos maiores contributos que a indústria farmacêutica pode dar de um ponto de vista de sustentabilidade”, disse-nos Daniel Guedelha, Chief of Staff na Indústria Farmacêutica, numa conversa sobre sustentabilidade na sua área, em Portugal, o seu país, e na Suíça, onde trabalha há 14 anos.
Healthnews (HN)- Como é que a indústria farmacêutica encara a sustentabilidade?
Daniel Guedelha (DG)- A sustentabilidade é muitas vezes associada à componente ambiental, mas existem outros fatores que são igualmente muito relevantes e que podem ser divididos em três grandes áreas: E, S, e G. O ESG (do inglês: Environmental, Social and Governance) corresponde a fatores de natureza ambiental, social e de governança.
Na área da saúde, e em particular na indústria farmacêutica, o “S” (Social) tem um impacto muito maior, sobretudo no que toca ao acesso que as pessoas têm aos medicamentos. São vários os exemplos que se podem dar da boa aplicação de ESG, nomeadamente a aposta que algumas empresas farmacêuticas fazem em desenvolver medicamentos para doenças que são prevalentes em países em desenvolvimento, como os casos da malária ou da lepra. Outro exemplo está relacionado com as fases iniciais de desenvolvimento dos medicamentos e a forma como as empresas começam a pensar em estratégias que permitam que os seus produtos possam chegar aos países em desenvolvimento. Muitos destes países têm limitações nas suas infraestruturas. Por exemplo, um medicamento que exija uma cadeia de distribuição refrigerada terá maiores dificuldades em ser fornecido nesses países.
Em 2021, a prestigiada organização Access to Medicines Foundation voltou a publicar um ranking das empresas farmacêuticas que se têm destacado no que toca ao acesso dos seus produtos ao mercado. Neste ranking, são contemplados três fatores: gestão do acesso, investigação & desenvolvimento e entrega dos produtos. Tendo em conta estes elementos, as empresas GSK, Novartis e Johnson & Johnson surgem nos três primeiros lugares, respetivamente.
HN- O Daniel está envolvido no Podcast CRUZAMENTO. Quer falar-nos um pouco sobre este projeto?
DG – Desde 2020 que co-lidero o Podcast CRUZAMENTO, juntamente com o meu amigo André Correia. Na primeira série olhámos sobretudo para o cruzamento entre a saúde e a tecnologia. No início de 2022 e na continuação do enorme sucesso do podcast, lançámos a série 2, onde estamos a entrevistar personalidades ligadas às áreas da saúde, tecnologia e sustentabilidade. Nas nossas entrevistas, procuramos trazer ideias novas, perspectivas diferentes e desafiadoras.
Sendo o tópico da sustentabilidade cada vez mais relevante, temos vários episódios em que procuramos também contribuir para informar de forma credível os nossos ouvintes. Igualmente de salientar o apoio que temos tido de importantes órgãos de comunicação social, como a Health News e o Jornal Público.
HN- Disse no seu Podcast CRUZAMENTO que “as empresas devem apostar nos fatores ESG, selecionando aqueles em que podem ter mais impacto, pois só assim vão conseguir garantir a sustentabilidade das suas organizações”. Usando o exemplo da sua indústria, de que fatores estamos a falar? Qual a sua importância?
DG – Uma das formas de perceber quais as áreas que podem ter mais impacto nas empresas é através do materiality assessment, uma ferramenta usada para identificar e dar prioridade aos fatores ESG que são mais relevantes para as organizações.
Na indústria farmacêutica, as empresas procuram fazer esta análise de forma regular. Olhando para os fatores ESG, é o “S” (Social) que tem maior impacto nesta indústria, sobretudo no que toca ao acesso dos doentes aos medicamentos. Do materiality assessment feito por várias empresas farmacêuticas, são de destacar: a saúde e segurança do doente; acesso aos medicamentos e à inovação.
O primeiro está relacionado com a importância de serem produzidos medicamentos que sejam eficazes para tratar as doenças e que sejam ao mesmo tempo seguros. O segundo está relacionado com o acesso aos medicamentos e da inovação aos doentes.
