Em 2010, após dez anos a laborar em agências de publicidade e face à crise económica que entretanto se instalara, Ângela Silva percebeu que tinha de mudar de rumo profissional. Ângela perguntou-se, “o que estou aqui a fazer?”. A resposta, depois de cogitação, chegou sobre a forma de atividade associada a um alimento milenar, civilizacional, que, neste século XXI, não está a ser bem tratado, o Pão. “Na época pretendia fazer algo que estivesse relacionado com as mãos. `Porque não o pão?`, foi uma das perguntas que, naturalmente, Ângela se colocou.
“Inscrevi-me num curso de padaria e pastelaria, fiz um breve estágio”, conta-nos a nossa interlocutora. Um curso que, no entanto, “era muito vocacionado para a produção industrial, mas serviu como ponto de partida. Comecei a estudar sobre fermentação natural e descobri um mundo. Não parti logo com a ideia de que queria abrir uma padaria”.
Não estando entre os objetivos iniciais, a padaria aconteceu na vida de Ângela que acaba por lançar, em parceria com João Faria, cúmplice e parceiro em todas as iniciativas, a sua primeira marca de pão biológico, a Miolo. Um primeiro marco num percurso que, volvidos oito anos, inclui dois títulos publicados, “O Livro do Pão” (2015) e, mais recentemente, aquele que aqui nos ocupa, “O Livro do Pão Sem Glúten”. “Tal como no livro anterior procuro simplificar. Não é feito para quem conhece o pão a fundo, mas para quem tem medo de pôr, literalmente, as mãos na massa. Dai ter simplificado, apresentando com pormenor as instruções de produção”.
Para Ângela, no pão há muitos caminhos, nos ingredientes, nas texturas, nos sabores. Não há, contudo, atalhos. Seja nos tempos de fermentação ou na utilização de matérias-primas de origem biológica.
Em 2018, após oito anos a concretizar a sua paixão, Ângela e João, lançam a Bao, uma marca de pão biológico sem glúten com recurso a leveduras selvagens. Pães com farinhas alternativas face ao tão maltratado trigo. Centeio, cevada, espelta, kamut, tornaram-se opções na cartilha de Ângela.
“Tirem-me tudo menos o pão”, lemos na badana do mais recente livro de Ângela, um bom mote para iniciarmos conversa. De que falamos quando nos referimos a um bom pão?
Ângela, na apresentação que faz ao seu mais recente livro podemos ler, “se gosta de bom pão este livro é para si”. O que é um bom pão quando vivemos um tempo de lineares cheios de diferentes, e nem por isso, nutricionalmente interessantes pães?
Hoje temos a oferta comercial de muito pão, mas toda esta quantidade é um engano se pensarmos em termos nutricionais e qualitativos. Um bom pão tem ingredientes simples, água, farinhas, fermentos, um pouco de sal. Não o vamos encontrar com uma lista infindável de aditivos, que nos devem deixar, desde logo, desconfiados. Um bom pão é autêntico e, muito importante, tem de ser feito com tempo, com mãos, não é um processo industrial.
É curioso como um alimento que acompanha o homem e quase todas as culturas desde a invenção da civilização esteja sujeito a tantos mitos, ideias falsas. Parece não haver grande interesse em produzir bom pão?
Hoje em dia, em Portugal, estão a aparecer e a destacar-se pessoas e entidades empenhadas em produzir bom pão. Agora, no que toca ao produto industrial, o objetivo é o maximizar os lucros, com produtos rápidos, fáceis de fazer. Repare, qualquer pessoa sem formação faz a mistura para o pão e, numa hora ou duas, temos nas prateleiras o alimento. Se houver quebras, o prejuízo é pequeno, porque o investimento também não é grande. Mas será a nossa saúde que vai pagar.
Ou seja, um pão que sequer cumpre a função mais básica do ato alimentar, a de nutrir…
Os aditivos que estes pães integram e a forma como são feitos podem induzir problemas de saúde graves. Por exemplo, as pessoas com problemas digestivos poderão passar mal. Acresce que alguns destes aditivos ainda sequer foram estudados para percebermos que consequências terão a longo prazo na nossa saúde. É inacreditável.
Não obstante toda esta pressão economicista, a Ângela percebe que as pessoas estão a querer recuperar este bom pão?
Sim, penso que passa por aí, mas não só, porque o consumidor percebe que se conseguem fazer coisas mais interessantes do que aquilo que por aí se vende. Os consumidores estão preocupados com a sua saúde.
O consumidor percebe que se conseguem fazer coisas mais interessantes do que aquilo que por aí se vende
Falemos, agora do glúten, que ocupa o seu mais recente livro. O glúten tornou-se algo como o “bicho-papão” à mesa. Há razões efetivas para o temermos?
