Enquanto Bastonário, “vou fazer questão de criar uma agenda capaz de responder aos problemas do país”, diz Carlos Cortes. “Percebo que seja muito mais fácil reagir imediatamente a cada constrangimento, como a tutela está a fazer, mas a solução não deve ser essa. Precisamos de uma solução de fundo. Parece que os políticos não conseguem ver para além de um período eleitoral… Só olham para dentro do seu mandato, mas as doenças não têm a duração de uma legislatura”.

HealthNews (HN) – Como têm decorrido estes primeiros dias enquanto Bastonário da OM?

Carlos Cortes (CC) – Desde dia 16 de março que tenho trabalhado sem parar. Estes primeiros dias têm sido de grande e boa expectativa relativamente ao futuro que se avizinha. Dos dossiers de que tive até agora conhecimento, percebi que há um espaço muito grande para a Ordem dos Médicos conseguir melhorar, desenvolver, aperfeiçoar e modernizar-se mais. O facto de existir esta expectativa é algo que me agrada porque significa que vou ter a oportunidade de marcar uma mudança e uma nova linha. Por outro lado, tenho de sublinhar o envolvimento das pessoas. Há uma sensação muito agradável de toda a gente estar focada nos mesmos objetivos: melhorar a Ordem dos Médicos, defender os médicos e as suas condições de trabalho e o posicionamento da Ordem dentro da sociedade.

HN – Assume o cargo de bastonário num momento particularmente difícil para o Serviço Nacional de Saúde. Nunca antes tínhamos tido tantas notícias sobre desastres que vão marcando o dia-a-dia do SNS, com milhões de utentes sem médico de família, serviços de urgência a encerrar e até greves de médicos. Como é que explica este aparente “afundar” do SNS?

CC – As dificuldades do SNS sempre existiram. No entanto, nos últimos tempos temos verificado que as carências do SNS foram sendo acumuladas, levando a que neste momento estejamos numa fase muito complicada. Estamos a sair de uma crise económica e financeira que se iniciou em 2008 e que teve um impacto muito grande no nosso país. Recordar-se-á que um dos setores mais penalizados no início da década anterior foi precisamente o da saúde, agravando as condições de acesso a cuidados de saúde. Mais tarde, quando já todos pensávamos que este problema tinha passado, assistimos a uma pandemia. A Covid-19 teve efeitos sobretudo negativos, uma vez que teve forte impacto na saúde pública e a nível económico. Na saúde houve uma hiperfocalização no tratamento do vírus, desvalorizando, e mal, outras áreas. Não houve uma preocupação com os doentes não-covid durante este período. As doenças metabólicas, cardiovasculares e oncológicas foram agravadas com esta hiperfocalização na Covid-19, o que levou a um deficiente acompanhamento.

HN – E com uma nova guerra na Europa, o cenário ensombra-se…

CC – Quando pensávamos que, com a pandemia controlada, íamos conseguir resolver estas situações, assistimos a uma guerra com impactos económicos e financeiros, com reflexos negativos no setor da saúde. Tal como disse há pouco, concordo com a ideia de que o SNS está verdadeiramente a afundar-se, mas é um “afundamento” que está a acontecer há já muitos anos. E quando pensámos que a nova equipa ministerial viesse apresentar uma visão diferente dos problemas, tal não aconteceu.

HN – Que visão é essa?

CC – A visão diferente de que estou a falar é, em primeiro lugar, não estar de costas viradas para os profissionais de saúde. Infelizmente o que aconteceu, nos últimos anos, foi que o Ministério da Saúde tomou decisões contra estes profissionais. Ninguém pode esperar ter bons resultados, confrontando quem trabalha para si. Foi isto o que aconteceu e acabou por desmotivar muitos médicos, que optaram por sair do Serviço Nacional de Saúde. Com isto não estou a dizer que a nova equipa do ministério esteja a adotar a mesma postura, mas, de facto, ainda estamos a aguardar pelas negociações sindicais.

HN – A FNAM chegou a dizer que a única resposta que está a ser dada pelo Diretor-Executivo do SNS é encerrar serviços. Como olha para esta crítica que é feita?

