Prevalência e Impacto da Enxaqueca em Portugal

Healthnews (HN) – A enxaqueca afeta cerca de um milhão e meio de portugueses e é uma das principais causas de anos vividos com incapacidade. Como vê o impacto desta doença na sociedade portuguesa e quais são os principais desafios enfrentados pelos pacientes?

Raquel Gil-Gouveia (RGG) – A enxaqueca é, sem dúvida, uma das doenças neurológicas mais prevalentes, mas é a sua dimensão e impacto que a transformam de um problema individual para um desafio social, nacional e até global. Segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde no estudo Global Burden of Disease, atualmente, as cefaleias representam a terceira principal causa de anos vividos com incapacidade (Years Lived with Disability – YLDs, 5,23% do total), e a enxaqueca, enquanto doença isolada, ocupa a quarta posição (4,73% de todos os YLDs).

A prevalência média global da enxaqueca ronda os 15%, com um tempo médio em estado ictal de 8,5%, segundo estudos populacionais. O peso atribuído à perda de saúde durante as crises (disability weight) é de 44,1%. Em termos de impacto populacional, estima-se que a enxaqueca seja responsável por 5.500 YLDs por cada milhão de habitantes — um equivalente a 5.500 pessoas em cada milhão a perderem um ano de vida saudável, a cada ano. Aplicado a Portugal, seriam 55.000 anos de vida perdidos, anualmente, ou seja, o equivalente a 55.000 pessoas morrerem um ano prematuramente, todos os anos.

Tratar-se de uma doença que atinge sobretudo jovens e adultos em idade ativa, sendo a principal causa mundial de anos vividos com incapacidade abaixo dos 50 anos, incluindo crianças e adolescentes. Assim, a enxaqueca rouba, de forma contínua e silenciosa, anos de vida numa fase de maior produtividade social e profissional, com um impacto económico significativo, o que resulta em que o seu impacto não se limite ao indivíduo, mas se reflita em toda a sociedade. De forma conservadora, estima-se que, em Portugal, se percam anualmente cerca de mil milhões de euros em produtividade, devido às cefaleias e à enxaqueca.

Mas os custos intangíveis são ainda mais devastadores – os doentes veem-se privados de oportunidades: no desempenho académico e profissional, nas relações interpessoais com cônjuges, filhos, família e amigos, na participação em atividades sociais, desportivas e culturais, e até na sua autonomia financeira, devido aos custos diretos da doença (medicação, consultas, ausências laborais). Acima de tudo, perdem a capacidade de planear livremente a própria vida, reféns da imprevisibilidade das crises que lhes roubam tempo e funcionalidade.

E, no entanto, tudo isto permanece invisível. A sociedade, os empregadores e até as famílias raramente reconhecem a verdadeira limitação imposta pela enxaqueca, ao indivíduo e a si próprios e à sociedade. Soma-se ainda um fator agravante: a maior prevalência da doença em mulheres, o que perpetua estigmas e discriminação, especialmente no ambiente laboral, onde muitas vezes são vistas como menos resilientes ou motivadas.

É urgente tornar este cenário visível. A realidade não é apenas dura para quem sofre com a doença — afeta-nos a todos, enquanto sociedade.

Acesso a Especialistas e Tratamento

HN – A escassez de especialistas em neurologia resulta em longos tempos de espera para consultas. Como avalia a situação atual do acesso ao tratamento especializado para doentes com enxaqueca em Portugal e quais soluções propõe para melhorar este acesso?

RGG – Em Portugal, enfrentamos um paradoxo. Em relação à média dos países europeus, dispomos de mais médicos por habitante e, mesmo no que diz respeito a neurologistas, não estamos abaixo do número médio recomendado. De acordo com estimativas europeias, o país necessitaria de cerca de 30 a 40 especialistas em cefaleias, um número próximo do que já possuímos. Por isso, o problema não está na falta de especialistas, mas sim na desorganização e ineficiência do sistema de saúde e no facto destes ultraespecialistas não se dedicarem quase exclusivamente a tratar estas patologias.

Atualmente, existem mais de 40 centros especializados no país, dos quais 60% inseridos no SNS, com médicos e tratamentos específicos para cefaleias e enxaqueca. A distribuição regional é aceitável e, em teoria, estes centros teriam capacidade para cobrir as necessidades dos doentes mais impactados. No entanto, na prática, oferecem apenas 10% das consultas necessárias. O motivo? A maior parte do tempo dos especialistas é desviada para o serviço de urgência, o internamento e outras tarefas hospitalares, no cuidado com outras patologias. Além disso, a crescente carga burocrática – agora digital – impõe um peso administrativo desproporcional, reduzindo ainda mais o tempo disponível para o atendimento especializado. Este problema não é exclusivo da neurologia, mas tem um impacto especialmente crítico em áreas, como as cefaleias, com escassez funcional de mão de obra altamente qualificada.