Vejamos, não precisamos de glúten para sobreviver. Há culturas saudáveis que sobrevivem há milhares de anos sem grãos com glúten. É claro que também temos culturas que consomem glúten e, eventualmente, nunca tiveram os problemas que temos atualmente nas nossas sociedades. Acima de tudo, o grande problema, reside na forma como é produzido o trigo moderno, na manipulação genética a que é sujeito e na utilização de herbicidas nos campos. Como é óbvio, tudo isso passa para as farinhas. Em síntese, a alimentação moderna tem em si a explicação para muitos dos problemas de saúde que atualmente nos afectam.
São farinhas nutricionalmente mortas?
Pior do que mortas, transportam para o nosso organismo coisas muito más. Por exemplo, temos pessoas com tendência para a doença celíaca. Naturalmente, a manipulação introduzida nos grãos que acabei de referir só vai piorar o estado de saúde destas pessoas.
A questão que se impõe é: há razões sustentadas para eliminarmos completamente o glúten?
Quem tem doença celíaca ou sensibilidade, terá vantagens óbvias em eliminar o glúten. Quem não é celíaco ou demonstra intolerância, terá de perceber como opera a sua digestão ao comer um pão de trigo, ou um sem glúten. Agora, não posso comparar um pão sem glúten com um pão de má qualidade, de supermercado, o primeiro será substancialmente melhor. Há também bom pão de trigo, feito com o cereal biológico, com uma fermentação com tempo. Não é o Diabo [risos]. Repare não sou radical no que a este tema respeita. Considero é que se torna vantajoso variar nos grãos, nos sabores, não nos restringirmos ao trigo.
O grande problema, reside na forma como é produzido o trigo moderno, na manipulação genética a que é sujeito e na utilização de herbicidas nos campos. Como é óbvio, tudo isso passa para as farinhas
Aliás, lista no seu livro um grupo de grãos alternativos e muito interessantes. Quer destacar-nos alguns?
Gosto muito do Trigo-Sarraceno, com um sabor muito característico, forte. A sua ingestão torna-se uma questão de hábito. Podemos combiná-lo com grãos mais suaves. O Millet [milho miúdo], também é muito interessante, assim como o Sogro, o Teff, este, um grão antigo, remontando à Etiópia, em África.
Ainda na questão do glúten podemos incorrer num engano. Livre de glúten não significa, obrigatoriamente, um alimento interessante nutricionalmente. Certo?
Exatamente e considero escandaloso que se vendam alguns produtos, nomeadamente o pão, nestas categorias. Julgo que se criou algum pânico em relação ao glúten. Embalados por esse medo, surgiram produtos no mercado sem interesse nutricional. Basta olharmos para o rótulo, para percebermos que muitas vezes temos apenas amido somado a uma série de aditivos. Temos, neste caso, de fazer escolhas bem informadas, recusando produtos sem glúten carregados de açúcares, ingredientes pouco recomendáveis.
Na atual sociedade vivemos com pouco tempo. O leitor vai encontrar no seu livro receitas para o dia-a-dia?
Sim. Há sempre a ideia de que fazer pão é um processo demorado. É claro que tem de haver a vontade de ir comprar os ingredientes, por exemplo em supermercados biológicos, onde vai encontrar todas as farinhas. Claro que fazer um pão leva tempo, mas não de mãos na massa, antes no processo de a deixar a descansar. Porque não, fazer um bom pão, com tempo, ao fim de semana. De manhã, faz a massa e ao final da tarde pode cozer o seu pão. Ou vice-versa.
A Ângela refere amiúde a massa mãe e a possibilidade de produzirmos em casa este ancestral fermento natural. É um processo complexo?
Exige tempo, paciência e seguir com rigor os passos que indico no livro. Há que acompanhar, ajustar quando necessário e aprender com a própria evolução do fermento. Fazer um fermento natural sem glúten não é mais difícil do que fazer um fermento com base numa farinha com glúten. O que muda são os tempos de conservação. Claro que o leitor vai encontrar no livro, alternativas à massa mãe. Em todas as receitas dou um outro caminho, com fermento biológico seco. Não será um pão tão interessante como aquele que é feito com massa mãe, mas é, por certo, mais interessante do que aquele que encontra nos lineares das grandes superfícies.
A máquina de fazer pão é uma boa companheira nestas lides de padaria?
É uma solução, apesar de não ser apologista desta. Mas compreendo que haja pessoas que prefiram não ter as mãos na massa. Há magia na arte de amassar, na textura das farinhas, no controlo da água nas farinhas. Na máquina perde-se sempre essa noção. A massa pode ficar mais seca, ou mais liquida. Repare, as farinhas sem glúten comportam-se de forma diferente das farinhas de trigo. Podem levar mais tempo a absorver a água.
As crianças são um público muito importante. Há que as cativar para a boa alimentação. No seu livro tem sugestões para estas faixas etárias mais jovens?
Sim. Há pães que são fáceis na conquista do paladar das crianças. Por exemplo, com farinhas com um sabor mais suave. Podemos juntar um pouco de farinha de maçã, ou de banana.
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