CC – Estou absolutamente convencido de que não podemos continuar a resolver os problemas do SNS com um penso rápido e que os problemas só são tratados por uma questão de agenda de opinião pública. Aquilo que se estava à espera do Ministério da Saúde – e que era pedido por todos os stakeholders – era o início de uma reforma de fundo. Lamento dizê-lo, mas não há um problema das maternidades, não há um problema dos serviços de urgência de pediatria, não há um problema do serviço de urgência geral… há, sim, um problema do Serviço Nacional de Saúde. Temos atrasos nas primeiras consultas, temos listas de espera enormes nas especialidades cirúrgicas, temos falta de médicos de família… Portanto, temos um problema de fundo que precisa de ser resolvido. Infelizmente, aquilo que constato é uma enorme inabilidade na gestão da resposta que tem que ser dada ao SNS. Não é uma resposta de penso rápido que vai resolver os problemas…

HN – Aparentemente, no meio desses “tapa buracos”, há uma linha condutora sobre algo mais estrutural – as Unidades Locais de Saúde. Concorda com esta nova aposta, tendo em conta que se trata de um modelo para o qual ainda não existe evidência científica de que seja uma solução eficaz? Há estudo internacionais que revelam que é uma solução mais cara e que cria constrangimentos ao bom funcionamento…

CC – Estou muito à vontade para falar sobre as Unidades Locais de Saúde porque visitei-as todas durante a minha campanha. A conclusão que eu retiro é que não sei se há virtudes no modelo. O que nós temos de ter, para tudo funcionar bem, são boas lideranças. Vi uma ou duas ULS relativamente às quais posso afirmar que funcionavam relativamente bem… Todas as outras são um absoluto desastre. A ideia do modelo de ULS é termos um sistema de integração vertical que ligue o hospital com os cuidados de saúde primários. Ora, não é isso o que acontece. Este modelo está concentrado no hospital, desvalorizando os cuidados de saúde primários. O financiamento é global, per capita, e o que os hospitais fazem é pegar nesse dinheiro e colocá-lo todo no serviço de urgências. Portanto, a grande crítica que eu faço é o perigo da urgencialização do sistema de saúde.

HN – Mas é o caminho que parece que está a ser tomado…

Sim. É um erro enorme. É a destruição do SNS. Concentrar tudo no serviço de urgências está a levar a que muitos médicos sejam retirados dos serviços, das enfermarias e das consultas. Isto impede que este possam acompanhar os seus doentes, agravando o seu quadro clínico. Não havendo esta ligação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde secundários nas ULS, os cuidados primários acabam por não ter capacidade de resposta.

Vi muitos hospitais que, com o ACES da sua zona de referência, funcionavam muito bem. E porquê? Porque tinham protocolos muito bem definidos entre os médicos de família e os médicos de especialidades. Estes profissionais sabiam como é que tinham de referenciar os seus doentes para o hospital. Havia um verdadeiro diálogo e um trabalho de equipa. Tínhamos uma saúde verdadeiramente integrada, algo que não vi em muitas ULS. Portanto, se o doutor Fernando Araújo quer avançar com este modelo, tem de definir muito bem qual o papel do médico de família, o papel do médico de especialidade e como é que a ligação do seu trabalho é feita.

Tenho muita dificuldade em aceitar esta tentativa de replicação de soluções. Há umas que funcionam bem na região Norte, mas que podem não estar adaptadas ao Centro e ao Sul do país. Cada caso é um caso. Como sabe, andei quatro ou cinco meses em campanha e visitei praticamente todos os hospitais e USF do país. Durante este período, percebi que somos todos diferentes. As pessoas e as culturas são distintas.

HN – Ainda não ficou muito claro como é que se integra uma USF numa ULS; uma funciona em direção vertical e a outra com um modelo de auto-gestão…

CC – Esse um problema que nos preocupa. Outro aspeto: nunca ninguém fala do papel dos médicos de saúde pública dentro de uma ULS. Qual é o seu papel? Não podemos ignorar o facto de a direção da ULS estar no hospital. Por mais que possa haver um representante dos cuidados de saúde primários, este está inserido num ambiente hospitalar.

A grande preocupação que deveria existir, e é algo que o doutor Fernando Araújo vai ter de perceber, é que tem de haver uma boa comunicação entre os profissionais de saúde.

HN – Não é o que tem acontecido…

CC – Pois não. É preciso definir canais de comunicação. Se há um médico que quer referenciar o doente para o centro de saúde, como é feita essa referenciação? Ou se um médico de família tem alguma dúvida e precisa do apoio da especialidade, como é que faz? É necessário criar instrumentos digitais para poder ter essa ajuda. É claro que também têm de ser criados critérios e parâmetros para a referenciação dos doentes para a especialidade. Isso não existe e, enquanto não existir, obviamente vamos assistir a uma urgencialização dos cuidados de saúde.

