
Já se torna um chavão, repetir incansavelmente que as cefaleias e a enxaqueca são a primeira causa mundial de incapacidade nos indivíduos com menos de 50 anos, incluindo nas crianças e adolescentes, em todo o planeta. Que a enxaqueca, enquanto doença isolada, ocupa a quarta posição entre todas as doenças como causa de anos vividos com incapacidade. Que, em Portugal, 1,5 milhões de pessoas são afetadas. Que são socialmente desvalorizadas, remetendo quem sofre a viver na sombra, estigmatizado, incompreendido por colegas, amigos e até familiares...
Outro chavão que não me canso de repetir - a enxaqueca não é só uma dor de cabeça. Trata-se de uma doença neurológica – a mais frequente de todas - que, afetando todo o cérebro, se manifesta por episódios recorrentes e imprevisíveis com vários sintomas. Sim, há uma dor de cabeça, violenta e explosiva, mas há também náuseas e/ou vómitos e, sobretudo, dificuldade em processar todos os estímulos .... sejam visuais, auditivos, seja o próprio movimento do corpo e, sobretudo, os estímulos cognitivos, resultando em lentificação do pensamento, dificuldade em manter a atenção e em raciocinar... Numa crise é impossível para o cérebro gerir a informação que lhe chega, ficando o indivíduo à mercê da inexistência, incapaz de manter a funcionalidade mais básica, restando-lhe fechar os olhos e ficar imóvel, numa hibernação transitória que lhe permita sobreviver até ao próximo momento em que consiga voltar a funcionar, minimamente.
Estas crises, invisíveis, mas devastadoras, roubam horas, dias, anos de vida – é estimado que a enxaqueca seja responsável por 5.500 anos vividos com incapacidade por cada milhão de habitantes – ou seja, responsável por 5.500 pessoas, em cada milhão, a perderem um ano de vida saudável, a cada ano. Aplicado a Portugal, é o equivalente a 55.000 pessoas morrerem um ano prematuramente, todos os anos... morrem a conta gotas, sobretudo as pessoas com menos de 50 anos, incluindo crianças e adolescentes, as faixas etárias onde esta doença se manifesta com mais exuberância e violência. Vidas em que a dor se torna uma companheira que eclipsa parte da sua existência.... Vidas nas quais a própria antecipação das crises rouba a liberdade de planear e decidir o seu futuro, sempre ameaçado pela possibilidade de não serem capazes de, em qualquer determinado momento, existir.
Estas pessoas, jovens e adultos jovens, e sobretudo mulheres, os principais contribuintes sociais e económicos para a saúde e vitalidade das nossas sociedades humanas, vêm-se espartilhados entre a necessidade de garantir as suas dinâmicas familiares e sociais e as suas responsabilidades profissionais e o tempo que lhes é roubado pela doença.
E o que a sociedade, e sobretudo as empresas, parecem não querer ver é que esta angústia também é nossa, já que há custos relevantes, inerentes à diminuição de produtividade relacionadas com as cefaleias e enxaqueca – numa estimativa conservadora, cerca de mil milhões de euros por ano, em Portugal.
Penso que estes factos já são mais que suficientes para se perceber que temos que fazer mais do os repetir, incansavelmente.
Chegou a hora de agir.
E esta hora já chega tardia, porque os factos falam por si – numa das patologias mais frequentes do planeta, a segunda maior causa de incapacidade e associada a um custo social elevado – sim, reconheço que não me canso de o repetir – é facto que....
... existe estigma, que agrava a desigualdade de género. O estigma em torno da enxaqueca continua a ser um dos maiores desafios para quem vive com a doença. Por ser invisível, muitas vezes é minimizada, levando os pacientes a sentirem-se incompreendidos ou excluídos. Frases como "é só uma dor de cabeça" perpetuam a ideia errada de que a enxaqueca não é uma doença séria, dificultando o acesso a tratamento e o reconhecimento do seu impacto real. Nas mulheres, o preconceito é ainda mais acentuado dado a enxaqueca ser mais frequente e severa no sexo feminino, reforçando desigualdades, principalmente no trabalho, onde muitas vezes são vistas como menos resilientes, menos produtivas ou menos comprometidas. Combater esse estigma é crucial para garantir que todos os pacientes, independentemente do sexo, recebam o respeito e cuidados que merecem.
... a literacia em saúde sobre este tema é, ainda, insuficiente. Apesar de a enxaqueca ser uma das doenças mais incapacitantes do mundo, Portugal ainda não dispõe de um programa estruturado para aumentar a consciencialização sobre a doença. Como resultado, milhões de pessoas continuam sem acesso a informação clara e fidedigna para gerir melhor a sua doença. No entanto, os primeiros passos neste sentido já foram dados este ano, trazendo esperança de avanços significativos num futuro próximo.