É urgente otimizar a organização e a eficiência dos serviços de saúde em Portugal, incluindo na área das cefaleias. Se conseguirmos alocar melhor o tempo dos especialistas, garantir a renovação destes recursos e tornar os processos de referenciação e mobilidade dos doentes mais eficazes, todos sairão a ganhar.

A SPC e a MiGRA já apresentaram um dossier na Comissão Parlamentar de Saúde, nos grupos parlamentares e na Secretaria de Estado da Saúde, com propostas concretas para iniciar este processo de melhoria da referenciação e integração entre centros e unidades. Se conseguirmos implementar estas soluções para as cefaleias, poderemos replicar o modelo para outras patologias, beneficiando ainda mais doentes e otimizando o sistema de saúde como um todo.

Desafios no Tratamento da Enxaqueca

HN – Muitos pacientes enfrentam dificuldades no tratamento devido à falta de resposta aos medicamentos disponíveis. Quais são os principais desafios no tratamento da enxaqueca e como a pesquisa atual pode ajudar a superá-los?

RGG – A enxaqueca é uma doença de base genética, mas a sua expressão clínica varia enormemente entre indivíduos e até no mesmo doente ao longo do tempo. Trata-se de uma condição cíclica, com crises de frequência variável ao longo da vida, influenciada por fatores ambientais e de estilo de vida. Assim, não podemos falar de uma única enxaqueca, da mesma forma que um único doente não tem sempre as mesmas necessidades no controlo da sua doença.

O desafio, portanto, reside na necessidade de uma abordagem verdadeiramente individualizada. Devemos identificar, em cada momento, quais os sintomas mais relevantes a tratar e quais as estratégias terapêuticas mais eficazes. O desafio adicional é que obter esta informação de forma fidedigna requer tempo, outro recurso escasso. Felizmente, dispomos hoje de múltiplas opções terapêuticas capazes de atuar sobre as diferentes manifestações da enxaqueca. No entanto, ainda não temos ferramentas que nos permitam prever, entre as várias alternativas, qual será a mais eficaz e com melhor relação risco-benefício para aquele doente, naquela fase da sua doença, e para o controlo daqueles sintomas que o estão a incapacitar.

Na prática, seguimos uma abordagem de tentativa e erro: baseando-nos na evidência científica e na experiência clínica, delineamos um plano terapêutico inicial e, caso não seja eficaz ou cause efeitos adversos intoleráveis, ajustamos a estratégia, passando sucessivamente para outras opções. Este processo pode ser longo e frustrante. A cada tentativa falhada, cresce o sentimento de descrença e resignação, o que compromete a adesão ao tratamento e aumenta ainda mais o risco de insucesso.

Na minha visão, o futuro do tratamento da enxaqueca passa pelo desenvolvimento de abordagens mais preditivas e personalizadas, que permitam selecionar a estratégia mais adequada para cada doente de forma mais rápida e eficaz, minimizando o impacto da doença, melhorando significativamente a qualidade de vida e diminuindo o desperdício, que nos afeta a todos.

Cognitive Dysfunction During Migraine Attacks

HN – A sua pesquisa tem abordado a disfunção cognitiva durante ataques de enxaqueca. Pode explicar como a enxaqueca afeta a função cognitiva e quais são as implicações práticas para os pacientes?

RGG – A enxaqueca é uma doença que afeta todo o cérebro. Durante as crises, há evidência de que várias áreas cerebrais alteram o seu funcionamento, tornando-se menos eficientes no processamento de estímulos e informações. No nosso grupo de investigação conseguimos demonstrar que, durante uma crise, as pessoas sentem-se mais lentas a processar informação, têm grande dificuldade de concentração e enfrentam desafios significativos na gestão de múltiplos estímulos em simultâneo. Além disso, apresentam um desempenho inferior em tarefas cognitivas que envolvem atenção, memória, aprendizagem e velocidade de processamento. Essas alterações estão associadas a modificações na comunicação entre determinadas áreas do cérebro, o que pode ser a base destas dificuldades.

Mesmo quando tratada com sucesso e a dor é significativamente reduzida, muitos doentes continuam a apresentar estas limitações cognitivas, que se tornam a principal causa de incapacidade funcional no dia a dia. Outros sintomas da crise, como náuseas, vómitos ou intolerância ao som e à luz, embora debilitantes, não têm um impacto tão direto na capacidade de funcionamento da pessoa.