O ESG é cada vez mais relevante no mundo empresarial, e os consumidores, que estão cada vez mais informados, penalizam as organizações que não demonstrem um foco nas componentes em que têm maior impacto na sociedade. Tal como referido por uma análise efetuada por George Serafeim, da universidade de Harvard, a aposta nas áreas em que as empresas têm maior impacto está correlacionada com maiores retornos financeiros.
HN- O Daniel está a trabalhar há quase 14 anos na Suíça, que é um dos maiores centros mundiais da indústria farmacêutica. Qual é a razão para o sucesso da Suíça e como olha para Portugal?
DG- Gostaria de começar por dizer que eu adoro Portugal e quero muito contribuir da forma mais direta possível para o nosso país e, caso as oportunidades surjam, continuar a trabalhar e participar em projetos em Portugal.
Tal como referiu, há quase 14 anos que trabalho na Suíça, entre outros países europeus, e tenho observado de perto a dinâmica do cluster da indústria farmacêutica, um dos mais importantes neste país.
Tenho aprendido imenso, nomeadamente na área da saúde e da indústria farmacêutica. De facto, a criação de um setor industrial/económico forte e competitivo passa por um processo longo. A indústria farmacêutica na Suíça teve origem há mais de 200 anos na indústria têxtil. Depois de uma evolução que passou pelos químicos (fertilizantes e pesticidas), chegou mais recentemente à biotecnologia.
O país tem um ecossistema que permite a forte proximidade entre start-ups, grandes multinacionais (Roche e Novartis) e universidades de topo (ETH Zurich, EPFL – Lausanne). Num sector em que são necessários trabalhadores altamente qualificados, a capacidade de inovação é crucial, e, segundo o relatório de 2022 do Institute for Management Development (IMD) sobre a competitividade dos países, a Suíça ocupa o segundo lugar mundial (Portugal é 42.º). Além disso, é um país que aparece em diversos rankings como dos melhores países para se viver.
Talvez possa parecer um sonho demasiado ousado Portugal ambicionar ter uma indústria farmacêutica como a da Suíça. Contudo, devemos almejar um posicionamento mais competitivo neste sector tão exigente a nível de investimento. De acordo com um artigo da consultora Mckinsey, o custo estimado para colocar um medicamento no mercado é, em média, de 2,2 mil milhões de euros. A criação de uma grande empresa farmacêutica portuguesa com vendas superiores a mil milhões de euros permitiria criar músculo financeiro nacional e, quiçá, uma empresa farmacêutica de dimensões médias no contexto europeu.
HN- Em jeito de conclusão e cruzando a indústria farmacêutica, doenças globais e as alterações climáticas…. um futuro sustentável passa por…
DG- Tal como referi anteriormente, o acesso à saúde e à inovação são dois dos maiores contributos que a indústria farmacêutica pode dar de um ponto de vista de sustentabilidade.
Eu gosto de dar exemplos e números. De facto, mais de dois mil milhões de pessoas não têm acesso a medicamentos. Precisamos de continuar a apostar em Saúde Global (do inglês “Global Health”).
Em 2020 estima-se que tenham morrido no mundo mais de 627.000 pessoas só de malária. É certo que 95% destas mortes foram registadas em África, mas, de acordo com um recente artigo publicado no “The Telegraph”, as alterações climáticas vão aumentar a prevalência de doenças como a malária no hemisfério norte, nomeadamente na Europa.
Mesmo que hoje essas doenças estejam sobretudo presentes no hemisfério sul, começa a ser claro que fatores como as alterações climáticas vão acabar por trazer essas doenças para regiões como a Europa. Vivemos num mundo global e as doenças vão continuar a espalhar-se a uma velocidade cada vez maior, tal como ficou muito visível com a Covid-19.
Também por essa razão é importante atuarmos já. É importante acelerar o combate às principais doenças globais e colaborar com outros países para melhorar o acesso aos medicamentos e à inovação.
Entrevista de Rita Antunes
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