HN – Até agora não nos foi explicado por que razão se encerram serviços de urgência e qual a mais-valia desta solução.

CC – São os tais pensos rápidos de que tenho falado. Não é isto que eu pretendo para o sistema. Enquanto Bastonário, vou fazer questão de criar uma agenda capaz de responder aos problemas do país. Percebo que seja muito mais fácil reagir imediatamente a cada constrangimento, como a tutela está a fazer, mas a solução não deve ser essa. Precisamos de uma solução de fundo. Foi esta a mensagem que quis passar no dia da minha tomada de posse. Parece que os políticos não conseguem ver para além de um período eleitoral… Só olham para dentro do seu mandato, mas as doenças não têm a duração de uma legislatura.

HN – A questão ideológica foi rejeitada pelo atual ministro, tendo este e o Diretor Executivo admitido que, caso fosse necessário, iria recorrer-se ao setor privado, mas até agora não vimos nenhuma medida concreta. Como explica que ainda não tenhamos visto implementadas essas medidas? Acredita que é um problema ideológico?

CC – Talvez. Para muitas pessoas é uma questão ideológica, mas eu não tenho preconceitos ideológicos quando se trata da saúde das pessoas. Sou defensor do acesso universal aos cuidados de saúde para todas as pessoas. Sou médico do SNS e já tive muitos convites para ir trabalhar para o setor privado, mas nunca quis.

HN – Por que razão?

CC – Porque tenho este sentido do bem público e entendo que tenho que dar de mim ao bem público. É por isso que considero que o SNS tem de estar capacitado para dar as respostas de que a população necessita. Se não estiver, vai precisar da colaboração do setor social e privado. Não concordo que se mantenham listas de espera simplesmente porque não se quer estabelecer uma relação com o privado.

HN – Ainda sobre os privados…Quais as razões que identifica para o fim das PPP, sendo que estas parcerias demonstraram gerar poupanças ao Estado?

CC – É estranho que, se for uma gestão pública, esta é considerada incompetente, mas se for uma gestão privada já não é. Não é que eu tenha nada contra das PPP, mas para mim é uma “fatalidade” que me custa muito entender. O que eu acho é que o Governo tem que capacitar as administrações para poderem gerir bem os hospitais. É por isso que digo que as lideranças fazem toda a diferença. Não acredito em golpes mágicos, em que implementamos ULS em todo o país e que vai tudo correr bem. Mas acredito nas pessoas. São estas que fazem as instituições funcionar… Defendo a liderança médica. Há estudos que comprovam que quando os hospitais são liderados por médicos, estes apresentam melhores resultados.

HN – Os custos da saúde constituem um desafio? Quais as soluções que apontaria para resolver este problema?

CC – A despesa pública em saúde corresponde a 5,8% do PIB. As recomendações da OCDE indicam que, para ter um sistema de saúde com capacidade de resposta à população, a despesa deve corresponder a, pelo menos, 6% do PIB. Portanto, podemos afirmar que os fundos destinados à Saúde resultam de decisões políticas e esta decisão tem sido a de subfinanciamento do setor público da Saúde. O Governo pode dizer que está a aumentar, mas vai aumentando abaixo daquilo que seria desejável.

E depois, há que ter em conta que, mesmo que esta percentagem estivesse atualmente acima, seria impossível resolver agora os problemas que se acumularam durante muitos anos por causa do subfinanciamento. Falo, por exemplo, do problema das infraestruturas. Há quanto tempo é que foi construído o último hospital? Há hospitais a cair aos pedaços. O Hospital de Évora é do século passado. E quando vemos as condições dos hospitais de Setúbal, Caldas da Rainha e de Torres Vedras, entre outros, ficamos com o coração apertado. Os médicos que lá trabalham exercem a sua atividade em condições absolutamente degradantes, com equipamentos obsoletos que só são atualizados quando deixam de funcionar. Cada vez que me lembro da urgência do Hospital de Setúbal, custa-me saber que há médicos a fazer 12 ou 24 horas nestas condições. Temos hospitais que não estão capacitados a nível de insfraestruturas para os profissionais de saúde desenvolverem a sua atividade.