Por isso, precisamos de tratamentos que eliminem todos os sintomas da crise – não apenas a dor – para que os doentes possam recuperar completamente a sua funcionalidade. Precisamos de ser mais ambiciosos: como clínicos, o nosso objetivo não pode limitar-se ao alívio da dor, por mais importante que ele seja. O nosso propósito deve ser eliminar por completo o impacto da enxaqueca na vida das pessoas – ou, pelo menos, chegar o mais próximo possível desse ideal. Não só por elas, mas por toda a sociedade.

Discriminação no Acesso a Terapêuticas

HN – Há uma preocupação com a discriminação no acesso a terapêuticas mais eficazes para a enxaqueca. Como vê esta questão e quais medidas poderiam ser tomadas para garantir um acesso mais equitativo a tratamentos avançados?

RGG – A preocupação com o acesso aos tratamentos é justificada pelos dados: desde que ficaram disponíveis em 2019, apenas cerca de 3% das pessoas potencialmente elegíveis estão a recebê-los. Um dos principais entraves é o acesso à comparticipação, que, nos fármacos de dispensa hospitalar, está limitada ao contexto do SNS. Isto significa que os doentes que optam ou precisam de acompanhamento no setor privado não têm direito ao medicamento comparticipado, o que gera uma situação de desigualdade. Tal aplica-se, inclusivamente, a outras terapêuticas na área da neurologia quando os mesmos tipos de fármacos estão disponíveis, quando prescritos no sector privado, para doenças da área da reumatologia o que é injustificável.

Além disso, mesmo dentro do SNS, o acesso é dificultado pela falta de consultas em subespecialidade, onde estes fármacos podem ser prescritos. Os critérios para consulta e prescrição variam de centro para centro, tal como os tempos de espera e a duração autorizada do tratamento, tornando o acesso desigual e imprevisível.

É essencial garantir maior homogeneidade e equidade no sistema. Uma das propostas da SPC e da MiGRA é a criação de uma base de dados nacional para doentes que necessitam de terapêuticas avançadas. Esta plataforma permitiria estabelecer critérios claros e uniformes para a prescrição e avaliação da eficácia dos tratamentos, assegurando um acesso mais justo e eficiente, eliminando barreiras burocráticas e garantindo que a origem do doente – seja no setor público ou privado, ou numa região mais ou menos urbana, servida de mais ou menos especialistas – não seja um fator discriminatório.

Futuro da Pesquisa e Tratamento da Enxaqueca

HN – Qual é a sua visão sobre o futuro da pesquisa e tratamento da enxaqueca? Quais são as principais áreas de investigação que poderiam levar a avanços significativos na gestão e prevenção da doença?

RGG – A área de maior relevância para quem sofre, atualmente, é a medicina personalizada – a identificação de marcadores clínicos, biológicos, imagiológicos, genéticos ou bioquímicos que nos permitam prever, à partida, a utilidade e/ou futilidade de cada terapêutica disponível. Tal como noutras especialidades médicas, este avanço permitiria otimizar o tempo, iniciando desde logo o tratamento mais eficaz, evitando complicações e a cronificação da doença. Além disso, traria uma gestão mais eficiente dos recursos humanos e terapêuticos, reduzindo desperdícios, pois evitaria sucessivas tentativas frustradas e a administração de fármacos com pouca ou nenhuma utilidade para determinados doentes.

Paralelamente, a investigação sobre o funcionamento do cérebro em pessoas com enxaqueca está a revelar informações fundamentais. Compreender melhor estes mecanismos permitirá não apenas tratar a dor, mas também minimizar o impacto global da enxaqueca na funcionalidade do doente e na saúde cerebral a longo prazo.

Já há muito trabalho em curso nestas áreas, já com alguns resultados concretos, prevendo-se um enorme potencial. O avanço no conhecimento dos mecanismos da enxaqueca e a identificação de novos alvos terapêuticos abrirão caminho para tratamentos mais eficazes e melhor tolerados. O futuro é promissor, mas exige que façamos o trabalho necessário hoje.

Por outro lado, numa abordagem mais pragmática, sabemos que toda inovação tem custos e, como em qualquer área da saúde, os recursos são limitados. Não será possível oferecer tudo a todos, indiscriminadamente. Precisamos de investir também em desenvolver um um sistema mais eficiente e equitativo que garanta a distribuição dos tratamentos e técnicas inovadoras de forma proporcionada e atempada. Se melhorarmos este processo, todos ganhamos – e, literalmente, teremos menos dores de cabeça.

Entrevista HN