... a formação médica neste tema deve continuar a melhorar. A formação sobre cefaleias tem sido insuficiente ao longo do percurso académico. Na faculdade, os estudantes de medicina recebem, em média, apenas quatro horas de ensino sobre o tema. Nas especialidades médicas, fora da neurologia, a formação continua limitada, resultando em dificuldades no diagnóstico e tratamento e mesmo desvalorização da doença. Nos últimos anos, têm sido dados passos concretos para colmatar essa lacuna, verificando-se cada vez mais uma maior sensibilização entre os profissionais de saúde sobre a gravidade da enxaqueca.
... o papel da Medicina do Trabalho tem sido negligenciado. Embora a enxaqueca tenha um grande impacto na vida profissional, a Medicina do Trabalho ainda não contempla indicadores específicos para monitorizar a doença, dificultando a adaptação das condições laborais. A ausência de medidas direcionadas impede a implementação de estratégias que possam minimizar o impacto da doença na produtividade e no bem-estar dos trabalhadores. Integrar estas questões na Medicina do Trabalho promoverá um ambiente mais saudável e produtivo, reduzindo o impacto negativo da enxaqueca na vida profissional.
... é um desafio tentar envolver as empresas na gestão destas doenças. Apesar de a enxaqueca ser uma das principais causas de absentismo e presentismo, poucas empresas têm políticas de apoio específicas para trabalhadores com a doença. A iliteracia organizacional perpetua um ambiente hostil, onde os afetados se sentem desamparados e as empresas enfrentam o impacto da perda de produtividade. Reconhecer a importância de adotar políticas inclusivas e de apoio ajudará a melhorar a qualidade de vida dos colaboradores e otimizar a eficiência e o bem-estar no ambiente de trabalhoe reduzir custos.
... os Cuidados de Saúde Primários não têm orientações específicas para estas patologias. Embora os cuidados de saúde primários sejam adequados para gerir 90% dos casos de cefaleias e enxaqueca, ainda não há indicadores ou normas oficiais claras para o diagnóstico, e tratamento ou referenciação. No entanto, estamos a trabalhar para melhorar essa realidade e, dado o crescente interesse por parte dos nossos médicos de família nestas doenças, a inclusão dessas orientações nos cuidados de saúde primários permitirá que estes profissionais uma abordagem mais eficaz e holística, e contribuindo para a melhoria global na gestão da doença.
... os neurologistas não dedicados às cefaleias tendem a desvalorizar estas doenças. Muitos neurologistas não especializados em cefaleias subestimam o impacto da doença, dado focarem-se mais na prática hospitalar, ou seja, gestão da doença aguda. A consequência é que entre 55% e 70% dos doentes seguidos n especialidade desconhecem a existência de tratamentos avançados e 60% estão insatisfeitos com o acompanhamento. No entanto, há uma crescente conscientização e estão a ser dados passos para melhorar a formação e abordagem das cefaleias dentro da Neurologia.
... existe falta de oferta de consultas especializadas em cefaleias. Os especialistas em cefaleias, devido a limitações de tempo, não conseguem dar resposta adequada aos casos mais graves, que representam de 1% a 2% dos doentes. Atualmente, apenas 10% desse grupo recebe o acompanhamento adequado, e menos de 3% dos potenciais beneficiados têm acesso a terapêuticas inovadoras. Precisamos que haja mais prioridade na otimização da gestão do tempo nas consultas e melhorar a capacitação de outros profissionais.... o percurso de um doente com cefaleias e/ou enxaqueca dentro do sistema de saúde é ineficiente e caótico.
Entre consultas em diversas especialidades, a falta de comunicação entre os níveis de cuidado público e privado e as barreiras burocráticas, muitos doentes perdem anos sem diagnóstico e/ou tratamento adequado. Isso compromete a qualidade de vida dos pacientes e a eficiência do sistema de saúde. É urgente integrar melhor os serviços, otimizar o percurso do doente e garantir que o tratamento seja mais rápido e acessível, evitando o enorme desperdício dos escassos recursos que temos.
A verdadeira questão é se conseguiremos trabalhar, juntos, para uma mudança de atitude em relação a estas doenças, que afetam todos, direta e indiretamente?
Conseguiremos compreender que o tratamento destas patologias não se trata de um luxo ou de uma extravagância? Que nos vai permitir devolver anos de vida saudável a uma percentagem relevante da nossa população, o que trará a todos benefícios familiares, sociais e económicos?
Conseguiremos intervir, a vários níveis, quer aumentando a literacia em saúde nestes temas, para a população, quer melhorando a eficiência dos serviços de saúde, chamando os parceiros certos a colaborar, organizando e dando prioridade às pessoas, e gerindo melhor o investimento que já fazemos, mas de forma ineficiente?
A solução existe, queiramos nós, como sociedade, lutar por ela.
Um artigo da médica Raquel Gil-Gouveia, Neurologista especialista em Cefaleias do Hospital da luz Lisboa, professora e investigadora na Faculdade de Medicina da Universidade Católica e membro da Sociedade Portuguesa de Cefaleias.
Comentários