Sabe o setubalense que não há visita ao seu Mercado do Livramento que não inclua uma passagem atenta pelas inúmeras bancas de peixe. Como também sabe que não lhe escapará aos ouvidos a tão peculiar exacerbação dos “rrr” característica dos falares – embora em desuso - da cidade à beira mar.

Uma conversa que ponha Setúbal à mesa inclui, invariavelmente, o choco frito, o peixinho no carvão e, dedilhando o passado e as memórias, a indústria conserveira e toda as artes de pesca e comunidade marítimas da cidade.

Isso mesmo ocupou durante uma tarde, a 27 de abril, os participantes no encontro “A Gastronomia do Mar e o Turismo das Regiões”, inserido no âmbito mais alargado da programação de “Setúbal, Terra de Peixe”. Momento para desfilar na Casa da Baía, memória da pesca e da indústria conserveira, mas também para trazer alertas sobre o risco de extinção, não apenas dos ecossistemas e espécies marinhas, mas também da tradição das pescas. Um alerta que não invalidou uma abordagem otimista em torno daquilo que a orla costeira nos pode oferecer, nomeadamente na exploração de novos produtos à mesa, como as algas, e valorização em novos segmentos e abordagens de outros tradicionais, como as conservas.

Setúbal: Na terra da “sarrdinha” e do “carrapau” olhou-se com criatividade para o mar

Um olhar para o oceano que inclui também o património imaterial. Este esteve presente no encontro através da participação de Maria José Pires, professora de inglês na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril e coordenadora do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias.

No tema “Narrativas da Gastronomia do Mar”, a docente, trouxe aos participantes uma reflexão sobre as atuais tendências em termos do que os consumidores preferem: “alimentos saudáveis, sem glúten, sem lactose, a moda das marmitas, o comer produtos locais, a nostalgia na recriação dos pratos confecionados pelas avós e mães, a experiência da fantasia, a associação ao luxo e a comida como uma forma de arte”. Uma multiplicidade de realidades passíveis de serem exploradas com criatividade por parte dos agentes envolvidos nas fileiras do pescado e restauração.

Falar de Setúbal é também falar do característico sotaque, das gentes que por cá viveram e que ainda hoje se mantém presente

Maria José Pires apresentou um dos trabalhos de uma das turmas do Mestrado intitulado Saudade Portuguesa, no qual os alunos foram encorajados a desenvolver a criatividade tendo como tema a narrativa dos descobrimentos. “Para além da inevitável associação ao mar e aos produtos com origem nestes, os alunos recriaram uma viagem no tempo, apelando à memória, cultura, hábitos e religião”, afirmou a investigadora.

“Através das confeções e dos pratos apresentados, todos os sentidos foram explorados, pois o cenário criado para a degustação envolvia a guitarra portuguesa, sons do mar, luz ambiente adequada e os contrastes sensoriais como o doce/salgado”. Maria José Pires não esqueceu a parceria com a Faculdade de Arquitetura de Lisboa, cujos alunos criaram louça adequada aos pratos desenvolvidos.

A herança francesa da “sarrdinha”

Dos caminhos presentes para um cheirinho do passado, Ricardo Santos, da Sesibal – Cooperativa de Pesca de Setúbal e Sesimbra, apelou à memória e ao ainda próximo século XX, mais concretamente aos anos sessenta e setenta. Época em que a urbe à beira Sado “pululava inserida num frenesim da indústria conserveira. Uma história inevitavelmente ligada ao mar e às gentes cujo labor era arte, mas também significado de muito esforço. 110 fábricas, quatro mil homens e mulheres numa labuta com sardinhas, cavalas e carapaus”.

De acordo com o responsável da Sesibal, este era “um esforço por uma representação do já tão afamado produto além-fronteiras: as conservas portuguesas”.

Ricardo Santos relembrou que “falar de Setúbal é também falar do característico sotaque, das gentes que por cá viveram e que ainda hoje se mantém presente, uma marca deixada na cidade pela atração que trouxe não portugueses de outros locais, mas também espanhóis e franceses. Facilmente se houve ainda pela cidade o carregar nos ´rrr`, uma herança franca no apregoar da ´sarrdinha` e do ´carrapau`.

Setúbal: Na terra da “sarrdinha” e do “carrapau” olhou-se com criatividade para o mar

Do século XX para o presente, Ricardo Santos abordou a importância da costa de Setúbal como zona de boa cadeia alimentar para o peixe, as pedras existentes do fundo do rio albergam uma boa comunidade de algas que por sua vez libertam grandes quantidades de placton de qualidade, fundamental na alimentação dos peixes. Estas mesmas algas, de qualidade reconhecida, eram vendidas à indústria farmacêutica.

Questão premente na abordagem às comunidades marítimas é a do declínio da profissão de pescador. Matéria que deteve o representante da Sesibal, a “importância da valorização da profissão e necessidade de proteção das espécies de peixe”.

As conservas são um aliado do que o consumidor hoje pretende: preparação rápida de refeições, um produto de qualidade saudável e biológico

Ricardo Santos terminou a sua intervenção com um assunto polémico, a quantidade de sardinha passível de captura face às populações existentes no mar, afirmando que “o défice é algo que para já não existe, estudos recentes revelaram que nos próximos três/quatro anos, esta existe em quantidade suficiente para consumo nacional e exportação”.

Conservas, um produto hoje gourmet

Ainda de olhos postos na indústria das conservas, Afonso Rocha da Conserveira Belmar, trouxe à conversa o potencial deste produto, advertindo que “no fabrico destas somente 40 a 50% do peixe é aproveitado, as partes nobres”.

“Se este era um produto outrora olhado como alimento dos pobres, atualmente hoje é considerado um produto gourmet, cujo processo de produção preserva todos os nutrientes do peixe e como tal de elevada riqueza nutricional. É também um produto seguro, em termos de requisitos e exigências de segurança alimentar, com validade prolongada”, sublinhou.

Setúbal: Na terra da “sarrdinha” e do “carrapau” olhou-se com criatividade para o mar

A conserveira Belmar não tem unidade própria, mas através de uma seleção de fornecedores, subcontrata outras unidades de transformação de forma a conseguir conservas de excelência aliadas a outros produtos nacionais de elevado valor como o azeite.

Em termos de tendências, Afonso Rocha, salientou que “as conservas são um aliado do que o consumidor hoje pretende: preparação rápida de refeições, um produto de qualidade saudável e biológico e que permite uma combinação alimentar, com outros produtos, adequada ao convívio descontraído com os amigos. As conservas apresentam ainda inúmeras possibilidades em termos de food design e harmonização com bebidas”.