Para se alcançar um financiamento adequado do SNS tem que haver uma opção política. Lamento dizer, mas a paixão pelo SNS não chega. Não chega estar apaixonado. É preciso ter ações concretas.

HN – Os orçamentos plurianuais podem ser necessários?

CC – Sim. Pode ser uma ideia para conseguirmos, a longo prazo, os projetos previstos para as instituições do SNS.

HN – Propõe-se uma reforma estrutural do atual modelo de carreiras médicas com diferentes mecanismos de acesso, avaliação e progressão. Como olha para esta proposta?

CC – A questão da carreira médica tem um problema que são as desigualdades. Há vários ministérios que tutelam os médicos e, infelizmente, em termos de carreira médica há enormes diferenças entre a carreira hospitalar, a carreira da medicina legal e da medicina geral e familiar. Portanto, um aspeto que eu considero relevante é a necessidade de termos uma visão e um tratamento igual da carreira para todos os médicos. Relativamente à questão da progressão, tem de se criar mais oportunidades. Sobre a questão da nota, é um debate complicado e preferia não dar a minha opinião pessoal para não influenciar essa discussão. Há quem entenda que só tem que haver uma avaliação qualitativa e há quem entenda que tem que haver uma avaliação quantitativa. Já percebemos que esta segunda levanta um problema complicado, que é a inflação da nota. Hoje em dia, não trabalhamos com uma nota de 0 a 20, trabalhamos com uma nota de 19 a 20. Ter abaixo de 19 ou 18 já é uma nota não tão boa. O modelo que temos hoje foi o modelo construído para tentar resolver um problema que temos há décadas. Os júris foram centralizados para tentar alcançar a uniformização das notas, mas não está a funcionar porque cada júri tem uma forma de apreciação diferente. Há aspetos que são muito subjetivos. Portanto, tem de haver outros modelos que permitam uma maior justiça entre os candidatos.

HN – Qual a sua posição sobre a criação de mais cursos de Medicina?

CC – Há um aspeto em que a Ordem dos Médicos vai ter de ser sempre muito exigente – a qualidade da formação dos médicos. Há pressões muito infelizes do poder político para formar mais especialistas. O Ministério da Saúde não vai poder contar comigo se assim for. A OM não está disposta a permitir a formação de profissionais sem qualidade. Se se quer formar mais médicos, então vão ter de se criar condições nos hospitais e nos centros de saúde. Não serve de nada criar mais faculdades de Medicina se não são criadas condições. O país precisa de médicos diferenciados.

HN – A carreira médica atualmente é pouco atrativa. São poucos os médicos bem remunerados e que têm possibilidade para investigar. Concorda?

CC – Penso que a profissão médica continua a ser muito atrativa. Esta ideia de altruísmo e de medicina romântica é algo que ainda cativa muitos jovens. No entanto, a carreira médica já não tem a mesma atração, fundamentalmente pela falta de condições de trabalho. Um médico que não consegue tratar os seus doentes é um médico infeliz.

HN – E essas condições de trabalho incluem também a oportunidade de desenvolvimento da sua carreira?

CC – Com certeza. Mas antes de falar nisso, é importante voltar à questão da formação. Os formadores têm de ter tempo no seu horário de trabalho. O ensino tem de ser considerado uma atividade nova e não acessória nos hospitais e centros de saúde. Se não existir formação deixa de haver Medicina. É aqui que entra a investigação que referia. Trata-se de um aspeto muito importante, pois a Medicina evolui com a investigação. Portanto, seria absolutamente necessário, dentro do horário de trabalho, que os médicos tivessem tempo para poder ensinar e investigar.

HN – Uma nota final…

CC – A nota final vai ser a mesma que deixei no meu discurso de tomada de posse. Sou um homem de esperança. Acredito verdadeiramente que a Ordem dos Médicos pode ajudar a construir um mundo melhor. Pode ajudar através de um espírito colaborativo, mas também com espírito de irreverência e exigência. Não vou ficar calado a olhar. Sempre que entender que as coisas não estão a correr bem farei algumas considerações publicamente, mas serei sempre muito leal. Irei ter uma perspetiva de representação da Ordem dos Médicos e de construção do país. Gosto do meu país, gosto de ser médico e vou desenvolver todo o meu esforço para melhorar as condições dos médicos e doentes.

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Entrevista MMM