A qualidade em saúde é uma temática que começou a ser desenvolvida há mais de 150 anos. Em 1850, durante a guerra da Crimeia, a enfermeira Florence Nightingale concluiu, através de investigação científica e de registos estatísticos feitos pela própria na altura, que a melhoria das condições de higiene e de ventilação dos hospitais favoreciam a melhoria de soldados tratados. A descoberta de Florence foi uma revolução no mundo da saúde, pois possibilitou evitar mortes, não só em contexto de guerra, tendo também sido adoptados projetos sanitários mais adequados para os hospitais desde então. Sem saber, foi uma das grandes contribuidoras para a evolução da qualidade dos cuidados.
Mais tarde, outros autores desenvolveram esta temática, mas foi a definição de qualidade de Avedis Donabedien que ficou a mais conhecida. Este médico definiu qualidade como “a maximização do bem-estar do doente” e todas as restantes definições basearam-se nesta.
Em 1999, nos Estados Unidos da América, com a publicação de To Err Is Human: Building a Safer Health System, um relatório conhecido mundialmente pela sua inovação na abordagem aos erros e incidentes em saúde que demonstrou a necessidade de implementar estratégias que aumentassem a segurança dos doentes. Este foi um documento essencial para avançar para um novo paradigma dos cuidados de saúde. Emergiram estratégias e medidas de aperfeiçoamento de processos, com vista a melhorar a qualidade e resultados em saúde. No início do século XXI, o conhecido Institute Of Medicine (IOM) atribuiu características como segurança, eficiência, eficácia, equidade, acessibilidade e centralidade no doente ao conceito de qualidade, tendo definido qualidade como a capacidade de os serviços de saúde “atingirem resultados desejáveis”.
Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) acabou por adotar a definição de qualidade do IOM, acrescentando a necessidade de aumentar resultados desejáveis ao conhecimento científico e profissional atual, reforçando a necessidade de uma medicina baseada na evidência da melhoria dos cuidados.
Em Portugal, a Direção Geral de Saúde (DGS) utiliza a definição de qualidade, não só centrada no resultado (melhor desempenho possível) mas no processo, referindo-se a qualidade como “fazer o melhor, no tempo certo e às pessoas certas, devendo ser feita no sítio certo e a um preço o mais baixo possível, de forma adequada às expectativas do cidadão”.
Sabe-se que a temática da qualidade em saúde tem sido alvo de interesse e crescimento nos últimos anos, quer a nível nacional, quer internacional. Tal como a DGS o transmite na sua definição, a qualidade em saúde e a segurança do doente são dois temas interligados e indissociáveis que, em conjunto, possibilitam a melhoria contínua e a promoção de cultura e políticas de segurança.
Os erros em saúde são considerados um grave problema de Saúde Publica, no nosso país e em todo o mundo. Esta problemática é responsável por elevadas taxas quer de morbilidade, quer de mortalidade, e contribuem negativamente para a sustentabilidade económica dos sistemas de saúde.
Segundo a OMS, os erros médicos ou erros associados aos cuidados de saúde (como gosto mais de lhes chamar) têm uma incidência comparável a doenças como a tuberculose e a malária. Estima-se que dos 421 milhões de internamentos anuais, 43 milhões sejam devido a incidentes decorrentes da prestação de cuidados. Quantos destes poderiam ser evitados?
Erros e eventos adversos aparecem muitas vezes de forma indesejada no decorrer dos cuidados de saúde prestados. Apesar de muitas vezes ouvirmos falar nestas terminologias, é importante clarificá-las e distingui-las.
Quando se fala em erros associados aos cuidados de saúde, fala-se de ameaças à segurança do utente. Estes resultam de falhas na integração das diferentes entidades envolvidas nos processos de prestação de cuidados. Por sua vez, os eventos adversos são acontecimentos que podem culminar em erros, danos ou mesmo na morte do doente. Estes eventos têm impactos negativos não só para os doentes, mas também a nível organizacional, profissional e económico.
Muitos dos desafios para o sistema de saúde residem na identificação de erros e eventos adversos, podendo este processo minimizar a sua incidência e aumentar a segurança do doente.
Várias são as estratégias propostas pelas mais importantes entidades de saúde no sentido de aumentar a segurança do doente. Explanar de forma sucinta a pertinência deste assunto possibilita a exploração dos fatores deste contexto, e cria espaço para emergir uma maior compreensão e sensibilização para a problemática.
Segundo o Plano Nacional para a Segurança dos Doentes 2015-2020, criado pela DGS, existem 9 dimensões a ser abordadas na questão da segurança do doente. Com o novo Plano 2021-2026, as restruturações das mesmas deram lugar a 4 grandes grupos de intervenção. Ambos os planos contemplam uma área destinada à gestão de incidentes e notificações.
A realização de notificações pode possibilitar a investigação da etiologia e tipologia de erros, de forma a identificá-los e caracterizá-los. Segundo a OMS, se os profissionais de saúde não realizam notificações e se as organizações hospitalares não reportam e publicam, os mesmos podem acontecer repetidamente, prejudicando a segurança dos doentes.
De forma a tornar possível a realização de uma base de dados de incidentes e eventos adversos nos cuidados de saúde, foram criados os sistemas de notificação. Estes são plataformas fundamentais para aperfeiçoar processos e melhorar a cultura de segurança.
Em Portugal, o Departamento da Qualidade da DGS, em 2013, criou o sistema nacional de notificações de incidentes e eventos adversos (SNNIEA), que um ano depois foi restruturado, dando lugar ao sistema atual – o Notific@. Esta é uma plataforma, anónima, confidencial e não punitiva, de gestão de incidentes, ocorridos nas unidades prestadoras de cuidados do sistema de saúde. Reforça-se que os profissionais de saúde devem expor tanto quanto possível qualquer evento que seja ou possa constituir uma ameaça à segurança do doente. Porém, é usual existirem dúvidas durante o processo de notificação; todas as dúvidas são pertinentes e podem ser expostas a partir do e-mail notifica@dgs.pt.
Com a criação destas formas de recolha de informação, é possível a recolha de informação indispensável para analisar dados e criar planos de intervenção, definir estratégia e intervenções de aprendizagem, com vista à melhoria do sistema, prevenir incidentes, reforçar a segurança e melhorar a qualidade.
Todavia, apesar da clara evidência científica do impacto positivo das notificações no sistema de saúde, todos os estudos apontam para a existência de subnotificação.
Até onde estamos dispostos a falar de erros para melhorar a qualidade e a segurança dos cuidados prestados?
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