SAPO Lifestyle: O que é a biópsia líquida?

José Leal: O cancro é uma doença do genoma, do material genético das células, e na medicina investigam-se estas alterações no ADN para fazer o diagnóstico, definir a terapia e inferir o prognóstico. Para tal fazem-se biópsias, ou sejam, retiram-se fragmentos do tumor, de forma invasiva, para análise. A biópsia líquida é uma abordagem que complementa esta, pois permite-nos obter informação molecular sobre o tumor a partir de fragmentos de ADN tumoral libertados para a circulação sanguínea - é menos invasivo, necessitando apenas de uma análise de sangue, e permite-nos substituir a biópsia tissular quando por alguma razão esta não é possível, por exemplo pela fragilidade do doente ou pelo facto de o tumor não estar acessível.

Este método permite ainda fazer a monitorização do doente, com análises repetidas, que seriam impossíveis com a biópsia tissular, o que dá ao médico a possibilidade de perceber como é que o doente está a responder à terapia.

SAPO Lifestyle: É o futuro da medicina laboratorial?

Descobrir nos genes o calcanhar de aquiles do cancro
O investigador José Leal, diretor executivo da Ophiomics, ao lado do médico e antigo bastonário da Ordem dos Médicos Germano de Sousa créditos: Nuno de Noronha

José Leal: É já o presente. Hoje fazemos biópsia líquida em vários contextos, até por exemplo para encontrar opções terapêuticas em doentes que não responderam aos tratamentos protocolados. É porém um mundo novo no sentido em que há imensos ensaios clínicos em fases avançadas onde se avaliam muitos testes diferentes feitos em biópsia líquida em múltiplos tipos de doença oncológica. É por isso expectável que nos anos mais próximos seja possível alargar o espectro de contextos em que fazemos testes em biópsia líquida.

SAPO Lifestyle: Como é que a biópsia líquida permite diagnosticar um cancro?

José Leal: A biópsia líquida representa uma variação da biópsia tissular, em que se acede ao material tumoral através de uma análise de sangue em vez da análise diretamente no tecido. Fazer-se a análise no sangue tem uma grande vantagem pois  representa a doença toda e não apenas a componente do tumor que foi biopsado em biópsia tissular, já que tanto o tumor primário como as metástases libertam ADN para a circulação. Temos feito análises a doentes em que parte da doença responde bem ao tratamento mas onde há uma metástase de difícil acesso cirúrgico que não responde, onde procuramos uma razão para a não resposta e outras abordagens farmacológicas possíveis.

SAPO Lifestyle: É aí que está o potencial da biópsia líquida?

José Leal: Onde há maior esperança no papel da biópsia líquida é em contextos onde a biópsia tissular não chega, nomeadamente na monitorização do tratamento e recidiva. Como é uma técnica pouco invasiva pode ser repetida múltiplas vezes, permitindo por exemplo avaliar o aparecimento de resistências ao tratamento. No cancro do pulmão isto é hoje uma realidade e estamos a ultimar produtos específicos para outros cancros.

SAPO Lifestyle: A biópsia líquida funciona na deteção de todos os tipos de doença oncológica?

José Leal: Sim, mas é preciso explicar este sim. A análise de ADN tumoral circulante no sangue é muito informativa para alguns tipos de cancro que o libertam abundantemente para a circulação sanguínea, como é o caso do cancro do pulmão, colorretal, mama, ovário, entre outros. Em outros tipos de cancro, como cancros do sistema nervoso central, da próstata, cabeça pescoço, esta libertação de ADN tumoral é feita mais abundantemente para outros fluidos biológicos, como urina ou líquido cefalorraquidiano, de onde que a biópsia líquida é exequível mas nestes outros fluidos. Nestes fluídos, a implementação clínica da biópsia líquida está ainda mais atrasada. No nosso laboratório estamos a avaliar protocolos técnicos para disponibilizarmos análises de biópsia líquida na urina e no líquido cefalorraquidiano, pelo que existe a possibilidade de termos novidades em breve sobre este assunto.

SAPO Lifestyle: Mas então a biópsia líquida pode ajuda a detetar doenças mesmo antes de serem identificáceis?

José Leal: Este é o Santo Graal da oncologia - a deteção precoce do cancro, pois quando o conseguimos é muito mais provável conseguir-se curar o doente. A biópsia líquida é muito promissora a este nível mas a sua utilização em termos de deteção precoce ainda necessita de validação pela comunidade científica e na clínica.

SAPO Lifestyle: Qual é o maior entrave à biópsia líquida?

José Leal: O maior problema é a questão da especificidade, pois como é uma técnica muito sensível pode detetar o aparecimento de cancros muito precocemente, mas esses cancros podem ser invisíveis a outras técnicas - o que fazemos então uma vez que não conseguimos saber onde está a doença? O contexto de deteção precoce ganha muita relevância quando sabemos exatamente o que procuramos, como por exemplo na monitorização da recidiva ou em casos de síndromes familiares. Neste último, por exemplo no caso do cancro familiar da mama e ovário, poderá permitir um planeamento mais seguro de procedimentos de redução do risco, mas ainda precisamos de validar esta utilização. Já na monitorização da recidiva os resultados científicos são muito promissores e nós esperamos ter disponíveis muito em breve algumas soluções para apoiar o médico no acompanhamento do doente.

SAPO Lifestyle: É um método caro?

José Leal: Antes pelo contrário. Quando comparado com a biópsia tissular, a análise molecular em biópsia líquida tem custos próximos da mesma análise molecular em biópsia tissular, mas evita-se o procedimento cirúrgico de obtenção da biópsia tissular convencional. Onde os custos podem aumentar é quando usamos a biópsia líquida no contexto de monitorização, já que são análises extra que se farão ao doente. No entanto a questão importante é se se ofereceu maior qualidade de vida e uma vida mais longa ao doente com o dinheiro que se gastou, e se globalmente se gasta mais ou menos ao gerir cada doente com estas ferramentas de medicina de previsão. Infelizmente temos ainda poucos casos para poder responder a estas questões já que estamos a assistir à adoção destas tecnologias na clínica agora. O nosso laboratório está, em colaboração com centros académicos, a tentar ajudar a responder a estas questões de custo-benefício.

SAPO Lifestyle: Quando acha que este método poderá ser colocado ao serviço da população, nomeadamente no SNS?

José Leal: Mesmo sendo uma tecnologia nova, ela está hoje disponível em alguns centros em Portugal, nomeadamente na rede Germano de Sousa que tem uma portfólio alargado de testes em biópsia líquida, desde simples pesquisas de mutações até panoramas mutacionais alargados. Em alguns testes mais simples como a pesquisa de uma mutação específica num gene muito específico até já há alguma oferta ao doente em alguns centros clínicos do SNS. O que está pouco disseminado é o estudo em profundidade de tumores mais avançados, como os testes que a Ophiomics tem estado a desenvolver e que estão hoje disponíveis na rede Germano de Sousa. Para estes é necessária uma capacidade bioinformática que infelizmente em Portugal é reduzida. Este é o terreno onde temos algumas grandes empresas internacionais a dominarem o mercado.